Por Projeto de Estado deve ser entendido um conjunto de políticas públicas definidas pelo Poder Executivo, com longo prazo de duração, para ser implantado pelas agências públicas, contendo metas e cronogramas a serem rigorosamente articulados e acompanhados pelo Poder Executivo.
Por Projeto de Estado deve ser entendido um conjunto de políticas públicas definidas pelo Poder Executivo, com longo prazo de duração, para ser implantado pelas agências públicas, contendo metas e cronogramas a serem rigorosamente articulados e acompanhados pelo Poder Executivo. Para a construção desse Projeto de Estado, deveriam ser convocados os legítimos representantes do setor produtivo privado, bem como ouvida a população através de seus representantes institucionais. Obviamente esse Projeto de Estado deveria seu validado posteriormente pelo Congresso Nacional.
A abrupta abertura comercial iniciada por Collor no início dos anos 90 teve continuidade assegurada por Fernando Henrique, devidamente assessorado pelos economistas tupiniquins neoliberais que comandavam nossa economia, embalados pelos cânticos do Consenso de Washington, segundo os quais o mercado livre seria autorregulável, assegurando o equilíbrio macroeconômico e, desta forma, afastando qualquer interferência do Estado. “A melhor política industrial é não haver política industrial”, diziam esses arautos do Deus Mercado. Até que a crise internacional ocorrida no final dos anos 90 – e que durou até o final do mandato de FHC – desfez essa ridícula crença, ocasião em que ficou claramente mostrado ser indispensável a presença regulatória do Estado sobre o mercado, visando atenuar efeitos de crises externas, bem como promover o desenvolvimento econômico e social do País sem as distorções do free trade.
Economistas, pensadores e empresários nacionais que não eram ouvidos nos anos 90, com a ascensão de Lula ao poder em 2003, propugnaram por uma nova visão desenvolvimentista, oposta ao Consenso de Washington, o que levou o novo governo a construir uma Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), cuja elaboração contou com a participação dos agentes públicos e privados antes referidos, e que foi apresentada formalmente em evento ocorrido no dia 31 de março de 2004, na sede da Confederação Nacional da Indústria.
A PITCE assim criada definiu três eixos de atuação:
I) Linha de Ações Horizontais: (a) inovação e desenvolvimento tecnológico; (b) inserção externa; (c) modernização industrial; (d) melhoria do ambiente institucional/ampliação da capacidade e escala produtiva.
II) Opções Estratégicas: (a) semicondutores; (b) software; (c) bens de capital; (d) fármacos e medicamentos.
III) Atividades Portadoras de Futuro: (a) biotecnologia; (b) nanotecnologia; (c) biomassa, energias renováveis/atividades relativas ao Protocolo de Quioto.
Como programa de governo, a PITCE foi excelentemente concebida. Infelizmente faltou o aval e o compromisso do Congresso Nacional para torná-la um Projeto de Estado com longo prazo de duração, bem como faltou uma real e efetiva disposição do Poder Executivo para definir metas e cronogramas de ações, a serem rigidamente fiscalizados e acompanhados pelo Poder Executivo Central.
Em consequência disso, como decorrência direta da mencionada PITCE, apenas podemos destacar os benefícios verificados em alguns casos isolados a seguir apresentados, que se deveram às iniciativas pessoais de agentes públicos:
1. O programa Profarma concebido por Luciano Coutinho no BNDES, em conformidade com sua visão pessoal sempre mantida sobre a necessidade do poder público apoiar o desenvolvimento de empresas privadas atuantes em áreas estratégicas para o País;
2. A postura mantida pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Luiz Antunes Amorim, portador de longa e brilhante carreira na diplomacia brasileira – e preservado naquele cargo até 2010 –, ao evitar que temas como compras governamentais e investimentos (acordos não assinados pelo Brasil no âmbito do GATT), bem como propriedade intelectual contendo cláusulas TRIPs Plus, fossem incorporados em acordos externos bi ou multilaterais discutidos com países do primeiro mundo, a despeito das enormes pressões políticas então exercidas por países desenvolvidos ou mesmo do setor privado nacional a ele associado.
3. A iniciativa extremamente corajosa do então diretor de um laboratório público (Farmanguinhos), Eduardo de Azeredo Costa, que no final de 2006, de forma pioneira, concebeu uma nova forma de licitação pública – muito distinta daquela que era praticada segundo a Lei de Licitações de 1993 –, a qual visava à aquisição dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) necessários para a fabricação dos antirretrovirais Lamivudina e Zidovudina produzidos pelo referido laboratório, através do sistema de licitação pública para a fabricação local de tais insumos.
