REVISTA FACTO
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Nov-Dez 2006 • ANO I • ISSN 2623-1177
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//Entrevista Lidia Goldenstein

"O mundo não vai esperar por nós"

O empresário brasileiro é dinâmico, o trabalhador brasileiro é aberto a mudanças, mas faltam políticas públicas efetivas para dar mais competitividade à indústria nacional. Falta, sobretudo, agilidade para acompanhar a globalização econômica e enfrentar a concorrência da China. Para a economista, cabe à sociedade organizada – em particular às entidades empresariais – cobrar do governo federal as promessas de crescimento e articular parcerias com governos estaduais em benefício da indústria e da geração de empregos. Doutora em Economia pela Unicamp, professora e consultora econômica, Lidia Goldenstein é autora do livro “Repensando a dependência” e trabalha atualmente na criação da Agência de Desenvolvimento da Cidade de São Paulo. A seguir, o debate com os participantes do Encontro Empresarial.

Gilberto Pinto (engenheiro e consultor) – Sabemos que qualquer modificação na estratégia do governo vai depender das reformas que nós já aguardamos há muito tempo. Sabemos também que haverá um quadro político instável para que essas reformas sejam realizadas. Então, se a sociedade não se manifestar e exigir que isto seja feito – falo da sociedade organizada através de todas as entidades reconhecidas, as entidades de classe, as associações etc. – nós vamos continuar no mesmo lugar em 2007, 2008 e 2009. Acho que está na hora de a sociedade se posicionar, porque essas coisas são estratégicas e precisam ser implementadas.

Lidia Goldenstein – Eu concordo totalmente, mas acho que estamos vivendo um período complicado. Não sei como será o desenlace porque a sociedade acabou de se manifestar, nós tivemos eleições. Ocorre que a sociedade se manifestou baseada nesses dados que eu mostrei: bolsa-família, comida barata, enfim, um certo tipo de estrutura econômica que é frágil. Eu gosto muito dessa expressão: o “vôo da galinha”. Rapidamente vai se perceber que essa conta não fecha, que não tem como pagar. A sociedade de alguma maneira se manifestou com base em números que não são sustentáveis, embora sejam reais. Houve de fato uma melhora da renda das classes mais baixas, mas a questão é: isto é sustentável? vai gerar emprego? vai fazer com que este País possa daqui para frente distribuir mais renda, ampliando ainda mais o seu mercado consumidor? Acho, sim, que cabe a entidades como a de vocês se manifestar. Sou completamente fã desse tipo de articulação; vi o que vários de vocês têm feito no sentido de levar propostas, propor parcerias com o governo e entre empresas e universidades. Isso representa uma cultura nova no País, é algo que nós demoramos muito a aprender. Antes, bastava ao empresário ter alíquota de importação garantida. Ele fazia o preço, não tinha plano de custo, não tinha problema de competitividade nem de investimento. Com uma economia aberta, sem inflação, como temos agora, e com a globalização se acelerando, é cada vez mais importante o papel de uma associação de classe como a de vocês. Não mais para bater nas portas de Brasília e fazer reivindicações, mas propondo articulações, políticas, caminhos, soluções. Isso é extremamente saudável.

Isaac Plachta – Este governo que foi eleito está dizendo que o País vai crescer e que vai vir investimento. Mas você tecnicamente nos mostra que é difícil isso acontecer. O que é que vai acontecer?

