Sem sombra de dúvidas, a existência de um mercado de competição entre empresas privadas constitui o instrumento mais importante para se promover o desenvolvimento econômico e social, desde que devidamente regulamentado pelo Estado, tendo em vista atender objetivos estratégicos para o crescimento do país, respeitando as regras pelo ente público.
Um mercado totalmente livre e desregrado – como propunham os economistas neoliberais adeptos do Consenso de Washington de 1989, tem resultado em graves crises institucionais como ocorreu na crise asiática de 1997 – que quase “quebrou” a Rússia e a Argentina, e mais recentemente na crise financeira global de 2008, da qual o primeiro mundo ainda não se recuperou plenamente. Mas um mercado de competição empresarial deve ser regulamentado de forma clara e transparente, com instrumentos que devem ser estáveis – ou, quando necessárias alterações, elas devem ser implantadas gradativamente, com prazos de adequação respeitados, sem as equivocadas rupturas legais que ocorreram no Brasil dos anos 90.
Anteriormente, nos anos 70/80, o controle das importações (o famoso Anexo C da CACEX) constituiu-se no principal instrumento não-tarifário utilizado para o desenvolvimento econômico pelo Brasil, à semelhança do que era e, em grande parte, ainda é usado pelos países avançados. Criado em caráter temporário em 1975, como parte da política de ajuste ao primeiro choque do petróleo e como reação aos surtos de importações que ocorreram nos anos de 1974 e 1975, a proibição da importação de produtos estratégicos para o desenvolvimento econômico do país apresentou magníficos resultados, como se verificou na implantação de indústrias da química fina depois da edição da Portaria Interministerial nº 04/84.
No cenário então criado, empresários privados investiram no país acreditando nas regras definidas através dessa Portaria, em especial para desenvolver a indústria de insumos para medicamentos, no contexto da química fina nacional, na qual foi definida uma reserva temporal do mercado nacional (criada através do CDI), apoiada no poder de compra do Estado, via CEME, e no financiamento para investimentos, via sistema BNDES/BNDESPAR. Em decorrência dessa política industrial, entre os anos de 1984 e 1990 foram investidos mais de US$1 bilhão em cerca de 1.500 projetos de novas unidades produtivas nessa área, das quais cerca de mil estavam começando operações no início dos anos 90 e que, assim, deveriam principiar a dar retorno aos investimentos realizados a partir daí. Infelizmente todo o investimento empresarial realizado nessa área foi sucateado no dia 15 de março de 1990, quando o governo recém-eleito inopinadamente aboliu o sistema de controle das importações mantido pelo Anexo C da CACEX. Como compensação a essa violenta ruptura, o governo adotou um sistema de tarifas de importação na forma praticada em economias maduras, mecanismo sabidamente ineficaz para regular fluxo de mercadorias em emergente mercado com preços que vinham sendo assegurados pelo Estado para induzir o desenvolvimento industrial e, por isso, não competitivos – necessariamente fora das regras de um free trade convencional de economias modernas. A quebra das regras vigentes com a abrupta abertura comercial que então foi realizada, coincidentemente com a desativação das atividades da CEME, resultou no fechamento de mais de mil unidades produtivas dessa emergente indústria de alta densidade tecnológica criada no país, fragilizando setores da indústria de base, levando ao descrédito uma função estratégica que deveria caracterizar o Estado Nacional soberano.
Embora os anos 90 sejam exaustivamente louvados pela contenção da inflação que corroía a economia nacional, em realidade essa saudável meta foi alcançada em grande parte através de doloroso e desnecessário processo desindustrializante do país, dada a manutenção de uma demorada apreciação da moeda nacional face ao dólar na segunda metade daquela década. Esse fato nitidamente induziu uma substituição da fabricação local por produtos oriundos do exterior, com um viés tipicamente de política anti-industrial. Dizia-se, então, enfaticamente: “a melhor política industrial é não ter política industrial”.
