A adoção de dispositivos para ampliar o prazo de vigência de patentes é prejudicial à concorrência e dificulta o acesso a medicamentos. O alerta foi feito por especialistas durante o XIII Seminário Internacional Patentes, Inovação e Desenvolvimento (SIPID), cujo tema foi “Propriedade intelectual e saúde”. Realizado pela ABIFINA em parceria com a FIOCRUZ em 8 de dezembro, o evento ganhou sua primeira edição no formato híbrido, tendo reunido mais de 150 participantes presencial ou virtualmente.
Durante uma tarde, representantes da indústria, da academia e do setor público apresentaram diversos mecanismos de extensão da vigência de patentes implementados em diferentes países e as respectivas consequências para a fabricação e comercialização de medicamentos. Palestrantes e debatedores também defenderam a existência de um sistema de propriedade intelectual justo, capaz de incentivar a inovação e, ao mesmo tempo, possibilitar a concorrência no mundo todo. Isso implica, na visão dos participantes, combater a proteção patentária abusiva.
“Um sistema justo de patentes é assunto que vem da origem da ABIFINA. Saúde é desenvolvimento e também é igualdade. E nós temos que observar como o instrumento da propriedade intelectual pode trazer melhoria à vida dos brasileiros”, frisou o presidente-executivo da ABIFINA, Antonio Carlos Bezerra, na abertura. A relação entre propriedade intelectual e saúde também foi lembrada pelo vice-presidente de pesquisa e coleções biológicas da Fiocruz, Rodrigo Correa de Oliveira. “O tema da propriedade intelectual impacta o que entendemos de saúde pública no País, e essa discussão está no mundo inteiro”, afirmou.
Aumento de preços
Estudos realizados em vários países revelam que um dos principais efeitos da concessão de prazos maiores para as patentes de medicamentos é o aumento do preço para a população e para os sistemas de saúde. A explicação é simples: quanto mais tempo dura o monopólio comercial de um produto, mais tempo leva para que concorrentes possam atuar. No caso de produtos farmacêuticos, isso significa uma demora maior para que genéricos cheguem ao mercado e possam competir com os medicamentos de referência, ou de marca.
Durante a palestra magna, a advogada Pascale Boulet – especialista em PI da iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) – apresentou exemplos desse fenômeno na União Europeia (UE). Segundo ela, desde 1993 a UE prevê a concessão dos chamados certificados de proteção suplementar (SPC, na sigla em inglês) para produtos farmacêuticos. O dispositivo foi criado com o objetivo de compensar a demora na aprovação de patentes e garantir ao menos 15 anos de proteção patentária efetiva. Os certificados só são concedidos sob condições bem restritas (ver box ao final da matéria) e, apesar dos critérios rigorosos, cerca de 20 mil SPCs foram concedidos desde que o dispositivo entrou em vigor até hoje.
Extensão de patentes no Brasil
A possibilidade de adoção, pelo Brasil, de mecanismos de extensão de vigência de patentes também foi abordada no SIPID, em tom de críticas. Os participantes frisaram que a Lei de Propriedade Industrial (LPI) já nasceu TRIPs Plus, isto é, com dispositivos que ampliam a proteção patentária para além do previsto no tratado internacional. “A nossa legislação inclui patentes pipeline”, lembrou a pesquisadora e professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) Julia Paranhos.
Também foram criticadas as tentativas de detentores de patentes de reverterem decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em 2021, considerou inconstitucional e suspendeu os efeitos do parágrafo único do artigo 40 da LPI, instrumento que estendia a validade de uma patente em caso de atraso na análise pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). “Quando o STF, depois de oito anos de trâmite de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), apreciou e dirimiu que o sistema jurídico no Brasil não comporta exclusividade de finalidade, parecia que uma nova era tinha sido inaugurada em termos de segurança jurídica e acesso a saúde. Pouco tempo depois, parece que a mensagem aparentemente não está fazendo sucesso”, lamentou o advogado e consultor jurídico da ABIFINA Pedro Barbosa, que moderou o painel de abertura “Prorrogação de prazos de vigência e prejuízos para o Brasil”.
