O campo da informação é onde se travam, nos dias de hoje, as mais ferozes batalhas relacionadas à propriedade intelectual. A maior ou menor eficácia dos mitos construídos junto à opinião pública pelos grandes detentores de patentes influi no equilíbrio das forças em jogo e na agenda dos fóruns internacionais. Este foi o pano de fundo das discussões do IV Seminário Internacional “Patentes, Inovação e Desenvolvimento”, realizado pela ABIFINA nos dias 5 e 6 de novembro, em Brasília, com a participação de especialistas, empresários e autoridades envolvidas com o tema.
Um mito construído ao longo dos últimos anos, e que tem provocado imensos transtornos para os países em desenvolvimento, é o de que medicamentos genéricos infringem patentes de forma equivalente à falsificação. A disseminação dessa mentira pelos grandes patenteadores do primeiro mundo junto a agentes operacionais do comércio internacional, como as aduanas, deu origem a casos de apreensão indevida, em diversos portos, de insumos destinados à fabricação de genéricos. Outros mitos muito difundidos são o da “harmonização” internacional dos sistemas de patentes, que na verdade expressa as pressões do primeiro mundo para modelar leis nacionais segundo seus próprios interesses; e o de que os países menos desenvolvidos nada podem contra o primeiro mundo, este desmontado pela bem sucedida experiência indiana de ampliação das flexibilidades de TRIPS.
O balanço entre o interesse público e o privado na política de propriedade industrial foi o fio condutor dos debates do SIPID. Essa questão foi suscitada já na sessão de abertura pelo presidente da Abifina, Luiz Barone, que afirmou: “Fora do contexto do desenvolvimento a patente não passa de um simples monopólio de fato”.
Reinaldo Guimarães, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, e Francelino Grando, secretário de Inovação Industrial do MDIC, mostraram sintonia com essa posição. Guimarães destacou que, especificamente no caso do setor farmacêutico, ocorre um deslocamento do dilema econômico para um dilema moral, expresso no obstáculo ao acesso de populações pobres aos medicamentos, e garantiu que, por este e outros motivos, “o governo não aderirá a nenhuma medida na direção de TRIPS Plus”.
O secretário do MDIC concentrou-se na análise da natureza do monopólio em propriedade industrial. “É importante não perder de vista o caráter excepcional desse monopólio, pois é ele que estabelece o limite. E exceção não pode se tornar regra”. Segundo Grando, é preciso desconstruir a tese de que proteção em propriedade industrial é sinônimo de qualidade de desenvolvimento. Grando elogiou a iniciativa da Abifina de questionar as patentes sob esse ângulo e exortou o Congresso Nacional a abrigar uma discussão sobre o tema.
Patente: direitos versus limites
Os limites constitucionais do monopólio de patentes; a estratégia de litigância jurídica adotada mundialmente pelos grandes patenteadores para estender o período de monopólio, ainda que seja somente durante a tramitação do processo; e as implicações jurídicas da subjetividade inerente à avaliação da inventividade de um objeto de patente foram os principais temas abordados na sessão sobre a dimensão jurídica da propriedade industrial.
O advogado e professor Denis Barbosa explorou a questão constitucional, tema bastante oportuno neste momento em que o STF discute a constitucionalidade das patentes pipeline. Ele mostrou que o direito de propriedade intelectual se subordina, nas constituições dos países ícones do mundo desenvolvido, ao direito de acesso da sociedade ao conhecimento e à tecnologia; e que, em decorrência disso, mesmo quando os governos cedem a pressões econômicas, a justiça restaura essa hierarquia.”O princípio da inderrogabilidade do domínio público tem sido afirmado sistematicamente em sentenças da justiça norte-americana”, lembrou o professor.
Barbosa destacou o caráter de “escolha social” do direito de propriedade intelectual e a importância de haver um adequado balanço entre a dimensão pública e a privada nessa área. Esse princípio se faz presente na legislação brasileira por meio do Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, baseado no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que a emenda constitucional nº 45 manda integrar à doutrina do direito constitucional. Mas, ao contrário dos países desenvolvidos, que não só incorporaram esse princípio como o estenderam à lei ordinária, o Brasil não o fez até hoje.