Durante o primeiro mandato do presidente Lula, o setor público reunido com o setor privado em fóruns de competitividade de cadeias produtivas prioritárias para o desenvolvimento nacional, formulou uma política industrial, tecnológica e de comércio exterior (PITCE) para o país, depois de mais de uma década perdida nessa área. No segundo mandato deste governo, a PITCE foi aprofundada e, sob a liderança de Temporão no Ministério da Saúde, foi recuperada uma visão estratégica de acesso da população a medicamentos como ocorrera no início dos anos 60, agora expressa pelo PAC da Saúde, através de mecanismos focados no desenvolvimento do complexo industrial da saúde para viabilizar a fabricação local dos insumos químicos e equipamentos.
Ocorre que qualquer política dedicada à industrialização doméstica, para ser efetiva, necessita ser lastreada em fundamentos macroeconômicos nacionais que assegurem não somente a estabilidade da moeda, mas também sua conversibilidade para outras moedas, em condições que se mostrem isonômicas para o setor produtivo local, vis-à-vis competição externa. Embora seja difícil a regulamentação do setor financeiro – pela sua elevada inserção internacional, ao menos a taxa cambial merece algum tipo de regulação que atenue a apreciação do real face ao dólar e iniba sua grande instabilidade, como hoje se verifica no Brasil. A manutenção da política monetária exclusivamente focada em metas anti-inflacionárias – que requerem o uso de elevadas taxas de juros domésticos – associada ao ingresso especulativo de capitais externos para a bolsa de valores, resulta em uma aguda imprevisibilidade cambial que desestimula investimentos, criando um ambiente macroeconômico que também inibe exportações de produtos manufaturados pelo Brasil. Em decorrência desses fatos fica desestimulado o crescimento da indústria de alto valor agregado no Brasil, que somente poderá ser alcançado pela retomada de investimentos pelo setor industrial.
Nesse cenário é inegável que em alguns setores da indústria brasileira ocorre uma crescente e pérfida substituição da produção doméstica por produtos importados. A intervenção do Estado visando criar um fundo estabilizador para o câmbio, objetivando permitir que o governo possa atuar como comprador ou vendedor no mercado de dólares para evitar sub ou sobrevalorização do real, além do uso de medidas fiscais específicas, tem sido sugerida por economistas de renome que alertam para os problemas causados pela apreciação do real e pela instabilidade da taxa cambial. O nosso Banco Central deveria atuar como o banco central norte-americano (FED) que alia o controle da inflação a metas de crescimento econômico e geração de empregos.
A persistir essa equivocada política cambial de livre fluxo monetário, e na ausência de mecanismos específicos destinados a proteger e a privilegiar a produção nacional para contrabalançar a iniqüidade dessa apreciação cambial, certamente desaparecerão as fabricações locais de produtos intermediários da indústria química, mecânica ou eletrônica, que são importantes e estratégicos componentes de diversas cadeias produtivas nacionais.
As taxas de juros para capital de giro praticadas no Brasil atingem valores totalmente fora de uma realidade para competição internacional, embora se deva ressaltar que as taxas de juros para investimentos em áreas estratégicas praticadas pelo BNDES são adequadas às necessidades do setor, mesmo que sejam questionáveis critérios administrativos usados para o enquadramento de empresas em linhas de financiamento. Ocorre que os investimentos em áreas prioritárias, incentivados por bancos oficiais para dar retorno, precisam de capital de giro em condições adequadas à concorrência estrangeira.
Nesse cenário pode-se afirmar que a apreciação do real face ao dólar, a imprevisibilidade na variação da taxa cambial, a inexistência de um mercado local de capitais em condições internacionalmente competitivas e a ausência de um dispositivo legal que permita uma leitura da Lei de Licitações que privilegie a produção local em áreas estratégicas para o país – como o complexo industrial da saúde e a defesa nacional, à semelhança do que o Buy American Act promove nos Estados Unidos desde 1933, inviabilizam uma efetiva retomada de investimentos em tais áreas.
A despeito de restar pouco mais de meio ano de governo Lula, ainda há tempo suficiente para se conduzir adequações no marco regulatório acima referido, visando estabelecer condições isonômicas no mercado nacional entre os produtos nacionais e importados, bem como privilegiando a fabricação local de insumos e produtos destinados a atender tais áreas de interesse estratégico para o país, conforme praticado pelas nações de primeiro mundo.
Tais iniciativas, merecendo trato priorizado no corrente ano, certamente serão respeitadas e aprofundadas pelo novo mandatário do país, se escolhido dentre os candidatos que mais se têm destacado nas pesquisas eleitorais.