Lidia Goldenstein – Esta é a pergunta de um milhão de dólares. Logo que acabou o processo eleitoral, creio que uma semana depois, a imprensa mudou a pauta. A propaganda eleitoral foi muito bem feita – aliás, diga-se de passagem, isto é um fenômeno mundial, não é mérito nosso. As campanhas hoje em dia são campanhas de marketing. Você vende um bom sabonete: “limpa, te deixa jovem, te deixa linda”, tudo aquilo que você deduz que a indústria química não consegue fazer com a nossa pele, um bom marketing consegue. De acordo, venderam muito bem, mas no dia seguinte mudou a pauta da imprensa. Está ficando muito claro que um “tsunami” vem vindo. Vai ficar claro que o sabonete comprado não deixa a gente com trinta anos. “No way.” Conseqüentemente, acho que vai haver um estresse político, porque chegaram a vender para a sociedade a idéia de que o País iria crescer 5% este ano e 7% no ano que vem. Acho que a cobrança está vindo agora, num crescente, e ao mesmo tempo está ficando muito claro que não só não vamos crescer como, ao contrário, as coisas estão cada vez mais complicadas. Essa crise no sistema de aviação brasileiro é dramática, mas como “avião é coisa de rico”, ninguém vê que está afetando o setor produtivo, a exportação, viagens de negócios, e não só o turismo. Estamos perdendo divisas com exportação, até porque turismo também é uma forma de exportação. Estamos perdendo divisas com negócios, perdendo competitividade. Este país mudou, e mudou num processo que começou com a abertura do governo Collor – eu odeio ter que dizer isto, mas é verdade. Depois tivemos o Plano Real, e em seguida um período de terrível dor de cabeça para manter o plano de estabilização ao longo de cinco crises internacionais – a crise do México, a crise da Rússia, a crise da Ásia, o apagão aqui no Brasil e a crise da Argentina. Tivemos toda uma mudança de mentalidade em que se começou a perceber que exportar não era pecado, que era importante ter divisas; que as divisas eram fundamentais pra formar esse nível de reservas que nós temos hoje, e que são a única garantia de termos um mínimo de defesas contra as vicissitudes do cenário internacional. Tudo isso são conquistas de anos, vem lá de trás, e não deste governo nem do governo Fernando Henrique. É um processo. Porém, eu acho que agora nós estamos voltando para trás. É uma situação bastante triste, porque vamos demorar para pôr a casa em ordem, para ter condições de promover um crescimento sustentável e mais vigoroso.

Eduardo Costa – Na minha perspectiva política, acho que a abertura do Collor foi irresponsável durante todo o tempo, ligada a interesses de fora do Brasil. Os projetos de poder aqui se associaram aos projetos de poder lá fora e conseguiram fazer uma política que destruiu o que havia. Uma coisa é abertura para mercados globalizados etc.; outra coisa é destruição do país internamente, da capacidade produtiva que existia. Eu não substituiria uma política pela outra simplesmente por entender que o governo que está entrando é o mesmo de antes. Do ponto de vista da macroeconomia, a diferença talvez é que podemos acreditar um pouco em tentar mudar. Mas na verdade o cidadão brasileiro ainda não conseguiu amadurecer completamente para ter o seu projeto de País. Esse projeto nós temos que construir, independentemente do governo. Eu gostaria de saber, no que tange às nossas reservas cambiais, se esse capital é muito volátil ou não em função dos juros altos. Vale a pena gerarmos um superávit primário relativamente grande nesse quadro? Como fica a questão de poder investir, de segurar investimentos aqui no País?

Lidia Goldenstein – Não estou aqui para defender governo de ninguém. Só acho que a gente esquece muito rápido. Estávamos à beira de uma hiperinflação quando tivemos o Plano Real. Não havia como fazer um controle da inflação sem abrir a economia. Foi um custo altíssimo, sem dúvida. Podíamos ter mantido uma série de políticas que contemplassem algum tipo de transição para o setor produtivo. Escrevi inúmeros artigos dizendo: “não podemos jogar fora a criança com a água do banho”, “temos que ter políticas industriais”, “temos que ter política de transição”, “com essa taxa de juros não dá para competir”. Realmente, acho que o custo foi muito mais alto do que deveria. Porém, de 95 a 2004 sofremos o custo de um plano de estabilização que atravessou cinco crises internacionais de bom tamanho. A partir da entrada do governo Lula, só tivemos sol e céu de brigadeiro no mercado internacional. Então, não era momento para não dar continuidade àquela política, que tinha equívocos mas na sua essência foi moldada corretamente. E moldada para um cenário internacional completamente diferente e para uma economia interna completamente diferente. Não podemos comparar banana com abacaxi, são coisas completamente diferentes. Quanto à questão dos investimentos, o Brasil mudou estruturalmente e para melhor. Temos, sem dúvida, uma parte de dinheiro especulativo, porque o Brasil tem taxas de juros as mais elevadas do mundo. Porém, uma parte dessas reservas é resultado, sim, de balanço comercial positivo. É venda para o exterior, é reserva boa, saudável, e que tem de fato uma base econômica. Houve um avanço, tanto que conseguimos nos livrar da dívida externa pública, e também da interna indexada ao câmbio. Isso é uma grande revolução, e é muito positivo. Por isso a gente fica ainda mais aborrecida com o que está acontecendo: avançamos muito e agora não estamos aproveitando oportunidades boas que nós mesmos criamos, a duras penas. As reservas são positivas, e uma parte delas é sem dúvida nenhuma resultado de balanço comercial, onde o agronegócio tem um papel fundamental.

