No começo de 2020, o tecnológico mundo do século 21 foi dolorosamente surpreendido pela irrupção de um vírus mortal e altamente contagioso, possibilidade até então considerada improvável. A pandemia de gripe espanhola, de 1918, já se apagara da memória coletiva. Todos os países do planeta se viram à mercê de uma ameaça invisível e, quando a sociedade brasileira cobrou vacinas, deparou-se com a dependência de imunizantes produzidos no exterior. Quando finalmente ficaram prontos, o País não esteve entre os primeiros a recebê-los. Desde então, uma pergunta se impõe: qual a capacidade do parque industrial de saúde brasileiro de pesquisar, desenvolver e produzir uma vacina nacional contra o vírus?
De acordo com o coordenador do centro de Tecnologia de Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador da Fiocruz Ricardo Gazzinelli, a pandemia chamou a atenção da sociedade para a excessiva dependência do Brasil em relação ao mercado externo. “Inclusive para coisas simples como testes de diagnóstico que, no Brasil, dependem de material importado.
Os laboratórios demoraram para elaborar testes de PCR para diagnosticar a covid-19 – os primeiros a fazê-lo foram as universidades. Houve falta até de respiradores, que tiveram que ser produzidos às pressas, evidenciando nossas dificuldades”.
Ricardo Gazzinelli
No entanto, ele ressalta que o País apresenta um “ecossistema de vacina” quase completo, com presença de centros de pesquisa, universidades, indústrias e da rede do Sistema Único de Saúde (SUS). “O problema é a fase de ensaios clínicos”, lamenta ele. “Isso impede que a gente consiga fazer inovação em imunizantes. Trazemos do exterior, produzimos e distribuímos, o que foi o caso da Astrazeneca e da Coronavac. No caso de emergências como a da covid-19, essa situação se torna um problema sério”.
O professor titular de Imunologia Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), diretor de Imunologia do Instituto do Coração e diretor-presidente do Instituto Todos pela Saúde, Jorge Kalil, concorda:
“A Coronavac vinha pronta da China, era só colocar no frasco e entregar. A elaboração de imunizantes envolve muitas etapas, da manipulação das matérias-primas à obtenção do antígeno, passando pela cultura. Só quem domina todo o processo pode efetivamente dizer que produz vacinas”.
Jorge Kalil
O risco ao qual a sociedade foi exposta levantou a questão da necessidade de o tema ser tratado de forma mais rigorosa, talvez até mesmo como política de estado. “Não tenho dúvidas de que a crise provocada pela covid-19 promoveu um debate entre os diversos setores da nossa sociedade, de leigos a autoridades e políticos”, afirma Kalil. “O problema é que, no caso destes últimos, o assunto será rapidamente esquecido, assim que a pressão causada por internações e óbitos diminuir. Nesse ponto, caberá a entidades como a ABIFINA continuar mantendo o tema em pauta e exigir mudanças”. O professor da USP se queixa de que, muitas vezes, ciência e tecnologia são vistas como gasto e não investimento. “Espero que o novo governo as considere como uma política de Estado e recupere, por exemplo, o Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos, que foi muito prejudicado nos últimos anos. É essencial que esse cenário seja revisto, para que a gente não tenha que importar vacinas simples, como a contra o HPV”.
Gazzinelli corrobora a avaliação de Kalil e acredita que houve um aumento de sensibilização da sociedade e dos políticos, inclusive com a apresentação de emendas parlamentares durante a pandemia com o intuito de facilitar o combate às suas consequências. “Desenvolver vacinas contra a covid-19 é um passo importante para o futuro, seria um legado precioso que ficaria dessa pandemia”, acredita.
O pesquisador da Fiocruz lembra que o Brasil nunca destinou recursos suficientes para a área de pesquisa: “Basta ver os orçamentos. São, em média, R$ 150 bilhões para educação, R$ 180 bilhões para a saúde e somente R$ 7 bilhões para ciência e tecnologia. Os políticos não enxergam que extrair minério não vai tornar o País rico. O orçamento de ciência e tecnologia deveria ser pelo menos dez vezes maior”.
E não é por falta de profissionais capacitados, na medida em que o País conta com universidades renomadas, que produzem cientistas e pesquisadores requisitados, inclusive, por instituições estrangeiras. “Infelizmente nossas universidades estão lotadas, não há concursos que possibilitem o ingresso de jovens pesquisadores, o que faz com que eles encontrem melhores oportunidades no exterior. Talento e capacidade técnica nós temos, o que falta é organização, até porque os projetos são complexos e envolvem muitas pessoas, de diversas áreas de conhecimento. A equipe envolvida no desenvolvimento da SpiN-Tec tem em torno de 30 pesquisadores. Destes, cinco são do regulatório. Este tipo de equipe não existe em nossas universidades e institutos de pesquisa, em especial aqueles especializados na aprovação de produtos para ensaios clínicos Fase I, onde mora a inovação de novas vacinas e medicamentos”.
