Por Pedro Marcos Nunes Barbosa

Está designado para o mês de abril de 2021 o julgamento no STF do caso-líder de controle concentrado de constitucionalidade versando sobre propriedade industrial da história brasileira: a ação direta de inconstitucionalidade, autuada sob o número 5529, que cuida de dispositivo legal que permite o adiamento da data do domínio público das tecnologias (parágrafo único, do artigo 40 da Lei 9.279/96). Como sói ocorrer em uma matéria tão politizada quanto o direito de patentes, narrativas plurais têm sido publicadas em periódicos brasileiros, muitas delas enfatizando argumentos ad terrorem [1]. Esse é um expediente retórico comum, porém tende a contribuir muito pouco para um avanço crítico necessário na parca cultura dos direitos intelectuais no país.

Em uma análise histórica sobre as legislações brasileiras pertinentes à seara nos últimos 50 anos, percebe-se que os principais prazos de exclusividade foram substancialmente majorados desde que aderimos à Organização Mundial do Comércio (em 1994/1995). Por exemplo, no tocante às criações de natureza estética, sob a égide da Lei 5.988/73, o prazo dos direitos patrimoniais de autor perdurava desde a criação exteriorizada até 60 anos (artigo 42, §2º) após a sua morte. Já sob a vigência da Lei 9.610/98, este hiato foi hipertrofiado para 70 anos (artigo 41). Tal significa dizer que a contar da data morte do originador a tutela foi majorada em mais de 15% para o parâmetro nacional. Esse padrão, por sua vez, já era muito além do exigido no acordo internacional pertinente (OMC/TRIPs [2], artigo 12) ao nos vincular à proteção, pelo menos, por metade de um século. Os herdeiros certamente ficaram em júbilo com tal modificação legislativa, mas não se consegue ver como tal melhorou a qualidade ou incentivou mais autores a criarem visando a vida terrena no seu post mortem.

No que tange às criações utilitárias, pelo pálio da Lei 5.772/71, as patentes de invenção vigiam por até 15 anos, enquanto os modelos de utilidade eram protegidos por até dez anos (artigo 24). Com o advento da Lei 9.279/96, tais prazos foram “encorpados” para, respectivamente, gerarem até 20 e 15 anos de tutela (artigo 40, caput), respectivamente. Cuida-se de uma majoração de proteção de mais de 30% no primeiro caso, e de 50% no segundo. Haja bonança! Bem mimamos os titulares de tais bens.

Se a comparação for realizada sobre as criações decorativas, a Lei 5.772/71 protegia os desenhos industriais por até uma década (artigo 24), enquanto a legislação vigente permite uma tutela por até 25 anos (artigo 108). Tal denota um aumento do termo final de tutela em até 150%, um crescimento digno de uma progressão geométrica.

Por fim, considerando-se que a Lei 5.772/71 já previa que o registro de marcas (criação de natureza distintiva) daria uma proteção por até dez anos (artigo 85), mas que o Acordo TRIPs (artigo 18) só exigia uma tutela mínima de sete anos; quando a Lei 9.279/96 manteve os mesmos parâmetros dispositivo do Código da Propriedade Industrial anterior, em verdade, proporcionou-se um parâmetro TRIPs-Plus. Para ser mais preciso, outorgamos um prazo que sobrepuja em 40% a proteção exigida pelo parâmetro de harmonização internacional. Somos mesmo generosos com os criadores intelectuais.

O breve quadro narrado demonstra que, contrariando a tendência à minoração dos prazos decadenciais e de prescrição (a exemplo do ocorrido do Código Civil de 1916 para o Código Civil de 2002), a legislação ordinária vigente da propriedade industrial já havia maximizado os interesses dos titulares nos limites da moldura hermenêutica constitucional de que trata o artigo 5º, XXIX, que condiciona a tutela da PI à cláusula finalística: “Tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. É preciso insistir: enquanto se nota um processo de aceleração das obsolescências: a) por superação alheia (um concorrente destruindo  a valia da criação de outrem pela invenção de algo melhor, mais barato ou mais simples de ser empenhado); ou (b) programadas-endogenamente; engordou-se o “preço” pago (inexigibilidades licitatórias, por exemplo, de que tratam o artigo 25 da Lei 8.666/93) pela sociedade ao originador na diacronia do acesso às criações.