Para o pesquisador da Fiocruz Jorge Bermudez, um dos debatedores do painel, a existência do mecanismo previsto no parágrafo único do artigo 40 sequer se justifica. “A aprovação pelo STF da inconstitucionalidade da nossa lei não pode ser contestada. Mesmo com o backlog e a demora na análise de patentes pelo INPI, que é a justificativa que se coloca, a expectativa de patentes cria um monopólio de fato, porque não há concorrência nesse período”, argumentou. Ele defendeu que é preciso haver um equilíbrio entre o direito dos inventores, a proteção patentária, as leis internacionais sobre direitos humanos, as regras do comércio internacional e a saúde pública. Ele criticou ainda o que chamou de apartheid no acesso a medicamentos em países pobres e populações vulneráveis, resultado, na sua visão, de um sistema de propriedade intelectual que tem privilegiado a concessão de patentes de forma excessiva, em detrimento da saúde pública.
Os participantes foram unânimes em afirmar que não existem prerrogativas legais que obriguem o Brasil a adotar instrumentos para extensão de vigência de patentes. Boulet destacou que o Acordo TRIPs, do qual o País é signatário, não exige mais que vinte de anos de proteção. Por isso, é preciso refletir a respeito das consequências da adoção de dispositivos para estender a vigência de patentes, sobre quem seria beneficiado com essa decisão, que efeitos isso teria nos preços de comercialização de medicamentos e ainda se existem evidências de que tais instrumentos são mesmo necessários para que o inventor recupere o investimento em pesquisa e desenvolvimento. Para ela, essa adoção deve estar condicionada a mais transparência sobre os custos de pesquisa e desenvolvimento das empresas, além de levar em consideração o interesse público.
Pedro Barbosa condenou a proposta de o Brasil implementar um mecanismo como o SPC. “Não é cabível falar em importação de SPC sem previsão legal. A própria implementação tem uma serie de embaraços. É comum que pedidos de patentes tenham dezenas de reinvindicações e, às vezes, é só num pedaço de uma reivindicação que consta o medicamento. Na hora de implementar o SPC, no caso de atraso da Anvisa, vão considerar qual reivindicação?”, questionou.
Na mesma linha, o advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) Alan Rossi rechaçou a ideia de o Brasil aderir a mecanismos de compensação pela demora na aprovação de uma patente, como o Patent Term Adjustment (PTA), existente nos EUA, por entender que se trata de um abuso na proteção patentária.
“O PTA é inconstitucional. Ele viola o que está na ADI 5529 que foi julgada pelo STF, porque a ADI não foi só sobre automaticidade do parágrafo único do artigo 40, mas sobre a indeterminação dos prazos causados pelo parágrafo único, e isso persistiria no caso do PTA”. Alan Rossi, ABIA.
Já a pesquisadora Julia Paranhos alertou que o risco hoje está em acordos comerciais bilaterais, que trazem cláusulas impostas por países desenvolvidos para ampliar a exclusividade de exploração comercial de uma invenção. Segundo ela, o excesso de proteção prejudica a concorrência e pode aumentar a dependência externa brasileira de produtos e insumos importados. “Temos que nos perguntar se diminuir a concorrência pode trazer um efeito positivo, porque defender patente é diminuir a concorrência. Sabemos que aumentar a concorrência reduz o preço geral, pela entrada dos genéricos. Temos um estudo que mostra que a redução chega a mais de 80%”, frisou. “Não é a extensão da patente que determina se o produto inovador vai ser introduzido no Brasil ou não. É a demanda do sistema de saúde, e temos uma demanda significativa. A área de saúde é estratégica para o País e não dá mais para discutirmos esses mecanismos que pioram a nossa capacidade de produzir, de responder às demandas de saúde e de manter o orçamento do SUS”, concluiu.
Modernização da LPI
A preocupação com a possibilidade de modernização da nossa Lei de Propriedade Industrial (LPI) foi abordada no debate do segundo painel. Os participantes questionaram a implementação de mudanças na legislação, com novos dispositivos que aumentariam a proteção patentária. Também alertaram para a necessidade de que sejam feitas melhorias no INPI que reflitam no sistema de patentes nacional.
