A capacitação produtiva brasileira na área de anti-retrovirais (ARVs) deve ser analisada sob um múltiplo enfoque, como apresentado a seguir.
Capacitação científica e tecnológica
• Para o desenvolvimento tecnológico de moléculas que se encontram sob patente, uma vez equacionado o problema legal, já existem várias empresas no Brasil operando com competência comprovada nessa área, dentre elas podemos citar a Cristália, a GENVIDA e a NORTEC, que já provaram serem capazes de atender ao desafio do Programa DST e AIDS. Estas empresas foram selecionadas pelo referido programa para desenvolver, respectivamente, a síntese das moléculas do Lopinavir, Tenofovir e Efavirenz, caso o governo venha a se decidir pelo licenciamento compulsória das respectivas patentes.
• Para desenvolvimento de novas terapias e novas moléculas, também temos, no Brasil, várias empresas e centros de pesquisa, distribuídos em várias regiões do país, que poderiam trabalhar em parceria, desenvolvendo grande número de novas terapias e novas moléculas contra a AIDS.
• Podemos destacar, dentre outros pesquisadores com competência comprovada, o prof. Rajendra Mohan Srivastava, Ph.D. do Departamento de Química Fundamental da Universidade Federal de Pernambuco, o Prof. Vitor Francisco Ferreira, Ph.D. do Instituto de Química da Universidade Federal Fluminense, o Prof. Luiz Carlos Dias, Ph.D. do Instituto de Química da UNICAMP, o Prof. Luiz Juliano Neto Ph.D. do Departamento de Biofísica da Escola Paulista de Medicina e o Prof. Octavio Augusto Ceva Antunes, Ph. D. do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
É inquestionável a competência brasileira nessa área. Como prova a empresa Microbiológica, que tem até exportado tecnologias industriais de NCE (New Chemical Entities) para clientes americanos e europeus realizarem estudos de aplicações pré-clinicas e clinicas de novos medicamentos para AIDS e Hepatite. Alguns desses medicamentos estão no pipeline aguardando aprovação do FDA e brevemente estarão sendo comercializados.
Para desenvolvimento de novas formas medicamentosas, a indústria farmacêutica brasileira e os centros de pesquisa existentes no Pais, também já comprovaram capacidade para desenvolver todas as formas de apresentação farmacêutica. O melhor exemplo dessa competência é a produção de genéricos pelos laboratórios farmacêuticos brasileiros, tais como, EMS, Eurofarma, Ache/Biosintética e Medley, entre outros, capazes de desenvolver formas medicamentosas, com garantia de qualidade e eficácia comprovados pela Anvisa.
Capacitação industrial para fármacos (APIs)
• Para produtos não patenteados
Como exemplo de capacitação produtiva industrial, pode ser citado o caso do AZT brasileiro, desenvolvido em 1992 pela empresa Microbiológica de modo pioneiro no mundo, de forma totalmente verticalizada com a sua síntese total em 5 etapas, desde a matéria-prima básica Timidina até o principio ativo AZT (API).
Várias empresas no Brasil têm competência técnica comprovada e capacidade de produção instalada para a fabricação de intermediários e princípios ativos em grande escala, dentre elas podemos citar a Alfa Rio Química, para intermediários de síntese, a NORTEC e a Cristália para os APIs.
Para produzir os cerca de 51.000 kgs de APIs para os ARVs (Zidovudina, Estavudina, Indinavir e Lamivudina), a farmoquímica brasileira tem capacidade instalada para processar os cerca de 800.000 kgs de intermediários necessários. Esses números, por si só, atestam a indiscutível capacidade de produção da farmoquímica brasileira.
• Para os produtos patenteados
As necessidades do Ministério da Saúde no ano de 2005, para aqueles medicamentos onde havia intenção de serem licenciados compulsoriamente para fabricar no país, foram as seguintes: Tenofir – 1.800 kg/ano; Kaletra (Rito + Lopi) – 13.000 kg/ano; e Efavirenz – 18.000 kg/ano.
Como vemos, os quantitativos necessários estão perfeitamente dentro da capacidade brasileira de produção, já instalada e em operação.
