REVISTA FACTO
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Set-Dez 2022 • ANO XVI • ISSN 2623-1177
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Perspectivas para a retomada da ciência brasileira
//Matéria Política

Perspectivas para a retomada da ciência brasileira

O ano de 2022 marcou uma das maiores crises nas áreas da ciência, da tecnologia e da inovação (CT&I) no Brasil devido à drástica redução do investimento público, especialmente na esfera federal. Instituições estratégicas no fomento à pesquisa, como o Ministério da Educação (MEC), o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), vêm sofrendo sucessivos cortes orçamentários, na ordem dos bilhões de reais. Acadêmicos ouvidos para esta reportagem argumentam que se faz urgente a retomada do financiamento público em pesquisa e inovação. Do contrário, alertam, pode-se inviabilizar a continuidade de projetos e tecnologias já em andamento e, em última instância, o desenvolvimento científico e econômico do próprio País. Para eles, a reconstrução do campo da CT&I deve receber prioridade máxima dos próximos mandatários dos Poderes Executivo e Legislativo.

Entraves ao progresso da ciência

Iniciada em 2016, a tendência de queda do investimento público federal em ciência acentuou-se nos últimos três anos. Levantamento feito no início de 2022 pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) a respeito dos valores estabelecidos pela Lei Orçamentária Anual (LOA) nos últimos vinte anos revela reduções drásticas no período recente nos orçamentos do MCTI, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do FNDCT. Em todos os casos, observa-se a destinação de um percentual significativo, de até 70%, para a reserva de contingência, uma dotação genérica do Orçamento Público que permite ao governo guardar recursos para gastos não previstos.

O caso do FNDCT é o mais preocupante por se tratar de uma das principais fontes de financiamento à pesquisa e inovação no País. Dados deste ano indicam que, dos R$ 4,5 bilhões de recursos não reembolsáveis previstos na LOA para o fundo, apenas R$ 2 bilhões estavam disponíveis para empenho. O mais recente bloqueio foi estabelecido pela Medida Provisória (MP) 1.136/2022, que não só afeta o desembolso no ano corrente, como ainda prevê reduções até 2026, contrariando a Lei Complementar n° 177, de 2021, que impede restrição orçamentária de qualquer espécie no FNDCT. O contingenciamento do fundo tem recebido duras críticas da comunidade científica. A presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e professora da Escola Paulista de Medicina, Helena Nader, é categórica: “O que fizeram com o FNDCT é falta de visão de mundo”.

A educação também tem sido alvo de cortes severos. Do início do ano até novembro, o MEC perdeu quase R$ 2 bilhões de seu orçamento, penalizando universidades e institutos federais, que dependem da verba do Ministério para despesas como luz, água, bolsas de estudo e pagamento de terceirizados. “O investimento em educação tem sido reduzido em todos os níveis, em relação ao orçamento de investimentos da União: de 19% do total em 2012 (valores empenhados), passou a 8% na Lei Orçamentária Anual de 2022”, alerta o físico e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luiz Davidovich.

Caso a situação não seja revertida, as instituições de ensino superior correm o risco de terem a operação inviabilizada já no início de 2023, prejudicando a formação de pesquisadores e também a produção de conhecimento. Soma-se a isso a defasagem dos valores das bolsas pagas por Capes e CNPq, que não são reajustadas desde 2013, apesar de a inflação acumulada no período ter sido de mais de 70%, o que tem provocado desestímulo e evasão de estudantes, conforme aponta Davidovich.

Na visão da presidente da ABC, o País caminha na contramão do mundo. “Não existe nação que se desenvolveu sem educação e ciência. O Brasil andou para trás nos últimos oito a dez anos, em especial nos últimos quatro, quando educação e ciência passaram a ser desprezados, com cortes cada vez maiores. Já os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) investiram mais em todos os níveis da educação durante a pandemia. Na ciência, nem se fala. O Congresso americano deu aumento para a ciência de bilhões, trilhões de dólares, e aqui no Brasil estamos falando de bilhões de reais contingenciados”, lamenta.

Davidovich identifica ainda outros entraves ao progresso da ciência e ao desenvolvimento brasileiro, que se somam aos cortes: especialmente a desigualdade social e a baixa escolaridade. “Na lista dos dez países mais desiguais do planeta segundo o índice de Gini, há dois nas Américas: o Brasil e o Suriname. Os outros pertencem ao continente africano. Apenas 20% da população entre 25 e 64 anos possui ensino superior e apenas 16% dos nossos egressos do ensino superior se graduam em áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática. Ressalte-se que o País tem apenas cerca de 900 pesquisadores por milhão de habitantes, enquanto países da OCDE têm em média cerca de quatro mil pesquisadores por milhão de habitantes e alguns deles, como Israel e Coréia do Sul, chegam a ter cerca de oito mil pesquisadores por milhão de habitantes. A baixa escolaridade afeta também a inovação: o Brasil está em 54º lugar no Índice Global de Inovação de 2022, apesar de ser uma das maiores economias mundiais”, destaca. Para ele, não é possível pensar em desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação sem contemplar a inclusão social e uma educação de qualidade.