“A patente tem sido apresentada como um bom monopólio, que seria constitucionalmente válido”, observou Barbosa. Ele lembra que o próprio INPI, que ultimamente tem trabalhado mais na direção de ampliar direitos de patente do que de condicioná-los aos limites legais, na sua origem teve uma atuação decisiva quando conseguiu incluir na primeira lei brasileira de patentes a cláusula que constrói a propriedade industrial com finalidade específica, seguindo o exemplo da Constituição dos EUA, precursora dessa funcionalidade. “Concebida dessa forma, a patente consiste ao mesmo tempo em uma outorga e uma limitação de poder” – esclarece Barbosa.
O professor comentou, citando Nuno Carvalho e Peter Drahos, que os escritórios de patentes do mundo inteiro – e o INPI não é exceção – tendem a favorecer os titulares de patentes em detrimento da sociedade, na medida em que aqueles, ao pagarem as taxas de depósito, tornam-se de certa forma “clientes”. Por isso, ele defende que haja controle social sobre o órgão. “Os escritórios não podem ter completa autonomia e a Suprema Corte dos EUA já apontou esse problema. O privado não pode se sobrepor ao público. A questão do acesso de medicamentos é uma expressão dramática desse conflito de dimensões, mas a questão é mais geral”.
Na opinião de Barbosa, a patente pipeline fez algo mais grave, em termos jurídicos, do que simplesmente negligenciar o interesse social. “Não se pode tirar do domínio público aquilo que nele já está” – afirmou o professor, sublinhando que isto seria uma aberração em qualquer parte do mundo. E de fato, todo jurista estrangeiro, quando compreende esse mecanismo introduzido na lei brasileira de patentes, fica escandalizado. Foi o caso da juíza portuguesa Maria José Costeira, a segunda palestrante da sessão, que durante o debate, depois de lamentar as dificuldades que seu país vem enfrentando para limitar abusos de patentes, foi categórica ao afirmar que “felizmente” não existe na lei portuguesa nada parecido com uma patente pipeline.
Juíza do Tribunal do Comércio de Lisboa e membro fundador da Associação Européia de Juízes Comunitários de Direito da Concorrência, Costeira abordou a recente mudança de estratégia de litigância dos detentores de patentes, principalmente no ramo farmacêutico. A “defesa clássica”, que consistia numa ação declarativa impetrada no tribunal de comércio na qual as exigências de provas eram equanimemente distribuídas entre a parte supostamente lesada e a supostamente infratora, deu lugar a uma “nova defesa” a partir da entrada dos medicamentos genéricos no mercado. Esta, que consiste no recurso aos tribunais administrativos, resulta na suspensão do processo de fixação de preço e autorização de comercialização pelo Infarmed – a Anvisa portuguesa – até que o prazo de patente expire efetivamente.
“O aspecto mais grave disso é que não há violação de patente com a mera concessão da autorização e fixação de preço” – afirma a juíza. “Só a comercialização de fato configura violação”. Lamentavelmente, porém, os tribunais administrativos têm cedido a esse tipo de pressão, aparentemente alheios ao fato de que na prática isto significa um ano extra de exclusividade de mercado para os detentores de patentes, pois equivale ao tempo necessário à tramitação de um processo no Infarmed. Mesmo não examinando nenhum aspecto que se relacione ao mérito de uma patente, por não ser de sua competência e nem do seu conhecimento, eles acabam tendo – e exercendo – o poder de estender o monopólio, muito embora os litígios que se processam nos tribunais de comércio evidenciem, segundo Maria José Costeira, a existência de patentes “pouco católicas”.
As virtudes mais ou menos “católicas” de uma patente concernem, quase sempre, ao seu conteúdo inventivo. A complexidade dessa noção foi o tema da palestra de Rodrigo Souto Maior, advogado especializado em litígios de patentes. Embora a atividade inventiva seja um consagrado critério de patenteabilidade, constante de TRIPS e da maioria das leis nacionais de patentes, inclusive a brasileira, é difícil encontrar uma definição objetiva do que seja isto. Souto Maior explica que “efetivamente há dificuldades conceituais, o que abre espaço para tratamentos subjetivos e casuísticos desse tema”. Em sua opinião, é necessário e factível buscar critérios objetivos de aferição da invenção, baseados no conhecimento técnico disponível.