Essa corajosa iniciativa de contrariar importadores para realizar aquilo que mais convinha ao País – em termos de qualidade do produto a ser usado e em apoio à política industrial – valeu-lhe duas páginas centrais de uma edição dominical de O Globo e uma vasta reportagem publicada pela Folha de São Paulo, contendo injustas e pesadas críticas à sua pessoa, bem como uma ação judicial que, felizmente, lhe foi favorável em primeira e segunda instâncias da Justiça Federal, bem como pela AGU, que finalmente deu-lhe ganho de causa, servindo de modelo para uma nova visão de política industrial para o desenvolvimento produtivo de insumos estratégicos destinados à fabricação de medicamentos no Brasil.
4. A competente e altiva iniciativa do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, contando com o eficaz assessoramento de seu secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Reinaldo Guimarães, ao responder à altura a uma atitude inconsequente da Merck Sharp & Dohme, que se negava a reduzir para o Ministério o preço praticado na comercialização de um antirretroviral patenteado, fato que vinha causando enorme problema à assistência à saúde da população brasileira. O ministro propôs e obteve apoio do então presidente Lula para assinar, em 2007, uma licença compulsória para o governo federal processar a fabricação local do antirretroviral Efavirenz para atender exclusivamente à forte demanda do Programa DST/AIDS do Ministério da Saúde nessa área.
5. Para fabricar Efavirenz no País, Eduardo Costa, ainda no comando de Farmanguinhos, por sua iniciativa e risco pessoal, novamente inovou procedimentos. Em vez de simplesmente licitar a fabricação local do insumo ativo que seria usado na produção do Efavirenz, criou uma verdadeira banca examinadora contando com dez pessoas que atuavam em campos diferentes – entre elas a ABIFINA, representada pelo seu vice-presidente aqui firmado –, com o objetivo de examinar o conteúdo das propostas de fabricação local então recebidas. Nesse contexto, a banca examinadora considerou mais apropriadas as propostas apresentadas pelas empresas Nortec, Cristália e Globe Química. Eduardo Costa, em caráter pessoal e por precaução, decidiu que seria mais conveniente, em vez de escolher uma dessas empresas, tomar a iniciativa de reuni-las em um consórcio. Isso porque, como cada empresa tinha fornecedores de intermediários químicos diferentes, seria muito perigoso apostar em somente um dos projetos apresentados. Ele formulou o consórcio, estabelecendo um preço do IFA mais baixo do que o oferecido pelas companhias nos projetos de execução. Tendo sido aceita essa proposta pelas três empresas, o consórcio foi formado, constituindo- se desde então numa realidade de enorme valor para a política de saúde pública.
6. Como consequência direta dessa iniciativa de Eduardo Costa, apoiada por Temporão, foi concebida por Reinaldo e emitida pelo ministro a Portaria Interministerial nº 128, de 29/5/2008, que pioneiramente estabeleceu procedimentos para a contratação pública de medicamentos e fármacos pelo SUS, baseada em uma lista de produtos para os quais o Ministério da Saúde estava interessado em fazer tais parcerias, o que levou essa prática a ser difundida entre os demais laboratórios públicos. Para conferir segurança jurídica a essa iniciativa, Temporão criou um grupo de trabalho que envolveu a Controladoria-Geral da União, Advocacia Geral da União, Tribunal de Contas da União, vários ministérios como o Itamaraty – que acompanhou os aspectos legais, institucionais, econômicos e políticos de relação internacional. Posteriormente, ainda por iniciativa pessoal de Temporão e Reinaldo para montar a Política de Desenvolvimento Produtivo do Complexo Industrial da Saúde, foi obtida uma alteração na Lei de Licitações, visando tornar mais claros e inquestionáveis tais procedimentos.
Como se verifica pelas seis ilustrações que apresentamos, a PITCE, ao longo do tempo, conseguiu marcantes êxitos somente graças às iniciativas pessoais de dirigentes de alguns órgãos do governo, mas nunca por exigências, metas e cronogramas estabelecidos e acompanhados pelo Poder Executivo.
Por que uma postura articuladora e gestora de governo não ocorreu no Brasil, dado que a visão política dos governantes desde 2003 sempre foi francamente favorável a uma liderança do Estado na condução da política industrial, bem adversa ao neoliberalismo econômico obediente ao “Deus Mercado” (financeiro), dominante nas gestões dos governos dos anos 90?