Em outras palavras, pelas situações ordinárias previstas na legalidade vigente, todos os titulares (de quaisquer formas de criação de direitos intelectuais) tiveram seus interesses protegidos e ampliados ao custo do retardo da data em que ocorreria o domínio público (artigo 99, I, do CC/2002). E com a procrastinação de tal termo, estende-se a mora para que haja a concorrência de preços, minora-se o acesso à cultura, à saúde, a pronta possibilidade de reprodução decorativa e estética, bem como resulta em menoscabo a disponibilização de produtos e serviços melhores, mais baratos, e com menos danos ambientais.

Dessa forma, verifica-se que boa parte das teses exaradas em defesa da constitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei 9.279/96 parte da premissa de que a tutela regular (de duas décadas de exclusividade para patentes de invenção ou 15 para patentes de modelo de utilidade) é insuficiente para as finalidades econômicas de estímulo ao investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Caso o julgamento colegiado do STF conclua pela procedência dos pedidos formulados pela PGR, o cenário mais “assustador” aos titulares de exclusividades tecnológicas (82% das vezes sociedades de origem estrangeira ) seria permanecerem como proprietários de um título resolúvel em duas longas décadas. Não conheço qualquer estudo científico que demonstre que 240 meses sejam insuficientes para satisfazer, até mesmo, aqueles que defendem a correlação entre propriedade intelectual e a garantia de amortização  a determinado investimento.

Tais discursos são curiosos tanto pelo fato: 1) de que o paradigma dos vinte anos de exclusividade é seguido internacionalmente, fincado na harmonização promovida pelo Acordo TRIPs (artigo 33); quanto 2) pela circunstância de que em um ambiente globalizado as estratégias inovativas são predominantemente internacionais , não se levando em consideração apenas o mercado brasileiro, o argentino etc. na hora de lançar novas criações no mercado. É claudicante pensar que se o STF enveredar pela limitação aos parâmetros temporais de exclusividade tidos como homogêneos pela organização sediada em Genebra (os 20 anos nas criações de contributo qualitativo mais alto e de 15 nas criações incrementais), tal importará em uma “aventura jurídica” contra os investidores internacionais e as multinacionais.

O que se percebe, em verdade, é que existe uma cultura arraigada de privilégios tendentes à perpetuidade, muito símile: 1) aos prantos de quem temia o fim da monarquia já às vésperas da Constituinte Republicana de 1889-1890; ou 2) à choradeira de quem desejava continuar percebendo subsídios ou pensões acima do teto constitucional. Para o baronato industrial de proveniência estrangeira realmente não há limites temporais de empecilho à concorrência que bastem à sua satisfação e, por isso, exclusividades de fato que perpassem trinta anos de duração não lhes causa espécie .

Entretanto, muito além dos exageros retóricos descritos, é preciso frisar que entre todas as incompatibilidades do instituto de procrastinação ao domínio público tecnológico, aquela mais daninha é a que gera uma cultura “utilitarista”  e arbitrária da punição aos sujeitos honestos.