Em tese, uma maior objetivação do conceito de atividade inventiva poderia inibir a litigiosidade. Mas, segundo o juiz canadense Roger Hughes, outro palestrante da sessão, não há como reduzir a complexidade do tema. Juiz da Corte Federal do Canadá, especializado em propriedade intelectual, ele exemplificou, com a interminável controvérsia sobre os transgênicos, a dificuldade que o mundo encontra hoje no estabelecimento dos limites de patenteabilidade, lembrando que até relativamente pouco tempo atrás as patentes de medicamentos e alimentos eram proibidas pelas leis de muitos países. Mesmo admitindo que há considerações morais capazes de influir na fixação desses limites no mundo contemporâneo, ele ponderou que “tudo isso é muito vago” e deixou no ar uma pergunta: “será que caminhamos para um consenso nesse tema?”
Os debatedores dessa primeira sessão temática do SIPID contribuíram com informações enriquecedoras. Pedro Barbosa, professor e advogado especializado em propriedade intelectual, destacou que o abuso do direito de patente começa a chamar a atenção do judiciário e que “felizmente, os tribunais brasileiros, especialmente o TRF da Segunda Região, vêm aplicando multas àqueles que usam indevidamente o direito constitucional de petição como uma forma de abuso do direito de patente”. E especulou sobre a conveniência da adoção na área de patentes dos princípios de gradatividade e seletividade aplicados, por exemplo, na política tributária. “Seria razoável, em termos constitucionais, conceder o mesmo prazo de patente a um chassis de motocicleta e a um medicamento para cura de câncer? Me parece que não”.
O advogado Newton Silveira, também professor e diretor geral do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual, colocou noutros termos a discussão sobre abusos relativos à propriedade intelectual, ponderando que a contrapartida do acesso à informação é o controle da informação. “O controle da informação nasce não só nos direitos de propriedade industrial, com o atenuante ou a expressa ressalva do interesse social e do desenvolvimento econômico mencionada pelo Dr. Denis Barbosa, mas deriva também do direito de autor, que pode estar se tornando um problema mais grave para as liberdades fundamentais do que o da propriedade industrial. Eu diria que talvez a propriedade industrial esteja saindo de moda. Acho que o caminho agora vai ser outro. É melhor nós nos preocuparmos também com o direito de autor”.
Sobre a questão da subjetividade inerente ao conceito de atividade inventiva, levantada por Souto Maior, Silveira cogitou que as indefinições decorrentes podem ser usadas em nosso proveito, e não necessariamente contra nós. “O acordo TRIPS nos deixou a liberdade de decidir o que achamos que é atividade inventiva. Pode ser, por exemplo, aquilo que o juiz decide que é. Por que não? Nessa parte estamos livres, ainda. É nosso direito; é nossa maneira de ser”.
Esse ponto de vista foi reforçado pelo juiz Roger Hughes em suas considerações sobre critérios para concessão de patentes. “Simplesmente não há fórmula para a obviedade ou a patenteabilidade. Temos muitos testes. Vocês falam sobre a opinião pública, desejos republicanos, garantias estatutárias etc. Falam sobre evidências e especialistas, mas qualquer juiz, eu lhes garanto, ouvindo tais considerações e voltando ao seu gabinete não terá nada a fazer com isto. Pessoalmente, considero este o maior desafio que já enfrentei como juiz. Protelar uma decisão dessa natureza por um dia pode ser a coisa mais produtiva a fazer nessas situações”.
Denis Barbosa aproveitou a sugestão do debatedor Pedro Barbosa para aprofundar a discussão sobre critérios diferenciados para patentes. “Nossa primeira lei de patentes, de duzentos anos atrás, dizia que se pode dar até quatorze anos de patente. A prática mostra que os examinadores de 1810 olhavam e diziam: ‘Esta patente merece quatro anos, aquela merece dez’, e assim por diante. Ou seja, havia uma submissão ao princípio da proporcionalidade ou da seletividade. Quando TRIPS e outros instrumentos nos obrigam a dar uma fôrma certa e determinada, como sabemos que o bolo vai caber dentro desta fôrma? Para isto é que serve o conceito de atividade inventiva: para garantir que a proteção se justifica em face do invento. Só cabe na fôrma se atender a um determinado requisito mínimo de contribuição à sociedade”.
