Por Lívia Barboza Maia
A patente trata de um direito conferido pelo Estado que versa sobre a faculdade de exclusão de terceiros na exploração de determinado conteúdo tecnológico.
No dia Mundial da Saúde (07 de abril de 2021) o Ministro Relator Dias Toffoli proferiu decisão concedendo tutela provisória de urgência na ADI 5529, em que se questiona a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial), para “suspender a eficácia do parágrafo único do art. 40 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, somente no que se refere às patentes relacionadas a produtos e processos farmacêuticos e a equipamentos e/ou materiais de uso em saúde”.
A patente trata de um direito conferido pelo Estado que versa sobre a faculdade de exclusão de terceiros na exploração de determinado conteúdo tecnológico. Ou seja, enquanto estiver em vigência uma patente, especialmente diante de hipóteses de ausência de elasticidade na oferta, o Estado está impedido de realizar licitações e, portanto, deve adquirir a tecnologia do titular. Na seara da saúde a afirmação anterior torna-se relevantíssima em um país onde o SUS é o maior comprador de medicamentos1 (monopsômio), e onde o IBGE2 recentemente apontou que cerca de 70% da população depende do SUS.
Antes mesmo da correta decisão do Relator, mas já com o anúncio do julgamento3 no STF, iniciou-se um alvoroço onde aventou-se que a eventual decisão pela inconstitucionalidade do artigo que trata sobre dilatação do termo de domínio público poderia comprometer todo o sistema de patente. Tais opiniões, entretanto, ignoram por completo que a Carta Magna funcionalizou diretamente o direito de patente, bem como tratam com menoscabo o fato de que a relação jurídica referente à exclusividade não se dá somente entre o titular e o Estado. A multiplicidade de relações pode ser traduzida pelo modelo poliédrico que trata de demonstrar, na realidade, direitos de vários atores, podendo ser citado: direitos do inventor (aquele que criou)5, do titular (aquele que possui os direitos patrimoniais da patente), do Estado (quem conferiu a exclusividade – como o INPI, mas também os entes que precisam licitar e prestar serviços públicos), da concorrência (que aguarda o domínio público para utilizar o invento) e dos consumidores (que tendem a estar submetidos à práticas comerciais distintas no caso de haver exclusividade e no caso do domínio público e, deste modo, possibilidade de pluralidade de ofertas). Tampouco é possível desconsiderar direitos transindividuais do meio-ambiente, que sofre quando novas tecnologias na seara agroquímica de diminuição da fitotoxicidade, dos efeitos colaterais à fauna, bem como de menor impacto ao lençol freático, recebe tutela de fato por mais de vinte anos desde o depósito.
A incerteza sobre o fim da vigência, quando uma patente é concedida sob o prazo do parágrafo único do artigo 40 da LPI, importa em (i) para o Estado ausência de possibilidade de previsão de licitação6 e, portanto, comprometimento dos cofres públicos; (ii) para a concorrência7 ausência de possibilidade de se preparar acaso pretenda adentrar no mercado com produto genérico/similar, bem como8 (iii) para os consumidores a impossibilidade de múltiplos concorrentes faz com que os preços9 praticados sejam mais altos.
Como as demais propriedades, a patente deve estar funcionalizada de modo que não seja tida como um fim em si mesma10, apenas protegida em prol do titular/inventor. A funcionalização11 serve ao intuito de adequar a disciplina jurídica de modo que haja o atendimento dos interesses em jogo, ainda que o ordenamento não tenha disposto exatamente sobre aquela questão. Levando-se em consideração que em média 80%12 das patentes de invenção são concedidas em favor de estrangeiros, não faz sentido que o início do domínio público das patentes no Brasil seja protelado em comparação ao que ocorre no restante do planeta. Por isso, o belíssimo estudo comparativo de direito internacional formulado pelo insuspeito Grupo de Direito e Pobreza da Faculdade de Direito da USP (liderado pelo Professor Titular Calixto Salomão Filho) é digno de estudo e atenção por todos os atores e interessados no estudo da Propriedade Intelectual.
No caso das patentes, a Constituição Federal não deixou restar dúvidas de sua funcionalização ao fazê-la na forma de uma cláusula finalística, que constituiu uma inovação do atual texto. Deste modo, a constitucionalidade da exclusividade sobre o conteúdo tecnológico patente somente seria atendida se observado o interesse social do país (e não dos estrangeiros, anote-se), se houvesse favorecimento do desenvolvimento tecnológico e do desenvolvimento econômico do país.
