Há 20 anos, a Fiocruz desenvolveu o conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) no Brasil, sem o qual o acesso universal à saúde teria pés de barro. Sem uma base produtiva, tecnológica e de inovação em fármacos, medicamentos e demais produtos para a saúde humana, a capacidade do sistema de saúde de garantir as necessidades da população brasileira estaria comprometida de forma estrutural. A pandemia de Covid-19, infelizmente, confirmou de forma trágica essas hipóteses.
Um dos principais indicadores da fragilidade estrutural do sistema de saúde brasileiro e da base produtiva nacional em saúde é a balança comercial do CEIS. Ao longo das últimas décadas, a ampliação do acesso à saúde se deu de forma crescentemente dependente das importações. De 2000 a 2020, o déficit na balança comercial do CEIS triplicou, saltando de US$ 4,46 bilhões para US$ 13,46 bi. No mesmo período, o déficit do subsistema de base química e biotecnológica, da qual fazem parte os setores de fármacos, medicamentos, vacinas e outros, saltou de US$ 3,7 bi para US$ 11,1 bi, representando 83% do déficit de 2020.
A partir dessa concepção se iniciou, ao longo dos anos 2000, um conjunto de ações que possibilitaram a construção de uma política industrial e de inovação para o CEIS orientada para atender as necessidades da sociedade. Foi possível construir uma institucionalidade inovadora sistêmica de apoio ao CEIS, a partir de uma clara convergência entre a política de saúde e a política industrial, com diversos impactos positivos em sua estruturação, dentre os quais vale destacar: a volta da priorização da produção de fármacos e biofármacos no País, o fortalecimento da produção pública em parceria com o setor privado para promover o investimento e o desenvolvimento tecnológico e o uso pioneiro do poder de compra governamental com o estabelecimento das Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDPs). Foram implantadas plataformas tecnológicas que permitem ao Brasil hoje produzir medicamentos para câncer, AIDS e transplantes, testes para diagnóstico e vacinas para a Covid-19, entre muitos outros.
Entretanto, apesar dos avanços obtidos em um primeiro momento, observa-se uma forte concentração da produção da indústria farmacêutica na formulação final de medicamentos, fruto da instabilidade institucional e de um ambiente macroeconômico desfavorável. No caso do segmento de fármacos, o grau de penetração das importações situa-se em um patamar inaceitável, superior a 90% do consumo interno, refletindo a total desestruturação da cadeia de produção de IFAs (Insumos Farmacêuticos Ativos) no País e a crescente dependência externa, não somente da China (32%, com valor médio de US$ 8,3/kg) mas também dos países do bloco europeu (30%, com valor médio de US$ 28,2/kg), no caso das importações de IFAs com maior valor agregado.
A quarta revolução tecnológica tem na saúde um espaço privilegiado de desenvolvimento e de interação, trazendo enormes ameaças e potencialidades. A base tecnológica de química fina e de biotecnologia não mais terá chance no futuro sem o avanço na utilização da genômica, da nanotecnologia e da inteligência artificial e do uso científico de grandes bases de dados (big data). O desenvolvimento das novas vacinas para a Covid-19 é um exemplo claro. As vacinas moleculares de última geração demonstram a convergência entre a química, a nano e biotecnologia, superando a errada ideia de que as atividades baseadas em química fina iriam desaparecer.
Com a quarta revolução industrial, o desenvolvimento de novas tecnologias se torna cada vez mais rápido e a distância tecnológica entre os países aumenta em ritmo acelerado, aprofundando as assimetrias tecnológicas e de conhecimento globais. No presente, apenas dez países concentram 88% das patentes em saúde.
Tal contexto deixa clara a necessidade de formulação e implementação de um novo conjunto de políticas públicas voltadas para o fortalecimento do CEIS para fazer frente à revolução tecnológica em curso, sob uma nova conformação do próprio sistema produtivo (ver o gráfico). Essa situação indica a necessidade de uma visão política articulada para o Complexo da Saúde com foco no núcleo tecnológico e de conhecimento da produção em saúde. É essencial construir uma institucionalidade para a coordenação requerida ao investimento e à inovação em saúde, com vistas a tornar o SUS um sistema estável, resiliente e capaz de gerar desenvolvimento social e econômico ao mesmo tempo. A pandemia de Covid-19 evidenciou ainda mais essa necessidade, dada a interrupção dos fluxos de comércio global na área de fármacos, vacinas, medicamentos, equipamentos e outros produtos para saúde, mostrando o fracasso na aposta de inserção subordinada nas cadeias globais de valor.
O Brasil se encontra em uma situação em que, ou enfrenta os grandes desafios nacionais em saúde, ou se tornará uma grande fazenda estagnada e empobrecida. Cabe destacar, em primeiro lugar, que é necessário superar os vícios de uma lógica míope, focada unicamente em comparações estáticas de preço para produção nacional versus importações, ficando à mercê da especulação internacional para derrubar os países que desejam ascender no mundo da tecnologia em saúde. Em segundo lugar, é preciso superar amarras ideológicas que insistem no estabelecimento de velhas políticas que quase levaram ao desaparecimento da indústria de saúde brasileira na década de 1990. Por fim, é necessário superar as visões estritamente setoriais para que as políticas industriais e de inovação sejam voltadas para o sistema produtivo e orientadas à sustentabilidade do SUS. Os direitos sociais não apenas “cabem no PIB”, mas, ao convertê-los em grandes desafios nacionais, são fontes estruturais de demanda para o setor de fármacos e medicamentos e polo de modernização tecnológica do País.
A ABIFINA tem um papel histórico e fundamental nesse processo, a partir da concepção de políticas estratégicas voltadas à modernização da indústria de fármacos e medicamentos no Brasil de modo convergente com os desafios da quarta revolução industrial e com as necessidades do Sistema Único de Saúde. A consolidação do SUS pode se constituir em alavanca para o desenvolvimento e, em particular, para a indústria de fármacos e medicamentos, sendo a porta de entrada do País nessa revolução industrial, para que jamais voltemos a ser vulneráveis e dependentes e possamos preservar a vida e o desenvolvimento nacional.