O diretor substituto de Patentes, Programas de Computador e Topografias de Circuitos Integrados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (DIRPA/INPI), Alexandre Dantas, defendeu que a modernização do sistema de propriedade intelectual brasileiro passa necessariamente pela modernização e bom funcionamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com contratação e capacitação de servidores. “Do ponto de vista administrativo, é importante que as instituições que afetam a proteção desse tipo de direito estejam realmente aparelhadas para desempenhar um trabalho eficiente”, afirmou. Isso porque, segundo ele, as discussões sobre a necessidade de ampliação do prazo de proteção passam pela atuação tanto do escritório que concede o direito como da agência que regula a comercialização. “Se garantirmos que as instituições possam realizar o trabalho em um tempo adequado, a gente esvazia a discussão sobre a necessidade de um termo de ajuste”, acrescentou.
Na opinião da consultora de Patentes da Biolab Farmacêutica Camila Raposo, a proteção patentária serve como estímulo ao investimento em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos. No entanto, ela advertiu para o perigo do uso abusivo dessa proteção. “As discussões estão sendo muito focadas em extensão de prazo, mas a gente já tem 20 anos de monopólio, independente de o INPI atrasar ou não o exame no Brasil. Nossa lei tem um parágrafo que garante isso”, afirmou.
Há também o receio de que a ampliação no monopólio limite a inovação no Brasil. Para a mediadora do debate, Ana Claudia Dias de Oliveira, consultora de Propriedade Intelectual e Biodiversidade da ABIFINA, uma das preocupações é a possibilidade de ampliação do escopo da patente, como estratégia para ampliar o monopólio de um produto. Para ela, isso é um risco maior para produtos oriundos da biodiversidade nacional. “Os brasileiros são os principais titulares de patentes relativas à biodiversidade. Se aumentar o escopo, o monopólio vai passar para as multinacionais. A gente consegue inovar com a nossa biodiversidade. E aumentando esse escopo e podendo patentear tudo, até que ponto vamos conseguir desenvolver e estaremos livres para usar com responsabilidade ambiental a biodiversidade brasileira?”, questionou.
Prêmio Denis Barbosa
A 13ª edição do SIPID teve também a entrega do sétimo Prêmio Denis Barbosa de Propriedade Intelectual, que este ano foi dado à Biolab Farmacêutica. A empresa foi escolhida pelo extenso portfólio de patentes concedidas no Brasil e em outros países, o maior número entre as associadas da ABIFINA. Em vídeo gravado para o evento, Dante Alario Júnior, CSO da Biolab, agradeceu a homenagem e defendeu a capacidade da indústria brasileira. “O maior número de patentes depositadas e concedidas à Biolab são de origem farmoquímica, patentes de síntese. Ou seja, é possível fazer inovação radical no Brasil, é possível desenvolver novas moléculas para serem feitas aqui”, celebrou. A Biolab se junta a empresas e instituições como a EMS, o INPI e a Anvisa, e a pessoas como o Desembargador André Fontes, o advogado Pedro Barbosa e um dos fundadores da ABIFINA, Nelson Brasil, que foram agraciados com a honraria nos anos anteriores.
Regras para concessão dos Supplementary Protection Certificates (SPC) na União Europeia
- Máximo de cinco anos adicionais de proteção patentária
- Necessário haver ao menos dez anos transcorridos entre o depósito do pedido e a aprovação da patente
- Apenas um SPC concedido por produto
- Medicação precisa ser protegida por uma patente ainda válida e já possuir autorização para comercialização
- A autorização para comercialização deve ter sido a responsável pela chegada do produto ao mercado
Os efeitos negativos observados após o surgimento dos SPCs são diversos, apontou Boulet. Um deles foi o excesso de judicialização, decorrente das diferentes interpretações das regras pelos diversos escritórios de patentes europeus. O outro foi o aumento de preços de comercialização. Ela citou o exemplo do Truvada, medicação para tratamento de infecção por HIV. Em 2019, seu preço na Suécia, onde o SPC para o medicamento estava em vigência, era de 800 euros, contra 170 euros na França, onde o certificado havia sido revogado, e apenas 30 euros na Holanda, país que nunca concedeu a extensão da patente.
Devido aos problemas decorrentes da aprovação de SPCs, o dispositivo hoje vem sofrendo questionamentos. “O SPC era visto como uma maneira de incentivar o investimento em pesquisa e desenvolvimento e de reduzir os preços de medicamentos pela extensão do período da patente, pois os produtores teriam um período maior para recuperar o dinheiro investido. Mas, após 30 anos da regulação, não há evidências claras de que o SPC aumente a pesquisa e o desenvolvimento na União Europeia. Isso é difícil de medir porque, muitas vezes, o desenvolvimento está localizado em vários países e origina de diferentes entidades, e não houve redução de preços”, concluiu a advogada.