Capacitação industrial para medicamentos
Há várias empresas no Brasil com competência técnica comprovada e com capacidade de produção em grande escala das versões genéricas dos ARVs. Como exemplo de capacitação nessa área citamos as cápsulas de 100 mg do “AZT brasileiro” que utilizou como matéria-prima o principio ativo AZT, totalmente sintetizado pela empresa Microbiológica, e a produção de cápsulas na empresa Mappel, ambas no Rio de Janeiro. Os primeiros medicamentos do “coquetel” também foram desenvolvidos de forma semelhante.
É importante ressaltar que quando foi lançado o “AZT brasileiro”, em 1992, os pacientes brasileiros foram contemplados com um medicamento considerado de qualidade superior ao do medicamento de referência, pois o “AZT brasileiro” foi desenvolvido por uma rota de síntese que produz um farmoquimico com um perfil de impurezas menor que o produto patenteado.
Deste modo, apesar do número de portadores do HIV tratados pelo Ministério da Saúde ser extremamente elevado, sendo considerado o maior programa do mundo, utilizado pela OMS como referência mundial, e apesar do grande número de medicamentos (coquetéis) que cada individuo tem de tomar, a capacidade brasileira para a produção de APIs e de medicamentos atende facilmente as necessidades do país.
Capacitação para testes de bioequivalencia e biodisponibilidade
Há competência para executar testes de bioequivalência e biodisponibilidade e atestar obrigatoriamente a qualidade e eficácia dos medicamentos genéricos produzidos no Brasil, como comprovado pela indústria de genéricos que foi recentemente implantada e não para de crescer.
Capacitação para garantia da qualidade de APIs e Medicamentos
A Anvisa regula o setor com padrão internacional, garantindo a qualidade em todos os segmentos do processo de produção no Brasil, inspecionando todas as etapas, desde a produção de intermediários de síntese, produção de APIs e produção de medicamentos, até os testes de biodisponibilidade e bioequivalencia, exigindo atendimento das Boas Praticas de Fabricação para cada etapa do processo. Os APIs e medicamentos produzidos no Brasil têm padrão internacional garantido pela Anvisa.
Capacitação do Programa DST e AIDS
Está comprovado, inclusive por organismos internacionais como a OMS, que o Programa Brasileiro de DST e AIDS tem competência para definir, aplicar, acompanhar e avaliar o tratamento de portadores do HIV, tanto no Brasil quanto nos países subdesenvolvidos que precisarem de ajuda. Com toda a experiência acumulada em mais de 20 anos é possível imaginar que o Programa Nacional de DST e AIDS poderá coordenar o trabalho de desenvolvimento de novos medicamentos e novas formulações de Doses Fixas Combinadas específicas para o Brasil e para os países subdesenvolvidos que não tenham condições de arcar com os crescentes custos dos novos medicamentos.
Capacitação no apoio da Sociedade Civil Organizada
As Organizações de Sociedade Civil são parceiras históricas do Ministério da Saúde no combate à epidemia. Este modelo de parceria é uma singularidade do Programa Brasileiro e tem garantido a implementação do art. 196 da Constituição Federal que institui a saúde como direito de todos e dever do Estado. A Sociedade Civil Organizada apóia abertamente a produção nacional de APIs e Medicamentos como forma de garantir a sustentabilidade econômica do Programa Nacional de DST e AIDS.
Capacitação para a exportação
Para atender ao mercado brasileiro competitivamente temos de atuar de forma global e, deste modo, temos de produzir em escala econômica que viabilize exportações com qualidade e preços competitivos. As empresas brasileiras que sobreviveram no mercado foram aquelas que se qualificaram para nichos privados de mercado, nacionais e internacionais, altamente qualificados, e, portanto, estão aptas para exportação.
Além de todos esses fatores, temos ainda a atual política industrial, tecnológica e de comércio exterior do Brasil que privilegia a cadeia químico-farmacêutica e o Programa Profarma do BNDES, que financia todo o setor dessa cadeia de modo muito favorável.
Se temos todas essas competências absolutamente necessárias para a produção nacional de APIs e medicamentos anti-retrovirais no Brasil, então, o que falta?
