A pergunta dá a tônica desta entrevista com Rodolfo Guttilla, sócio cofundador da Cause, consultoria especializada na gestão de causas. Jornalista, cientista social e mestre em antropologia, é autor do livro “Como implementar uma estratégia ESG: do propósito à ação”. Ele analisa o percurso da agenda socioambiental até o que hoje chamamos de ESG, termo que ganhou fama e se tornou presente em boa parte das publicações, eventos, artigos e debates sobre a gestão sustentável nas empresas.
A sigla em inglês que sintetiza os princípios ambiental, social e de governança não é sinônimo de sustentabilidade, alerta Guttilla, embora sejam conceitos afins. O novo termo dá ênfase para o posicionamento frente aos investidores e acionistas, mas também aumenta o compromisso entre discurso e prática. Na conversa, o especialista ainda indica caminhos para empresas que pretendem avançar nessa jornada.
Responsabilidade social corporativa, sustentabilidade empresarial e agora ESG: o senhor pode explicar a evolução desses conceitos?
Tudo começa com uma agenda de filantropia no Brasil, muito ligada às igrejas, em particular a Católica. Desde os anos 1700, havia uma perspectiva de doação para determinados fins sociais, seja a construção de uma igreja para os pretos, seja a construção de uma Santa Casa de Misericórdia. Havia doação de roupas, cobertores, alimentos… Isso remonta a um passado relativamente distante.
A filantropia empresarial, por outro lado, é relativamente nova. Ela remonta ao final do século XIX, nos Estados Unidos. No Brasil, acontece mais a partir do século XX, quando as empresas começam a apoiar o que vou chamar de causas sociais, aquelas ligadas às demandas de seus funcionários, como as vilas operárias.
Algumas empresas perceberam que sua ação social tinha um impacto relevante e tiveram a sabedoria de se perguntar: “o que posso fazer de melhor para apoiar essa comunidade aqui?”.
Pode dar exemplos?
Uma dessas empresas foi a Natura, na qual tive o privilégio de participar da criação da área de responsabilidade social, nos anos de 1990. A Natura se perguntou quais seriam as principais demandas da comunidade onde estava sua fábrica, em Itapecerica da Serra (SP). Concluiu-se que educação fundamental era um aspecto crítico.
Reconhecendo não ter competência para discutir educação, a empresa buscou uma organização não governamental e criou um programa de formação continuada de professores e retenção de alunos. Esse foi um marco na história da ação social no Brasil – já não era mais filantropia.
Então a filantropia teria como característica a doação e não uma ação pensada, organizada e estruturada?
Isso mesmo. É nesse contexto de ação de impacto social que veio a grande sacada de uma certa inovação social, de uma certa tecnologia de impacto social, que consistiu em incluir representantes da escola e da Natura na organização do projeto.
Os anos 1990 foram um divisor de águas, lembrando que, nessa época, surgiu o Instituto Ethos, que cunhou o termo responsabilidade social corporativa.
Nesse momento, também surge outra organização, nos Estados Unidos, chamada Global Reporting Initiative, cuja missão é apoiar organizações na publicação de relatórios de sustentabilidade. Esta envolve o triple bottom line – o tripé social, ambiental e econômico.
Com a evolução da discussão socioambiental e tendo por inspiração a Rio-92, o empresariado mais contemporâneo adota o termo sustentabilidade, dando impulso para essa agenda com rituais de governança e indicadores de processo e de resultado.
Isso foi uma mudança muito importante porque as ações sociais e de compensação de impactos ambientais foram, digamos, coladas. Algumas empresas tiveram sucesso e são reconhecidamente sustentáveis.
Então, falamos da diferença da responsabilidade social para a sustentabilidade. No ESG, entrou um novo player, que é o mercado financeiro. Aquela turma que analisa riscos e oportunidades para as empresas e que nunca se interessou pelo assunto. Atualmente – e muito influenciado pela gestora de investimentos Black Rock – esse novo interlocutor entrou na festa.
O que provoca a virada de chave no mercado financeiro?
O mercado é implacável e o pragmatismo predomina. Passou-se a precificar as empresas que têm a gestão da sustentabilidade na sua estratégia de negócio. O mercado atribui valor porque sabe que a sustentabilidade mitiga os riscos do investimento.
Quais são os benefícios para empresas, meio ambiente e sociedade com a nova perspectiva ESG?
Quando o mercado precifica uma estratégia orientada por princípios ESG, promove ganhos para os acionistas. Traz ganhos também para a cadeia produtiva: fornecedores, comunidades, indústrias de transformação e de embalagens, transportadoras.