E a quantas anda a produção nacional de uma vacina contra a covid-19? Jorge Kalil ressalta a dificuldade – e o custo – da fase de ensaios clínicos. “Após desenvolver o antígeno, é preciso fazer lotes-pilotos do protótipo vacinal para entrar em ensaios clínicos e isso o Brasil não sabe fazer muito bem”, comenta. Segundo ele, essa é a principal lacuna entre descobrir a vacina e entrar em produção – chamada de “vale da morte” dos imunizantes. “Sair do protótipo e transformá-lo em produto é realmente um desafio e necessita do envolvimento das indústrias, pois os testes não podem ser feitos em laboratório. Os ensaios custam US$ 5 milhões e as empresas brasileiras não são muito adeptas do risco”.
Kalil explica que a vacina que ele está desenvolvendo será aplicada por meio de um spray nasal, focada na indução de resposta das mucosas, que é por onde o vírus entra. “O IgA é um anticorpo que defende as mucosas. Para mim, essa é a melhor maneira para controlar a infecção, impedindo, pelo nariz, que ela se desenvolva. Esse é um aspecto muito importante, porque acredito que o vírus da covid-19, por ser de RNA, dificilmente será erradicado, o que exigirá vacinações regulares, provavelmente com frequência anual”.
Na SpiN-Tec, desenvolvida pela equipe de Gazzinelli, há uma fusão de duas proteínas do vírus que causa a covid-19 – a N, do nucleocapsídeo, e um pedaço da S, a Spike, resultando na molécula SpiN – com o objetivo de provocar uma resposta dos linfócitos T, que combatem o vírus. Para os ensaios clínicos Fase I/II, a formulação e envase em boas práticas de fabricação foram feitos pela farmacêutica brasileira Cristália. “Estamos na Fase I um de ensaios clínicos, que deve estar completa em março de 2023; depois, passaremos para a Fase II, que deve estar encerrada até julho de 2023. Acreditamos que teremos uma vacina aplicável no segundo semestre de 2024”, comemora.
No entanto, de acordo com o coordenador do centro de Tecnologia de Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais, chegar a este ponto não foi fácil, pois as normas do edital da Finep, que financiará o ensaio clínico Fase III, estabelecem que é preciso envolver o setor privado, que é quem irá testar e registrar o produto. “Mas como, se as farmacêuticas brasileiras não têm experiência na produção de vacinas humanas? O Hipolabor, uma empresa de Belo Horizonte, com experiência em fazer drogas injetáveis, vai participar, mas não foi fácil achar um parceiro entre as farmacêuticas brasileiras”, comenta Gazzinelli.
O imunizante em desenvolvimento no Instituto Butantan, conhecido como ButanVac, encontra-se na fase de estudos clínicos, durante a qual ele é testado em seres humanos para avaliação e definição de dose, além de verificação de segurança e de imunogenicidade. De acordo com o Gestor Médico de Desenvolvimento Clínico do instituto, Érique Peixoto de Miranda, o vírus da doença de Newcastle, que afeta somente aves, é modificado com a inserção, em sua superfície, da proteína S do coronavírus. Sendo assim, pode ser cultivado em ovos embrionados de galinha na fábrica de vacina contra Influenza, do próprio instituto, e posteriormente inativado com substâncias químicas para produzir o imunizante contra coronavírus. Este já tem uma dose definida por meio de um estudo de Fase I, que testou três doses diferentes em uma amostra de 320 voluntários adultos saudáveis sem vacinação prévia contra covid-19 e tampouco infecção prévia pelo coronavírus. “Após selecionarmos a dose mais segura, apresentamos os dados à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), bem como o protocolo que estabelece o planejamento do estudo de Fase II, que visa a testar o imunizante em uma população maior, a fim de avaliar a segurança e a imunogenicidade da ButanVac em comparação com outra vacina já disponível no Programa Nacional de Imunizações (PNI)”, explica Miranda.
O estudo de Fase II avaliará a ButanVac como vacinação de quinta dose de reforço, em uma amostra de 400 participantes de ambos os sexos, com idade maior ou igual a 18 anos, incluindo idosos. Esta avaliação está prevista para começar no início de 2023, em três centros de pesquisa situados nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. “A previsão é durar um ano, porém os primeiros resultados serão analisados e divulgados à Anvisa após os primeiros seis meses. Com base nestes resultados, a agência decidirá se a vacina tem segurança e imunogenicidade suficientes para ser avaliada em um estudo ainda maior, de Fase III, confirmatório. O sucesso neste último estudo será determinante para o registro do novo imunizante, a fim de que seja amplamente disponibilizado no SUS”.
Para conquistar a almejada independência do País, não basta ter conhecimento técnico e científico e capacidade industrial instalada. É necessário ter matérias-primas, sem as quais torna-se impossível fabricar vacinas. Realista, Jorge Kalil não acredita nessa possibilidade. “Em nenhum lugar do mundo se produz tudo. Nós temos a grande maioria dos insumos, mas há itens que somos obrigados a importar. Ainda bem que a economia atualmente é globalizada e podemos recorrer a outros países. Quanto à transformação desses materiais não há problemas, pois temos know-how para tal”.