Faltam-nos interlocutores adequados e com poder decisório, comprometidos com o desenvolvimento tecnológico e industrial do Brasil, que possibilitem criar a sinergia necessária em todas as instâncias do governo. Faltam-nos formas adequadas de financiamento de risco, para desenvolvimento de novas terapias, que, até aprovação final dos Órgãos Reguladores para comercialização, demandam dezenas de milhões de dólares e consomem vários anos de pesquisa. Faltam-nos empresas farmacêuticas de porte global que possam distribuir os medicamentos em escala mundial e, assim, obter o retorno dos altíssimos investimentos necessários para essas produções. Falta-nos a garantia de compra do governo para o atendimento ao mercado brasileiro por ele suprido, com programas plurianuais que permitam as empresas possam investir no desenvolvimento das unidades produtivas, adquirir matérias-primas e contratar serviços, sem risco de concorrência desleal e predatória. Falta-nos visão empresarial para acreditar no mercado externo de medicamentos que, continuamente, está se expandindo com o crescente numero de infectados, somando atualmente, 40.000.000 de indivíduos. Falta-nos eliminar as amarras burocráticas e legais que impedem os laboratórios oficiais de contratar empresas domésticas para o desenvolvimento tecnológico e a produção dos medicamentos não patenteados. Falta-nos a decisão de acabar com o uso de pregões invertidos para compras de APIs que não requerem pré-qualificação de fornecedores, e que leva os laboratórios oficiais a perderem 30% do que adquirem nos pregões por falta de qualidade, confor-
me declaração do próprio presidente da ALFOB.
Outras considerações
O Governo ameaça, há cinco anos, “quebrar” (em realidade licenciar compulsoriamente) patente de medicamentos do coquetel da AIDS. Quando a licença compulsória for concedida, vai-se exigir da farmoquímica brasileira preços de APIs equivalentes aos asiáticos? Nenhuma farmoquímica brasileira poderá atender, instantaneamente, a demanda nacional nessas condições.
No início dos anos 90 foi sugerido aos laboratórios oficiais o desenvolvimento de medicamentos em doses fixas combinadas (FDC), adiantando a tendência do que iria acontecer no futuro. A idéia foi rechaçada, considerada inexeqüível. Posteriormente a Wellcome lançou o primeiro medicamento 2 em 1 do coquetel. Perdeu-se a oportunidade por falta de interlocutores adequados.
Recentemente foi levado ao Ministério da Saúde e à Anvisa proposta para a produção de medicamentos inovadores em doses fixas combinadas sem similares no mundo – oportunidade criada devido a dificuldade de laboratórios internacionais aceitarem a idéia de se associarem em projetos comuns. O Programa DST e AIDS Brasileiro, como referencia mundial, poderia desenvolver com facilidade esses novos medicamentos. Não haveria necessidade de atender a todas as fases de desenvolvimento de um medicamento novo – teriam que ser feitos apenas os testes de medicamento genérico. Não se encontraram interlocutores para levar adiante essa idéia, porém, o Ministério da Saúde tem anunciado que vai “copiar” Doses Fixas Combinadas que estão sendo fornecidas por produtores indianos para a África.
Não há dúvidas que a farmoquímica e a farmacêutica brasileiras são capazes de produzir, de forma verticalizada no Brasil, qualquer um dos ARVs. Com a atual demanda de medicamentos para os Programas Internacionais de ajuda aos países subdesenvolvidos, poderão faltar até ARVs mais antigos, como AZT e Lamivudina, e, deste modo teremos de suprir nossas próprias necessidades, da forma mais verticalizada possível. Quando o Brasil começou a produzir ARVs em 1992, indianos e chineses não estavam no mercado – hoje têm sido imbatíveis na comercialização de APIs e medicamentos ARVs para o Brasil, para os demais países subdesenvolvidos e também para o primeiro mundo.
Quem diz que a indústria nacional não tem a capacidade tecnológica para suprir a demanda nacional de anti-retrovirais, quer desconstruir o conceito de universalidade do tratamento, atingir o Programa Nacional de DST/AIDS e a possibilidade do país manter a soberania nessa área. Ou será soberana a nação que trata a saúde de sua população com fármacos que não falam a sua própria língua?