Barbosa fez, no entanto, uma ressalva. “Eu não chego a postular, como o prof. Newton Silveira, que deveria haver maior ductibilidade, flexibilidade no sistema de avaliação. Não. Entendo que são importantes nesse sistema a objetividade e a sindicabilidade. O fato de se usar a atividade inventiva como um requisito para fazer corresponder o monopólio àquilo que o inventor deu à sociedade deve funcionar sistematicamente, e não discricionariamente. Este me parece o ponto essencial”.
Um caso polêmico relacionado à questão da inventividade – ou melhor, à falta dela – foi a decisão tomada pelo INPI, em 2008, de admitir o exame de patentes de segundo uso para medicamentos. Esse tipo de patente, embora não seja expressamente vedado nem autorizado pela lei em vigor, foge ao critério da invenção na medida em que resulta simplesmente da descoberta de que determinado medicamento desenvolvido para tratar uma doença específica pode também curar outra doença. Por isso, e também porque patentes de uso favorecem os grandes laboratórios transnacionais em detrimento das empresas nacionais e da saúde pública, o Grupo Interministerial de Propriedade Industrial (GIPI) decidiu que o Brasil não irá acolhê-las, mas até hoje o INPI não retirou esse tópico de suas diretrizes de exame.
Por delegação do Ministério da Saúde a Anvisa exerce, desde 2001, a prerrogativa de anular patentes farmacêuticas que vão contra o interesse público. O empenho do INPI quando se trata de interpretar a lei favoravelmente aos “clientes”, em contraste com a sua tibieza na hora de proteger o domínio público, tem efetivamente gerado preocupações, que contribuem para reforçar a tese da necessidade do controle externo defendida pelo prof. Denis Barbosa.
Newton Silveira lembrou o caso do Docetaxel, um composto anticancerígeno originalmente patenteado em 1986 na Europa pelo laboratório Aventis e que no Brasil entrou em domínio público, já que nessa época não concedíamos patentes farmacêuticas. O laboratório nacional Quiral passou a fabricá-lo e aperfeiçoou o processo, solucionando tecnicamente problemas de estabilidade química. Aventis tentou de diversas formas “contrabandear” uma patente do Docetaxel para o Brasil, inicialmente fraudando dados para tentar enquadrá-la no mecanismo pipeline e depois obtendo inexplicavelmente no INPI uma “declaração de direitos de comercialização exclusiva” do produto. Segundo a Info Connection, empresa de consultoria em propriedade industrial que acompanha o caso, o laboratório francês conseguiu com isso participar de algumas concorrências públicas, mas acabou sendo punido com multa após denúncia ao Ministério Público. O litígio se estende até hoje no Brasil. Enquanto isso, na Europa e nos EUA a Quiral está prestes a obter a patente para seu processo.
Respondendo a perguntas da platéia sobre possíveis formas de remunerar uma patente em alternativa ao monopólio, Denis Barbosa recordou que, numa discussão recente em painel da OMC, relativo a direito autoral, os Estados Unidos defenderam a viabilidade de um sistema que todos possam usar sem licença prévia, desde que paguem. “Eles já usam esse sistema na área autoral, e parece que o México tentou implantar nos anos 70 algo equivalente em patentes – uma licença pública genérica só para farmacêuticos. TRIPS proíbe, mas o que estamos discutindo é exatamente isto: Por que não outras formas? Será que TRIPS integra os dez mandamentos? Não matarás, honrarás pai e mãe, e vinte anos de proteção?”
Outra pergunta da platéia gerou discussão sobre as regras relacionadas a patentes farmacêuticas associadas à biodiversidade, especificamente quanto à obrigatoriedade da revelação da origem da matéria-prima biológica para efeito de compartilhamento dos benefícios gerados pela patente. Barbosa concordou, “desde que todo mundo faça. Se incorporarmos isto à lei brasileira e os outros não o fizerem, estaremos trabalhando contra o interesse nacional. Esta regra só faz sentido no âmbito de um acordo internacional; senão, é insânia”.