É importante pontuar que ESG não é um novo nome para sustentabilidade. Como diz o professor da FGV e querido amigo, Aron Belink, em um artigo, o propósito do ESG é “garantir a perpetuidade da empresa como instrumento de geração de valor para seus acionistas e investidores ou proprietários”. A sustentabilidade, por outro lado, é mais ampla: pretende que a atividade econômica preserve o meio ambiente e distribua riqueza pela sociedade, reduzindo as desigualdades e promovendo a inclusão.
O aspecto econômico da sustentabilidade é incorporado pela governança na perspectiva ESG?
O econômico entra no campo da governança e faz parte de um olhar mais transversal: está no social, no ambiental, na governança. A dimensão econômica não deixou de existir na visão ESG.
Quanto à governança, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa estabelece quatro princípios básicos: transparência, equidade, prestação de contas – ou accountability – e responsabilidade corporativa.
Entre o ambiental, o social e a governança, qual aspecto encontra-se mais avançado e mais atrasado na gestão das empresas brasileiras?
O social é o mais desafiador porque não existe uma metodologia para interpretar como uma empresa pode gerar impacto social fora de seus muros, ou seja, além de seus funcionários. E isso acontece no plano global. Voltando ao exemplo da Natura, ela criou um índice próprio de desenvolvimento humano de suas consultoras. Mas a maioria das organizações não sabe como fazer isso. Diferentemente, os indicadores, as ameaças e as soluções da agenda ambiental são muito claros e conhecidos.
Vi uma pesquisa feita recentemente pela PwC em que foram entrevistados 4,4 mil CEOs do setor de energia e serviços de utilidade pública em 100 países. Quando perguntados sobre as principais ameaças aos negócios nos próximos cinco anos, as respostas são mudanças climáticas, conflitos geopolíticos, instabilidade macroeconômica, riscos cibernéticos, inflação e risco sanitário – todos aparecem antes de desigualdade social, que é a última preocupação na lista. Por quê? Pragmatismo. Isso é revelador de uma elite que não entende que a desigualdade social é fator de crise ambiental. Que a desigualdade social é fator de instabilidade política. Que a desigualdade social é fator de crise nas indústrias, porque não vai ter gente qualificada.
Há indicadores comparáveis mundialmente para medir o desempenho ESG das empresas?
Existem várias iniciativas buscando criar modelos de avaliação e indicadores. É uma discussão antiquíssima, talvez de uns 20 anos. Hoje existem muitos selos certificadores. Esses já são um importantíssimo primeiro passo para as organizações se alinharem aos princípios da sustentabilidade. Você tem o Índice de Carbono Eficiente, o Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3 no Brasil, uma série de certificações ISO para governança, meio ambiente e responsabilidade social. E existem esforços internacionais bastante avançados para buscar um consenso em torno do que seria um indicador ESG que sirva como régua comum para organizações de todos os setores.
A agenda ESG no Brasil está no mesmo patamar das empresas internacionais?
A agenda da sustentabilidade está avançada no Brasil. Uma pesquisa global divulgada em março do ano passado demonstrou que 50% dos líderes de alto escalão das empresas brasileiras esperam que a sustentabilidade seja incorporada em toda estratégia de negócios nos próximos cinco anos. No mundo, apenas 39% dos CEOs tinham essa expectativa. Ao mesmo tempo, a pesquisa da PwC que mencionei aponta que 69% das empresas brasileiras já implementaram ou estão implementando iniciativas para reduzir suas emissões de gases do efeito estufa. É um número importante.
Como vê o movimento ESG na indústria de química fina?
Fui vice-presidente da Abihpec, a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos. Nesse setor específico, posso dizer que a indústria de química fina tem dado passos muito importantes na gestão ambiental nas últimas duas décadas. Vejo uma agenda ambiental bem mais estruturada. A governança também é bastante adequada. Já o social enfrenta o gap multissetorial sobre o qual comentei.
Quais oportunidades ainda podem ser aproveitadas?
Identificar oportunidades no campo social e levá-las para a cadeia de suprimentos. A indústria química depende de insumos que vêm de mineração, extratos vegetais e várias outras fontes. É preciso observar a qualidade das condições de trabalho, da remuneração dos trabalhadores, da igualdade de gênero. Sabemos que, em alguns países, essas questões não são adequadas.
Também sabemos que muitos insumos vêm de países onde existem governos autoritários e não democráticos. Compraremos desses países? Se não comprarmos, qual será o impacto na vida da população nesse lugar? Não existe resposta simples para problemas complexos. Então acho que o caminho é abrir a discussão. E trazê-la para a Diretoria, o Conselho de Administração, as associações de classe, o governo. Não podemos fingir que nada está acontecendo. Por serem problemas que extrapolam os muros de uma única empresa, é preciso somar forças para encontrar alternativas.