Nos Estados Unidos, onde a concessão de patentes adicionais para medicamentos já patenteados é recorrente, os altos preços desses produtos levaram a uma crise séria de acesso a medicamentos pela população, como ficou evidenciado na palestra da advogada Priti Krishtel, uma das fundadoras e diretoras executivas da I-Mak, iniciativa voltada para a promoção do acesso a medicamentos. De acordo com ela, o excesso de concessão de extensão de vigência de patentes no país tem levado medicamentos a terem até 40 anos de proteção, o dobro do previsto no Acordo TRIPs, retardando a fabricação de genéricos e biossimilares.
Krishtel explicou que a prática de depositar novas patentes relativas a substâncias já patenteadas cria o que ela chama de “patent wall”, ou barreira de patentes, em tradução livre. A tática seria adotada por grandes farmacêuticas para ampliar o período de monopólio comercial e barrar a concorrência. É o caso do Revlimid, medicamento usado no tratamento de um câncer na medula óssea. Lançada em 1996, a medicação está protegida até 2037 (a patente original deveria expirar em 2019), considerando as patentes adicionais concedidas desde sua chegada ao mercado. A maior parte das patentes extras, ou 74%, foram depositadas após a aprovação pela agência reguladora americana FDA (Food and Drug Administration). Como consequência da falta de concorrência, o produto registrou 287% de aumento de preço nos EUA desde o início da comercialização.
Diversos medicamentos que hoje seguem protegidos nos EUA já possuem genéricos comercializados em outros países, a custos mais baixos. Dados de 2015 apresentados por Boulet, da DNDi, revelam que medicamentos inovadores para tratamento de doenças como câncer e hepatite C poderiam custar bem menos em solo americano caso existissem genéricos equivalentes. O sofosvubir, por exemplo, usado contra hepatite C, que na época saía por US$ 84 mil para um tratamento de 12 semanas, poderia custar entre US$ 68,00 e US$ 136,00 (ver tabela).
O cenário atual tem levado a sociedade americana a questionar o funcionamento do sistema de propriedade intelectual do país. Segundo Krishtel, políticos, movimentos sociais e outros representantes da sociedade civil vêm questionando o que identificam como abuso patentário. “Há muita conversa acontecendo sobre se o USPTO (escritório de patentes americano) está concedendo patentes demais e se há recursos e tempo suficientes para que os examinadores possam de fato avaliar os produtos”, contou. Na sua visão, é preciso reformar o sistema de patentes americano para privilegiar a verdadeira inovação. “É hora de elevar o nível de exigência do nosso sistema de patentes”, defendeu.
Medicamentos essenciais da OMS nos EUA – preço original x preço genérico
Medicamento | Preço original nos EUA | Preço de genérico/custo sustentável de produção1 |
Bedaquilina | US$ 30 mil (6 meses) | US$ 48,00 a 101,00 |
Sofosbuvir (SOF) | US$ 84 mil (12 semanas) | US$ 68,00 a 136,00 |
SOF+ledipasvir | US$ 95 mil (12 semanas) | US$ 193,00 |
Simeprevir | US$ 66,3 mil (12 semanas) | US$ 130,00 a 270,00 |
Daclatasvir | US$ 63 mil (12 semanas) | US$ 10,00 a 30,00 |
Imatinib | US$ 30 mil a 100 mil (01 ano) | US$ 119,00 a 159,00 |
Trastuzumabe | US$ 54 mil (01 ano) | US$ 242,00 |
1) http://cid.oxfordjournals.org/content/early/2014/02/13/cid.ciu012.full (cost of production of HCV medicines) | Hill A. etal.,Target prices for mass production of Tyrosine Kinase Inhibitors (TKIs) for global cancer treatment access – Presented at 18th ECCO – 40th ESMO European Cancer Congress, 27th September 2015, Vienna, Austria [abstract number: 1203] | Dzintars Gotham, Joseph Fortunak, Anton Pozniak, Saye Khoo, Graham Cooke, Frederick E. Nytko, III, Andrew Hill; Estimated generic prices for novel treatments for drug-resistant tuberculosis. J Antimicrob Chemother 2017 dkw522. doi: 10.1093/jac/dkw522apresentados