No caso do Butantan, o instituto obtém a cepa mestre do vírus da doença de Newcastle geneticamente modificado, desenvolvido por cientistas nos Estados Unidos na Icahn School of Medicine, do hospital Mount Sinai, de Nova York, e realiza todas as demais etapas necessárias para a elaboração da vacina. “A produção tem diversos outros passos e é bastante complexa, sendo que todos eles, relativos à produção, são conduzidos integralmente no País, pois temos expertise no Instituto Butantan para produzir o imunizante em larga escala”, explica Erique Peixoto de Miranda.
E quais seriam as vantagens das vacinas brasileiras em relação às já existentes ou em desenvolvimento no cenário internacional? Para o coordenador do centro de Tecnologia de Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador da Fiocruz Ricardo Gazzinelli a primeira geração de imunizantes contra a covid-19 foi desenvolvida muito rápido, pois o objetivo era reduzir a taxa de óbitos, porém alguns aspectos não puderam ser avaliados, como a duração da imunidade, que é muito curta. “Isso leva à necessidade de aplicação de novas doses a cada seis meses, o que é pouco eficaz, além de desagradável para a população e caro para o sistema de saúde estatal”. Ele também acredita que vamos conviver com o vírus de agora em diante e que a questão será responder às variantes que surgirão. “Nosso imunizante é focado nos linfócitos T, pois sabemos que são eles que controlam as variantes. Há crescentes evidências de que o controle da cepa ômicron passa por eles. Aparentemente só há uma vacina similar, em desenvolvimento na Alemanha, que também age através do linfócito T”.
Miranda, do Instituto Butantan, acredita que as principais vantagens do desenvolvimento de um imunizante como a ButanVac são o custo e a expertise de produção já existentes na fabricação da vacina contra Influenza, no Brasil, o que permite a produção em larga escala. “Sobretudo para atender a situações de emergência em saúde pública, em meio a uma pandemia que ainda não acabou. Além disso, a plataforma da vacina, que pode carregar outros vírus que não necessariamente o coronavírus, torna a tecnologia atraente para produção de imunizantes contra outras doenças”.
“A produção da ButanVac visa a atender a países de baixa e média renda, além do Brasil, que sofreram sobremaneira o peso da pandemia sobre o sistema de saúde. Além do Brasil, Tailândia e Vietnã estão avaliando a vacina em estudos clínicos”.
Érique Peixoto de Miranda
Parceria entre setores público e privado: dois casos de sucesso
Não há dúvidas de que a pandemia de covid-19 se transformou em uma grande emergência sanitária, mas a doença causada pelo coronavírus não é a única que merece a atenção das autoridades de saúde do Brasil. Como está o cenário de parcerias entre centros de pesquisa públicos e a iniciativa privada para a produção de vacinas no País?
O vice-presidente de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação do laboratório Cristália, Rogerio da Silva Almeida, acredita que a pandemia provocou uma reavaliação da dependência de produtos importados, principalmente de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) e vacinas. “Sempre estivemos atentos a essa questão, tanto que, desde 1983, trabalhamos para alcançarmos nossa independência em IFAs estratégicos. Isso foi essencial para conseguirmos manter o fornecimento do kit intubação durante o período mais crítico da pandemia de covid-19”.
Almeida considera que o Brasil possui condições para atuar tanto na síntese de IFAs quanto na produção nacional de imunizantes, mas depende de uma política clara para definir como essa capacidade deve ser utilizada e quais recursos serão destinados a esses fins. Ele revela que, quando foi procurado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para colaborar na vacina SpiN-Tec, o laboratório se colocou à disposição para fazer o envase do imunizante para estudos clínicos. “Vamos colaborar até a Fase II. Não seguiremos na Fase III pois esta já deverá ser feita no local de registro do imunizante. Oferecemos o mesmo apoio à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fechamos uma parceria com o Senai Cimatec, de Salvador, para a produção e registro da vacina RNA MCTI Cimatec HDT”.
A vacina contra a Febre Amarela é um outro exemplo de parceria entre iniciativa privada e poder público. Desde 2017, Libbs e Bio-Manguinhos possuem um acordo para o processamento final desta vacina. A necessidade surgiu devido à alta demanda global pelo imunizante, especialmente em situações de surto. De acordo com o diretor de operações da Libbs, Cassio Yooiti Yamakawa, na ocasião, Bio-Manguinhos avaliou sua capacidade instalada, bem como as demandas de outros imunizantes produzidos, e buscou identificar empresas com condições técnicas para prestar o serviço de beneficiamento, com vistas à produção da vacina contra Febre Amarela atenuada e diluente para vacina. “Fomos a única empresa que atendeu aos critérios preconizados e que manifestou interesse na prestação do serviço”.
Yamakawa ressalta que a importância dessa parceria ficou ainda mais evidente durante a pandemia da covid-19, quando contribuiu com a disponibilidade fabril de Bio-Manguinhos para a produção de vacinas essenciais para o enfrentamento dessa emergência sanitária e de outras doenças imunopreveníveis. “Nesses cinco anos de parceria, já envasamos mais de 40 milhões de doses de vacina contra a Febre Amarela para distribuição nacional e internacional, contribuindo para o controle da doença e para a saúde pública.”