Luiz Guedes – Parece que a capacidade do Brasil de se organizar, retomar o investimento, está ligada à questão fiscal, ou seja, às contas públicas, e também a eventos que deverão ocorrer no ano que vem no Congresso, como a prorrogação da CPMF, a discussão da vinculação de receita da DRU, a questão da previdência etc. Alguns analistas econômicos têm afirmado com grande ênfase que o centro do problema do não-crescimento é a questão fiscal, e não a taxa de juros nem a taxa de câmbio. Como você vê isso?

Lidia Goldenstein – A grande sorte deste governo é não ter o PT na oposição. Acho que vai haver alguma negociação em torno da DRU, um “toma lá, dá cá” no Congresso, mas ninguém é louco de vetar porque sabe que se isto acontecer vai ter colapso no dia seguinte. Toda a estrutura do gasto público depende dessa arrecadação. Se vão conseguir aumentar a DRU já é uma negociação mais difícil, mas manter o que está aí me parece certo. No fundo, acho que precisamos de um novo Plano Real, não mais para a inflação porque ela está sob controle, mas para as contas públicas. Precisamos repensar esse Estado, o gasto público, e isto exige uma imensa ousadia, uma imensa força política e, sobretudo, um amplo suporte da sociedade. A solução não está dada. Uma mudança para valer no gasto público mais uma vez vai implicar imensas transferências de renda entre setores ou entre estados, e isto não é fácil de administrar. O problema é que o Brasil faz as coisas saindo pela tangente, o que é cada vez mais difícil num mundo competitivo e globalizado como o nosso. Esse tempo o mundo não nos dá mais. A rapidez das transformações, a entrada da China… Até a semana passada a China não produzia um carro sequer, e hoje ela tem uma capacidade produtiva de 15 milhões de veículos, com plataformas mais recentes e mais modernas que as nossas. O Brasil funciona assim: a gente vai dando um jeitinho, vai comendo pelas bordas, vai amortizando conflitos. Eu não vejo liderança, não vejo projeto, não vejo estratégia para fazer o choque de gestão que seria necessário para o Estado brasileiro acompanhar a velocidade do mundo globalizado.

Luiz Guedes – O que nós temos hoje são políticas de governo e não de Estado. Falta uma visão de longo prazo, que é importante. Como você vê a questão da privatização numa perspectiva de longo prazo?

Lidia Goldenstein – O governo percebeu que a realidade se impõe. Não há dinheiro para gastar. Acho que as PPPs são uma forma disfarçada de assumir que a privatização veio para ficar. Obviamente ainda existem bolsões e segmentos dentro do PT que são contra. É só rever os discursos da ministra Dilma Rousseff no início, logo que ela assumiu e depois. Eles não conseguiram implementar, isto é outro problema. Mas do ponto de vista ideológico, acho que houve uma virada de página sobre esse assunto no País.

Nicolau Lages – Imaginemos que o presidente Lula a convoque e peça três conselhos. Que conselhos você lhe daria para aumentar o crescimento econômico do País? Em seguida, imaginemos que ele não faça isso e que chegamos a novembro de 2010. Pelo seu conhecimento da equipe que está no comando, como é que você vê o governo e o País nesse momento?