Em nosso entendimento, esse fato resultou da ausência, no nosso meio político, de uma mais correta visão de desenvolvimento econômico e social, necessariamente associada ao longo prazo, sem abrir mão da ação regulatória do mercado pelo Estado e sem focar somente em esparsas medidas compensatórias de desequilíbrios sociais no curto prazo ou, pior ainda, apenas visando à distribuição de benesses regionais ou paroquiais, dominante nos partidos políticos.
Infelizmente, projetos desenvolvimentistas de Estado no longo prazo somente ocorreram no Brasil por ocasião da existência de regimes de exceção, não democráticos, como foi com Vargas nos anos 30/40 e Geisel nos anos 70.
Verifica-se, outrossim, que Projetos de Estado visando ao desenvolvimento econômico e social constaram no mundo em duas situações: (1) para recuperar economias devastadas pelas guerras, como nos Estados Unidos após a longa luta pela sua independência, ou na Europa e no Japão, depois da Segunda Guerra Mundial; e (2) através de regimes repressivos e extremamente duros, como ocorreu no leste asiático (Coreia, Indonésia, Índia, China).
Em uma análise fria de nossa história, registramos que nossa independência política decorreu de uma passagem de poder do imperador português Dom João VI para seu filho Dom Pedro I, formalmente proclamada em 7/9/1822. Embora tivessem ocorrido anteriormente manifestações em favor de nossa independência, inclusive gloriosas como a de Tiradentes, realmente a nossa independência política não resultou diretamente de bravas e duradouras lutas, como em outros países, conforme anteriormente mencionado. Assim também a Monarquia brasileira, embora bastante desgastada junto à população civil e militar, foi substituída pela República através de golpe militar liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca em 15/11/1889, sem qualquer derramamento de sangue. Além disso tudo, há que se considerar que a Constituição Cidadã de 1988 – como definida por Ulisses Guimarães – entendia que a raiz de todos os males que o País havia sofrido no período militar residia na centralização da administração pública realizada pelo Poder Militar que havia sido derrubado e, assim, seria urgente e necessária a mais completa possível descentralização administrativa.
Evidentemente que a descentralização da administração pública é sempre desejável e deve ser permanentemente buscada para sua implantação, mas o planejamento central, a articulação da máquina pública e o acompanhamento gestor sempre devem ser realizados e mantidos pelo Poder Executivo Central. Infelizmente, o que se verifica no governo federal é a existência de um Ministério do Planejamento que somente trata de orçamento público e de um Congresso Nacional que se move somente na busca de dotações orçamentárias para atender a interesses regionais ou paroquiais.
Em nossas observações sobre a história do Brasil, não nos move qualquer motivação de apoio à violência, mas simplesmente constatamos que nossa história tem sido construída através de “jeitinhos” bem à moda brasileira. Se por um lado esse modo pacífico do povo brasileiro exprimir seus anseios é louvável no meio social, por outro lado pode ser visto como uma “acomodação” ou falta de disposição para lutar pelos seus reais desígnios.
Talvez essa característica do povo brasileiro possa explicar em grande parte o fato do Brasil ainda não ser um país de primeiro mundo em termos de desenvolvimento econômico e social, haja vista que reunimos as melhores condições entre nações do mundo em termos de recursos naturais – abundância de terra agriculturável, ampla disponibilidade de água doce que corta o País de Norte a Sul, maior riqueza de biodiversidade entre países, melhor relação população/ área disponível, ausência de problemas étnicos ou religiosos.
Estamos plenamente convictos de que a construção de um Projeto de Estado visando ao desenvolvimento econômico e social do País no longo prazo, ainda que com custos políticos no curto prazo, é a única rota para a saída de nossa permanente e cíclica crise política e econômica. Entendemos, outrossim, que se trata de um caminho extremante difícil de ser implantado em nosso País, dada a inexistência de situações de catástrofe total cuja solução possa ser de fácil entendimento por uma população que vive atormentada pelos males feitos por políticos e administradores públicos, que são denunciados por uma mídia que prioriza a divulgação de matérias que transmitam o ódio a nosso povo, em vez de buscar caminhos para superar nossos problemas, abrindo espaços para a divulgação de ideias construtivas nesse cenário.
Para finalizar, desejamos destacar nossa convicção de que nenhuma simples troca de governantes, ou a simples implantação de novas políticas públicas, poderá resolver de maneira definitiva a cíclica crise que rotineiramente enfrentamos sem considerar os fatos políticos e sociais apresentados, cuja solução depende fundamentalmente de um Projeto de Estado de longo prazo de duração.