Importância dos investimentos

O fomento estatal à área de CT&I é considerado estratégico para o desenvolvimento econômico de um país, além de ser peça fundamental de uma política industrial focada na economia do conhecimento. “O potencial da comunidade científica e tecnológica pode e deve ser utilizado para incrementar a pesquisa e a inovação, a fim de contribuir para o equilíbrio da balança comercial do segmento, minimizar os riscos de desabastecimento, aumentar a competitividade do setor industrial, formar e desenvolver recursos humanos, bem como assegurar que o País continue se desenvolvendo de maneira sustentável”, defende o acadêmico titular da Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil (ACFB) e CEO do Instituto de Ciências Farmacêuticas (ICF) Leonardo Teixeira.

No caso da indústria da química fina e, em especial, do Complexo Industrial da Saúde, o investimento em pesquisa e inovação é essencial para o fortalecimento da cadeia produtiva e a redução da dependência de produtos e insumos importados. “Olhando para a área de medicamentos, o Brasil deixou de produzir, só importa, a ponto de faltar dipirona. Como é que falta dipirona no mercado?”, indaga a professora Helena Nader. Para ela, a ausência de investimento público em CT&I impede que o País ocupe um lugar de destaque no mundo na área da saúde.

“Podíamos estar investindo e fortalecendo o Complexo Industrial da Saúde, não só para ter uma indústria forte para o País, mas para toda a América Latina e o Hemisfério Sul”

Helena Nader, Academia Brasileira de Ciências (ABC)

A pesquisadora lembra que a ciência é o que possibilita ao Brasil ter uma agricultura forte, além de empresas de atuação internacional, cuja base é o investimento em pesquisa, como a Petrobras e a Embraer.

Ainda na visão de Leonardo Teixeira, da ACFB, os benefícios dos investimentos em pesquisa para a indústria são diversos.

“A inovação na química fina é uma área de pesquisa muito relevante, que envolve a prospecção de novos insumos e o desenvolvimento de tecnologias de produtos químicos de alta pureza, com atividade farmacológica diferenciada para uso na terapêutica humana e animal. O Brasil ocupa uma posição de destaque no ranking mundial de produção farmacêutica e o investimento em pesquisa e inovação na área da química fina pode contribuir para torná-lo mais competitivo no contexto internacional. O mais importante é que as pesquisas, tanto na química fina quanto na biotecnologia, podem reduzir a vulnerabilidade em relação ao suprimento de medicamentos. Por fim, os incentivos às pesquisas tecnológicas promovem significativos avanços na eficiência da produção, na redução de custos, no nível de qualidade dos insumos e produtos, ampliando o acesso e a sustentabilidade do setor”

Leonardo Teixeira, Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil (ACFB)

Prioridades para o próximo governo

Os pesquisadores ouvidos para esta reportagem são unânimes em afirmar que o País precisa de uma política de Estado forte para a CT&I, independentemente de qual seja o governo. “Precisamos de um projeto de nação que independa de quem está com a caneta na mão, do ideário político, do partido. Educação e ciência têm que ter prioridade”, defende Helena Nader. Na mesma linha, o professor Luiz Davidovich, da UFRJ, afirma.

“O Brasil precisa de um projeto de Estado que vá além de um mandato presidencial e paute programas mobilizadores da Academia e da indústria, visando a um desenvolvimento sustentável nos âmbitos econômico, social e do meio ambiente”

Luiz Davidovich, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Davidovich apoia um projeto nacional baseado nas vantagens competitivas do País, que são “o tamanho de sua população; a diversidade regional; biomas que contêm cerca de 20% da biodiversidade do planeta; um extenso litoral; recursos hídricos abundantes, cerca de 12% do montante mundial; vasta disponibilidade das energias solar e eólica; recursos minerais importantes para o desenvolvimento tecnológico; uma rede de instituições públicas de educação, ciência e tecnologia que respondem por mais de 90% das atividades de pesquisa realizadas no País; um histórico de apoio à pesquisa e à inovação por agências financiadoras nos níveis federal e estadual”.