Duas hipóteses ajudam a provar o ponto aqui proposto. Caso 1: um agente econômico inovador C deposita um pedido de patente que é publicado. Em seguida, um concorrente leal A fica interessado na tecnologia, mas aguarda a decisão do Inpi para decidir sobre sua livre iniciativa e risco naquele mercado. Concomitantemente, outro concorrente B também fica interessado na tecnologia e decide pelo risco de ingressar imediatamente no mercado, aguardando com interesse a futura decisão do Inpi. Havendo a concessão da patente para C no substancial prazo de 20 anos contados da data de depósito, o sujeito A sabe exatamente quando ingressará no mercado relevante futuro. Por sua vez, o sujeito B, açodado, poderá ser sancionado: 1) com a tutela criminal (artigo 183 da LPI); 2) através da tutela de cessação de condutas (famosa pela cognominação do “fecha a fábrica”, “busca e apreensão nas redes de distribuição” e “suspensão da atividade publicitária”); e 3) pela via da tutela compensatória pelos generosíssimos critérios assegurados em lei (artigo 210 da LPI), inclusive com a retroatividade de incidência do pedido (artigo 44 da LPI). Nessa hipótese, o concorrente precavido A não é onerado pela sua conduta, o concorrente arrogante B o é e C goza de pretensão contra quem não agiu corretamente, mas não contra quem se portou na forma da lei.

Por sua, vez, no caso 2, incidindo a hipótese do dispositivo inquinado de invalidade pela PGR (o parágrafo único do artigo 40 da Lei 9.279/96) a situação acima se altera. Acaso A não ingresse no mercado antes da decisão do Inpi, havido o ato de concessão, a restrição de acesso de A ao nicho tecnológico relevante de C superará duas décadas. Enquanto a maioria das empresas não inovadoras e congêneres no resto do mundo já estão no mercado alhures (pois o domínio público da tecnologia de C é certo, em exatas duas décadas do depósito do pedido de patente), A aguardou “20 + x anos” para poder fazer valer seu direito subjetivo público de disputa de clientela junto a C. Por sua vez, B e sua maneira ousada de mercanciar receberá tratamento símile à contrafação havida no caso 1. Há parca vicissitude sancionatória contra quem não agiu de acordo com a lei, mas o agir honesto restou vilipendiado.

A partir do momento em que se vislumbra a titularidade de uma exclusividade tecnológica como uma relação jurídica complexa , é fácil salientar a injustiça de se prorrogar o prazo final da vigência de patentes. O titular da patente deve dar função à sua criação e, quando possível por regras regulatórias, empenhá-la, licenciá-la, fazê-la circular e gerar riquezas e tributos. De outro lado, a principal conduta dos não titulares é a de abstinência (artigo 42 da Lei 9.279/96) daquilo que possa atentar contra o conteúdo econômico legítimo do titular da patente. Assim, como pode ser razoável fazer A pagar “20 + x anos”  se agiu corretamente pelo cerceamento à sua livre iniciativa e ao direito de concorrer? Será que a sanção ao infrator B, em qualquer dos casos (1 ou 2), é mesmo insuficiente para garantir os incentivos aos inovadores? Por acaso há um déficit de tutela aos donos de patente no Brasil por se prestigiar até duas décadas de exclusividade? Desconheço indícios, provas, estudos ou até achismos razoáveis em tais sentidos.

No entanto, não são apenas os A concorrentes honestos que acabam por esperar mais de 20 anos e pagar o injusto sobrepreço exigido pelo parágrafo único do artigo 40 da LPI. A D, Fazenda Pública, que deveria licitar (particularmente o SUS e o Ministério da Educação para as tecnologias pertinentes à educação), E, os consumidores. e F, o próprio meio ambiente, são núcleos de interesses que acabam “adimplindo” a injusta conta para quem bem se conduziu ao nada fazerem contra a exclusividade do titular. Sancionar igualmente os honestos e os desonestos é incompatível para um Estado democrático de Direito (artigo 5º, XLVI da CRFB), por mais sedutora que seja a retórica dos “punitivistas” e mimadinhos marajás.

  “Esta falácia pode ser identificada sempre que, em vez de o interlocutor oferecer suas razões, ele apela para as consequências nefastas ou terríveis que sucederão caso não se faça o que se pede. Por exemplo, quando um político afirma que se não for aprovado o plano econômico que ele está propondo o caos social se instalará, haverá a vitória da fome, a erosão de todos os laços de civilidade etc.” SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 292.