A funcionalização também fez parte do espírito da Lei de Propriedade Industrial quando na exposição de motivos13 expôs-se que o exercício do direito da patente, direito este que trata de uma contrapartida garantida pelo Estado ao titular, deve ser compatível com o interesse público. A funcionalização da Propriedade Industrial se mostra uma tendência da atualidade, em que o Direito emerge como meio de obtenção da paz social14 e não mais em sua função de punições enérgicas e visando somente os interesses de titulares.15
De outro lado, os ruídos ignoram que mesmo acaso haja a decisão pela inconstitucionalidade o titular não estará desprotegido. A própria lei, em seu artigo 44, assegura ao titular da patente o direito de obter indenização (quando houver concessão de sua patente) pela exploração indevida havida desde a data de publicação do pedido. Assegurando, ainda, que se houver prova do conhecimento antes da publicação a indenização também alcançará esse marco. Esse também foi o entendimento prestigiado na decisão proferida na ADI 5529 pelo Ministro Relator Dias Toffoli, in verbis:
“Assim sendo, uma vez concedida a patente, a proteção por ela conferida retroage a momento inicial do processo, o que funciona como uma contenção aos concorrentes que cogitem explorar indevidamente o objeto protegido durante a tramitação do pedido. [.] A proteção patentária, portanto, não se inicia apenas com a decisão final de deferimento do pedido, sendo interessante notar que a lei considera o requerente como presumivelmente legitimado a obter a patente, salvo prova em contrário, conforme o art. 6º, § 1º, da LPI. Portanto, não é adequado o entendimento de que somente há proteção após a concessão. Após a concessão é o momento no qual o titular poderá, enfim, obter tutelas no judiciário, mas tais tutelas alcançarão período pretérito. Desse modo, o titular goza de proteção de fato desde o depósito.”
Não é possível olvidar que o inconstitucional dispositivo também gera, na prática, uma interpretação estendida do direito penal; já que enquanto não há domínio público o titular da patente também conta com a poderosa dissuasão criminal de que tratam os artigos 183 a 186 da Lei 9.279/96. Quem defende a hipertrofia do sistema de patentes – basicamente em favor da indústria estrangeira que remete royalties com dedutibilidade fiscal pelo BACEN – também deseja empregar uma lógica de crescimento das sanções penais, o que não é compatível com a lógica da última ratio.
Também milita contra as vozes do terror midiático (inclusive com a contratação de caríssimos espaços na mídia mainstream) o dado apresentado na decisão do Supremo onde demonstrou-se que a extensão como posta no parágrafo único do artigo 40 da LPI não encontra paralelo em nenhum outro país. Portanto, o Brasil não se tornará uma párea ou mesmo prejudicaria qualquer relação exterior acaso opte por ter um sistema legal onde o prazo do fim de uma exclusividade e, portanto, exceção num sistema onde vige a livre iniciativa que é fundamento da República (artigo 1º, IV, CRFB), seja certo e previsível.
A certeza e a previsibilidade, totalmente ausentes no parágrafo único do artigo 40 da LPI vez que não se sabe quando ocorrerá a concessão pelo INPI, na expiração de um privilégio é essencial para sua função social possa ser cumprida. Havendo previsão de fim do privilégio (i) o titular mantém sua proteção através do artigo 44 da LPI que prevê ampla proteção independente da data da concessão, (ii) o interesse social do país na saúde (artigos 6º e 196 da CRFB) estaria atendido vez que com a certeza do fim da exclusividade o Estado poderia planejar a redução de custos no orçamento público da saúde através da realização de licitações; (iii) o desenvolvimento tecnológico estaria prestigiado vez que poderiam os concorrentes utilizarem a tecnologia patenteada como mola propulsora de novos inventos ou mesmo adentrar no mercado de genéricos/similares e, consequentemente, (iv) o desenvolvimento econômico estaria atendido com a possibilidade de previsão dos monopólios que a exclusividade da patente atrai.
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1 – VARRICHIO, Pollyana C. SUS: o maior comprador de medicamentos do país. Radar nº 52 – Agosto de 2017. IPEA. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/radar/170801_radar_52_cap_05.pdf, último acesso em 10.04.2021.
2 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/09/sus-e-unica-opcao-para-quase-90-dos-moradores-do-norte-e-nordeste-diz-ibge.shtml, última visualização em 10.04.2021.
3 – Julgamento havia sido previsto para 07.04.2021 e foi remanejado para a pauta do dia 14.04.2021.
4 – ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Tradução de Fábio Konder Comparato. São Paulo: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.35, n. 104, p. 109-26. out/dez 1996.
5 – L'ambito perciò nel qual sel'ordinamento giuridico disciplina diritti sulle creazioni intellettuali è minore di quello nel quale viene invece tutelatoilri conoscimentodella paternitàdel creatore. Chè mentre questa concerne tuttlele azioni e così tutti gliattidicrezioneintellettuali concerne solo quelle chepresentinodeterminatirequisiti. È solo neiriguardi di determinate creazione intellettuali cheviene prevista lapossibilitàdiundirittoassoluto volto a precluderee a ognialtrol'utilizzazione della creazione all'uopo identificata (o almeno a subordinarne l 'utilizzazione a un compenso.” ASCARELLI, Tullio. Teoria dela concorrenza e dei Beni immateriali: istituzion idi diritto industriale. 3ª ed. Milão: A. Giuffrè Editore, 1960, p. 298. Tradução livre: “Portanto, o domínio em que o sistema legal regula os direitos sobre as criações intelectuais é menor do que aquele em que o reconhecimento da paternidade é protegido.do criador. Embora isso diga respeito a todas as ações e, portanto, todos os atos de invenção intelectual dizem respeito apenas aos que atendem a certos requisitos. É somente em relação a certas criações intelectuais que a possibilidade de um direito absoluto é providenciada para impedir que o uso da criação seja identificado para esse fim (ou, pelo menos, subordinar seu uso à compensação).”
