Analistas econômicos têm criticado a iniciativa do governo federal de instituir uma margem de preferência de 25% para os produtos de fabricação nacional destinados à área da saúde. Dizem eles que o déficit comercial do setor não justifica tal decisão, uma vez que hoje sobram dólares no País para custear importações; que o apoio governamental à indústria farmacêutica deveria se concentrar em critérios como modicidade de preços e qualidade dos produtos, e que os recursos públicos deveriam ser investidos inteiramente na melhoria dos serviços.
A preferência para o produto nacional, consagrada nas políticas industriais de todos os países economicamente fortes, é forma de incentivo a setores estratégicos da indústria que vem sendo reintroduzida no Brasil desde o governo Lula por meio da Medida Provisória nº 495, editada em julho de 2010 e convertida em lei (nº 12.349) em dezembro de 2010. O decreto regulamentador dessa preferência na área da defesa já foi editado, e agora é a vez da saúde pública. É natural que lobbies de empresas estrangeiras e tradings da importação se movimentem para tentar bloquear o processo, inclusive acusando de lobby quem defende o uso do poder de compra do Estado em favor da indústria nacional, como o ex-ministro José Temporão.
O argumento de que hoje não há falta de dólares no País para gastar com importações denota visão de curtíssimo prazo, inteiramente descompromissada com princípios de sustentabilidade da indústria e de agregação de valor ao PIB brasileiro. Esse ponto de vista menospreza, ainda, o fato de que a concessão de preferência para o produto nacional é uma política compensatória, instituída para minimizar os efeitos nefastos da concorrência predatória com produtos importados fartamente subsidiados na origem. Não se trata, pois, de nenhum privilégio, mas de defesa comercial do País numa área socialmente sensível: a saúde pública.
Nos EUA, a preferência para o produto nacional está consolidada desde 1933, com o Buy American Act. A China, que na última década vinha utilizando principalmente sua moeda desvalorizada como instrumento de política industrial, há alguns anos passou a diversificar seus instrumentos de incentivo, incluindo a preferência para produtos nacionais. Por meio do programa Indigenous Innovation Policy, lançado em 2006, o governo chinês se obriga, entre outras medidas, a comprar produtos protegidos por patentes com tecnologia gerada na China.
A ideia de que o apoio à indústria nacional na área da saúde seja condicionado à modicidade de preços e qualidade dos produtos não é incompatível com a preferência para o produto fabricado no País, bem ao contrário. Um dos fatores que motivaram as primeiras medidas de estímulo à produção farmacêutica nacional, ainda no governo Lula, foi a baixa qualidade de insumos importados da China, que vinham gerando prejuízos para laboratórios públicos como Farmanguinhos/Fiocruz. O que garante a qualidade do produto é a fiscalização do comprador, e o Governo, por meio da Anvisa ou do Ministério da Saúde, tem melhores condições de fiscalizar os produtos fabricados no País.
A modicidade de preços é tema espinhoso em tempos de dumping cambial e exacerbação do protecionismo em escala global. De qualquer forma, o Governo está atento à questão. Preços descendentes no período de contratação, inovação tecnológica e transferência de tecnologia constam da agenda dos fóruns governamentais que tratam da matéria.
O marco regulatório criado em 2008 na área da saúde levou à criação de 30 parcerias de desenvolvimento produtivo (PDP) envolvendo laboratórios públicos e privados, nacionais e multinacionais com operações no Brasil, numa clara demonstração de que o que se busca é a fabricação local, com geração de emprego e renda no País, sem ranço xenófobo. Essas PDPs já respondem por cerca de 12% do valor das atuais importações de fármacos, medicamentos e vacinas, proporcionando economia de R$ 250 milhões ao ano para o orçamento público, que deverá, até 2015, superar R$ 500 milhões por ano.
Os serviços de saúde pública podem e devem melhorar. Mas a indústria que lhes dá suporte precisa ter raízes no País, caso contrário ficaremos à mercê das flutuações internacionais de oferta e preços de produtos essenciais. Concorrência predatória também faz muito mal à saúde.
Nelson Brasil de Oliveira é vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina (Abifina)
Fonte: Correio Braziliense (03/02/2012)