 Tratando do Acordo TRIPs assim define a doutrina estadunidense: “Becoming the first substantive international agreement to define—and more importantly create minimum standards for—the entire field of intellectual property.” McMANIS, Charles R. Intellectual Property and Unfair Competition. St. Paul: West Publishing Co, 2004, p VII.

 “[.] Como realidade inegável ou simples ameaça o impacto das inovações – novas técnicas, por exemplo – sobre a estrutura de uma indústria reduz consideravelmente o efeito a longo prazo e a importância de práticas que visam, através da restrição da produção, à conservação de posições tradicionais e exploração ao máximo dos lucros que nelas se baseiam.” SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 110.

 Dados disponibilizados pelo INPI denotam que no mês de Janeiro de 2020, apenas 18% dos pedidos de patente de invenção foram realizados por nacionais. Informação disponível em https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/estatisticas/arquivos/publicacoes/boletim-mensal-de-propriedade-industrial_mar_2020.pdf, acessado em 11.03.2021.

 “O fundamento deste nosso ponto de vista reside numa constatação: a de que, nos casos em que um concorrente realiza avultados investimentos intelectuais e materiais, a impossibilidade de alcançar a respectiva amortização pode conduzir (e conduzirá maioritariamente) à paralisação, que se traduz numa perda de interesse efectivo em realizar investimentos sem retomo.” AMORIM, Ana Clara Azevedo de. Parasitismo Económico e Direito. Coimbra: Almedina, 2009, p. 177.

 “Ora, sendo o investimento em tecnologia realizado normalmente pelas matrizes das empresas que aqui empregam a tecnologia, a constatação da possibilidade de recuperação tem de ser realizada no mercado internacional.” SALOMÃO, Calixto Filho. Direito Concorrencial, as estruturas. 2ª Edição, São Paulo, Malheiros: 2002, p. 165.

 No entanto, o Judiciário nacional sempre esteve atento contra tais práticas: “Pretensão a estender a validade da patente de forma a que se prolongue por 36 anos ou mais, o que vai de encontro com a limitada garantia constitucional de temporariedade das patentes, com prevalência ao “interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país”. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, 1ª Turma Especializada, AI 2007.02.01.013465-9, Desembargadora em Exercício Márcia Helena Pereira Nunes, DJ 02.04.2008.

 “Parece que utilitaristas, às vezes, punem quando não deveriam. Lembre-se do caso do juiz e da multidão (.) no qual o juiz pode evitar um tumulto violento se prender um inocente. Parece simplesmente errado punir uma pessoa inocente, mesmo que fazer isso produza as melhores consequências gerais.” GREENE Joshua. Tribos Morais. A tragédia da Moralidade do Senso Comum. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 277. A citação se deu apenas à título ilustrativo, pois não se concebe como a prisão de qualquer inocente possa ser concebida como hipótese viável por alguém que conheça o conceito de humanismo e de dignidade.

 “O encaixe da propriedade nessa categoria tem a vantagem do reconhecimento da existência de um feixe complexo e indissociável de direitos e deveres, inerentes ao próprio instituto.” LOUREIRO, Francisco Eduardo. A Propriedade como Relação Jurídica Complexa. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003, p. 45.

 O icônico “x” realmente é adequado ao exemplo, pois outra inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da LPI é matar a previsibilidade e a liberdade exigidas em uma economia de mercado. Como bem narra a doutrina: “Mas, para poder determinar quais atos deseja praticar e quais consequências quer e aceita suportar, é indispensável que ele esteja consciente e bem-informado a respeito das alternativas de ação de que dispõe e que possa determinar minimamente que consequências cada uma delas irá futuramente desencadear. Ter liberdade implica, portanto, saber sobre o que decidir, querer conscientemente decidir em determinado sentido e arcar responsavelmente com as consequências dessa decisão.” ÁVILA, Humberto Bergmann. Constituição, Liberdade e Interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 12.

Fonte: Consultor Jurídico

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