Outro aspecto frisado pelos acadêmicos é a necessidade de retomada dos investimentos públicos em CT&I e educação. Helena Nader frisa a urgência de se aumentarem as bolsas de pós-graduação. Para Leonardo Teixeira, o investimento estatal constante, por todas as esferas governamentais, permitirá a geração de novos conhecimentos e o surgimento de novos produtos e serviços, em especial na química fina. Já Davidovich elenca cinco prioridades para o próximo governo, quatro das quais envolvem a recuperação do orçamento de diferentes órgãos e instituições ligados ao ensino e à pesquisa:

  1. Recuperação do orçamento das universidades federais aos níveis de 2013;
  2. Reajuste do valor das bolsas do CNPq e CAPES;
  3. Utilização para ciência e inovação da totalidade dos recursos arrecadados para o FNDCT, cujo contingenciamento deve ser proibido, reservando um máximo de 15% para crédito (recursos reembolsáveis);
  4. Recuperação do orçamento do MCTI, do CNPq, da FINEP e da CAPES aos níveis de 2013, com correção inflacionária.
  5. Recuperação da educação básica, com a valorização do professor mediante remuneração adequada e oportunidades de aperfeiçoamento, introduzindo, desde o ensino fundamental, o aprendizado de ciência baseado em investigação.

Desenvolvimento sustentável e biodiversidade

Há expectativa ainda a respeito do investimento público em biodiversidade, meio ambiente e desenvolvimento sustentável. A professora Helena Nader lembra que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva já sinalizou, em sua participação na Conferência sobre a Mudança do Clima da Organização das Nações Unidas (COP27), que retomará o foco na preservação e desenvolvimento da Amazônia, em parceria com estados brasileiros e outros países localizados na região.

O uso sustentável da biodiversidade brasileira – considerada a maior do mundo – abre diversas oportunidades para o País. “As expectativas de exploração sustentável da biodiversidade e fomento às pesquisas no campo da química fina e da biotecnologia são otimistas. Temos recursos naturais e humanos para um grande potencial de crescimento, que somente será atingido com o fomento, apoio e recursos financeiros. Tudo isso tem que ser convertido em programas, projetos e CT&I envolvendo as esferas governamentais e a academia”, pleiteia Leonardo Teixeira.

Para Luiz Davidovich, a biodiversidade e a Amazônia despontam como elementos essenciais em um projeto de Estado para o desenvolvimento sustentável do País. E sugere um possível moonshot, termo usado para designar projetos de tecnologia que envolvam inovações radicais: “a criação de um programa integrado de proteção aos biomas, em particular do bioma amazônico, com reflorestamento e exploração sustentável da biodiversidade, que envolva a população local e que, juntamente com a construção de um complexo industrial da saúde, estimule a produção de novos medicamentos, fazendo bom uso da biodiversidade, reduzindo o preço de medicamentos inovadores e fortalecendo a balança comercial do País, além de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), um grande mercado consumidor dos medicamentos produzidos”.

Segundo ele, o projeto implicaria incentivos a inovações disruptivas na área farmacêutica, por meio do uso do poder de compra do Estado, o que, na sua visão, teria potencial para transformar o perfil da indústria farmacêutica, que hoje é essencialmente produtora de genéricos. A ideia envolveria ainda o fortalecimento do SUS e o apoio a universidades e centros de pesquisa, além de dialogar com diversos ramos da CT&I. “Por ser um desafio de grande amplitude, o projeto tem que estar associado a outras iniciativas, como a ampliação da participação de energias limpas na matriz energética nacional, a inserção do Brasil na economia digital e o desenvolvimento de nanotecnologias em suas diversas áreas de aplicação”, ressalta.

Grupo de transição

O trabalho de transição do novo governo parece estar em sintonia com as propostas dos pesquisadores ouvidos pela FACTO. No início de dezembro, em coletiva da equipe do Grupo Técnico de CT&I do Gabinete de Transição, o ex-ministro de Ciência e Tecnologia Sergio Rezende caracterizou a atual conjuntura da ciência brasileira como “fundo do poço”. Na ocasião, ele anunciou as principais propostas a serem implementadas nos cem primeiros dias do governo que assume em 2023. Entre as que afetam mais diretamente a indústria da química fina estão a revogação ou modificação dos efeitos da MP que contingencia o FNDCT, a elevação dos orçamentos do CNPq e da Capes já em 2023, com a correção dos valores das bolsas de pesquisa, e a reversão das mudanças realizadas no Centro de Biotecnologia da Amazônia, que possibilitaram a gestão do centro por uma entidade privada sem fins lucrativos. A equipe de transição também planeja que o centro seja incorporado pelo MCTI.

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