6 – “Ao longo deste trabalho, foi mostrado que apenas dois medicamentos protegidos por patentes mailbox podem gerar até R$ 2,1 bilhões de custos adicionais ao DLOG.” PARANHOS, Julia. Parecer Econômico Profª Julia Paranhos UFRJ. Pp. 315-344. In As inconstitucionalidades da extensão dos prazos das patentes: homenagem ao Prof. Dr. Denis Borges Barbosa. Organizado por Gustavo Svensson. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 338.
7 – “A concorrência passa a ser encarada como solução para conciliar liberdade econômica individual e interesse público: preservando-se a competição entre os agentes econômicos, atende-se ao interesse público (preços inferiores aos de monopólio, melhora da qualidade dos produtos, maior nível de atividade econômica etc.), ao mesmo tempo em que se assegura ao industrial ou comerciante ampla liberdade de atuação, com a concorrência evitando qualquer comportamento danoso à sociedade. A concorrência é o antídoto natural contra o grande mal dos monopólios, apta a regular o mercado, conduzindo ao bem-estar social.” FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 62.
8 – “Neste ponto, a prorrogação de exclusivos prejudica não só a livre concorrência, o bem-estar, os direitos e as liberdades do consumidor, tempo de vida (mais horas de trabalho para comprar o mesmo produto) e, principalmente, políticas públicas de saúde, notadamente, as políticas de genéricos e o custo das compras públicas do SUS. O parágrafo único do artigo 40 da LPI é inconsistente com a Constituição da República Federativa do Brasil (CFRB) e com o ordenamento brasileiro.” ASSAFIM, João Marcelo de Lima. Se a prorrogação da patente freia inovação, viola a Constituição? Publicado no periódico Jota, em 07.04.2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/se-a-prorrogacao-da-patente-freia-inovacao-viola-a-constituicao-07042021, última visualização em 10.04.2021.
9 – “Em uma situação de monopólio, no entanto, o preço não transmite para o consumidor informação sobre a real escassez do produto. É decorrência, isso sim, do poder do agente econômico, que, sendo responsável por grande parte da produção, é capaz de reduzir a oferta de forma a obter aumento de preços e, consequentemente, o chamado “lucro monopolista”. SALOMÃO, Calixto Filho. Direito Concorrencial, as estruturas. 2ª Edição, São Paulo, Malheiros: 2002, p. 61.
10 – “Para tanto, deve ser observada a função social da propriedade com o efetivo interesse do proprietário ou sua comodidade e nunca como instrumento de capricho, vingança ou com o fito de causar dano a outrem.” MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Curso de direito civil: direito das coisas. Volume V. São Paulo: Atlas, 2015, p. 109.
11 – BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos da responsabilidade civil do terceiro cúmplice. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC nº 30. Abril-junho. 2007. Rio de Janeiro: Padma Editora, p. 91.
12 – Exemplificativamente: em 2020, no primeiro bimestre, o INPI anota que 82% dos pedidos foram formulados por estrangeiros. Dados disponíveis em https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/estatisticas/arquivos/publicacoes/boletim-mensal-de-propriedade-industrial_mar_2020.pdf.
13 – “10. O anteprojeto incorpora diversas medidas de salvaguardas, permitindo o exercício dos direitos conferidos pela patente de forma compatível com o interesse público. Assim, a contrapartida da proteção assegurada pelo Estado ao inventor consiste no dever deste de explorar economicamente o objeto da patente, de forma a permear na estrutura social, em benefício da coletividade, ou efeitos da exploração. Admite-se, em consequência, a concessão de licenças compulsórias nas situações em que o objeto da patente não esteja sendo afetivamente explorado e nos casos de interesse público e de emergência.” Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1996/lei-9279-14-maio-1996-374644-exposicaodemotivos-149808-pl.html, última visualização em 13.08.2017, às 23:09.
14 – “O direito é também a arte ou virtude de chegar à solução justa no caso concreto. E de facto, dirige-se em última análise à solução de casos concretos.” ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13ª edição refundida, 5ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 2011, p. 14.
15 – BARBOSA, Denis Borges. Por uma visão imparcial das perdas e danos em propriedade industrial. In Grandes temas da atualidade: Propriedade Intelectual, inovação tecnológica e bioenergia. Organizado por Charlene Maria C. de Ávila Plaza, Nivaldo dos Santos, Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega e Eriberto Beviláqua Marin. P. 183-228. Goiânia: Ed. PUC Goiás, 2009, p. 184.
Fonte: Migalhas