Lidia Goldenstein – A segunda pergunta me parece mais fácil. O Brasil é um país surpreendente. Eu adoro uma frase do Milan Kundera, autor de “A insustentável leveza do ser”: ele diz que a força de uma mulher é a sua fraqueza. Acho que a força da economia brasileira é também a sua fraqueza. O País tem uma imensa demanda reprimida que facilmente pode torná-lo um mercado para valer. Precisamos dar condições para que esse mercado atraia as indústrias, como ocorreu nos anos 90, quando chegamos a receber US$ 36 bilhões em investimentos externos em um ano. Hoje nós estamos com US$ 12 bilhões no máximo, porque o Brasil deixou de ter esse mercado. Temos agora um mercado de baixa renda que não cresce baseado em emprego, mas sim em gastos públicos insustentáveis. O País é capaz de surpresas positivas. O dinamismo do empresário brasileiro é formidável, o do trabalhador brasileiro também, porém eu já disse e repito: a globalização está estreitando o nosso espaço. A velocidade com que o mundo está se preparando para a nova concorrência da China é impressionante. Concordo enfaticamente que no Brasil política industrial se constituiu como palavrão. Sou absolutamente a favor de políticas públicas e contra economias fechadas e repetições de erros do passado. Acho que o País tem tudo para dar certo, tem uma cultura produtiva pujante e mercado consumidor como poucos no mundo. Eu me lembro que, quando fui trabalhar no BNDES, a primeira entrevista que fiz foi com o presidente da Alcoa no Brasil, e ele me disse: “onde instalamos nossos processos produtivos mais rapidamente foi no Brasil, porque aqui encontramos mão-de-obra com mais jogo de cintura, que topa, que aceita. Mas que não é educada”. Ou seja, o trabalhador brasileiro tem a disposição, tem abertura para o novo, porém não tem o nível de educação que se exige no mundo hoje. Quanto à primeira pergunta, não há como responder pois eu não tenho a menor chance de ser chamada.

Nelson Brasil – Eu gostaria de algumas apreciações sobre a política cambial. Aceitarmos que a política cambial seja o resultado da simples lei de oferta e demanda, que não se possa tocar nela, parece algo meio teocrático. O que vemos na China é que a política cambial não é tão variável em termos de mercado. Os grandes países do mundo sempre se desenvolveram fazendo leis de política cambial, mesmo que não abertamente. Este câmbio que temos hoje, se não tiver um ajuste, vai ser mortal para a indústria brasileira.

Lidia Goldenstein – A atual política cambial é resultado de uma interferência equivocada na taxa de juro. Não vou questionar essa sua visão, com a qual eu concordo mas que é muito polêmica. Também não vou entrar nas questões de controles de câmbio, como por exemplo a entrada de capitais de curto prazo. Vamos nos situar dentro dos argumentos usados pelo Banco Central e as correntes teóricas que o apóiam. Este câmbio é resultado de um baixo crescimento. Não vamos ter o dólar a R$ 4 de novo, pois aquilo foi a crise política pelo medo da vitória do Lula no primeiro mandato. Vamos a R$ 3,5? Acho que não, pois naquele momento o câmbio tinha uma contrapartida de vulnerabilidade externa que, graças à nossa capacidade de reação econômica, conseguimos reverter. Mas não precisa ser R$ 2. Eu não vou defender uma determinada taxa, só acho que ela é resultado de uma política inteira equivocada.

Gilberto Pinto – É evidente que tem que haver uma mudança cultural. Voltando à questão inicial, eu diria que o ato de votar não encerra de maneira nenhuma a nossa responsabilidade. Ele inicia uma responsabilidade que vai se desdobrar durante os próximos quatro anos. Acho que podemos, de uma forma disciplinada e através de instituições, fazer realmente com que as manifestações da sociedade sejam sentidas no Congresso e no governo, e que essa pressão se mantenha durante os quatro anos, após os quais só serão reeleitos realmente aqueles que responderem de acordo com o que a sociedade exige.

Lidia Goldenstein – Eu não só concordo totalmente como vou além. Acho que nós temos um cenário político no Brasil, especialmente com a eleição de certos governadores, em que se pode ter ações emblemáticas que impactem a sociedade e empurrem o governo federal no sentido de estruturar políticas mais modernas, mais avançadas, que redundem num crescimento sustentável. Por exemplo: uma base importante do setor produtivo de vocês é no estado de São Paulo. Atualmente, entre outras coisas eu estou ajudando a montar uma agência de desenvolvimento da cidade de São Paulo. O papel fundamental dessa agência é atrair investimentos para a cidade, facilitar a vida do setor privado e fazer políticas públicas em aliança com ele. À medida que a gente consiga essas formulações em diferentes partes do País, de alguma maneira se vai levando à conscientização da sociedade como um todo. Só precisamos acelerar, porque o mundo não vai esperar que sigamos nesse processo muito lentamente.

Lidia Goldenstein
Lidia Goldenstein
Autora do livro "Repensando a dependência" e trabalha atualmente na criação da Agência de Desenvolvimento da Cidade de São Paulo.
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