O poder econômico impõe seu jogo
A dimensão econômica da propriedade industrial, tema da segunda sessão temática do SIPID, suscitou novamente a questão dos critérios de patenteabilidade, desta vez com ênfase nos problemas gerados pelas diferenças de critérios num mundo globalizado e pelas novas estratégias dos grandes detentores de patentes para bloquear a concorrência em escala global.
O economista Bruno van Pottelsberghe, professor da cadeira de Inovação da Universidade Livre de Bruxelas, focalizou as dificuldades enfrentadas pelo sistema europeu de patentes em decorrência da tendência de globalização do padrão norte-americano, muito mais permeável nos seus critérios de patenteabilidade e menos exigente acerca do fator “qualidade”, o que vem provocando uma espécie de “aquecimento global” em patentes. Como os EUA admitem patentear quase tudo – substâncias e processos, usos, métodos de negócios, software, teorias e animais transgênicos – ao passo que na Europa estes quatro últimos não são patenteáveis, a quantidade de pedidos cresceu exponencialmente nesta década. Pottelsberghe apontou possíveis implicações negativas dos projetos internacionais de convergência – ou harmonização, como se tem chamado. Ele afirmou que os países envolvidos devem certificar-se de que estão integrando sistemas de patentes similares, caso contrário acabam assumindo uma agenda não compatível com seus interesses. O backlog, por exemplo, segundo ele é um problema essencialmente norte-americano, e não europeu.
Em um de seus muitos artigos publicados sobre política de patentes, Pottelsberghe afirma que “patentes deveriam estabelecer um limite entre as coisas que criam embaraço para o público, quando sujeitas a um regime de patente exclusiva, e aquelas que não o fazem. Patentes são, acima de tudo, monopólios implementados pelo governo, e assim deveria haver algum embaraço (e hesitação) em garanti-las”. Além disso, lembrou que o direito do titular de patente de impedir outros de usarem comercialmente seu invento por vinte anos é concedido em troca da abertura do segredo da invenção. No entanto, cada vez mais se usa o expediente de apresentar descrições pouco claras e calhamaços imensos, para dificultar o acesso de possíveis concorrentes ao conhecimento contido na patente.
Na opinião do economista, infelizmente o livre acesso à informação de patente – que deveria ser um elemento-chave na negociação – hoje não passa de uma utopia. Para corrigir distorções, ele propõe que este passe a ser o foco da convergência dos sistemas de patentes. “Muitos atores (especialmente micro e pequenas empresas, universidades e inventores independentes) não têm pronto acesso à informação sobre patentes pendentes e concedidas. A transparência nesse processo, que poderia restaurar a confiança no sistema, seria alcançada se as seguintes fontes de informação estivessem livre e prontamente disponíveis para todos, online: ferramentas de busca e bases de dados indispensáveis para investigar o estado da técnica; todos os depósitos de patentes num período de dezoito meses após o primeiro requerimento; solicitações de procedimentos de urgência; e todas as patentes em vigor num determinado país. De forma similar, o total e livre compartilhamento de relatórios de busca e exame pelos examinadores contribuiria para reduzir as pendências e, consequentemente, os backlogs”.
Christopher Heath, doutor em Direito e membro do comitê de apelação do EPO, falou sobre o recente inquérito da Comissão Europeia para apurar abusos de patentes no setor de medicamentos. Ele assinalou que a Europa é sensível à questão da defesa da concorrência e reforça os mecanismos institucionais voltados para essa finalidade. No caso das patentes, um exemplo é o comitê de apelação que, embora ligado ao EPO, atua de forma independente e tem o peso de última instância quando revoga uma patente. Segundo Heath, a importância desse sistema de oposição foi destacada pelo inquérito da CE, que constatou que mais de 75% das patentes farmacêuticas contestadas por produtores de medicamentos genéricos ou concorrentes foram revogadas, ou mantidas com limitações.
O inquérito foi movido para investigar por que a entrada de medicamentos genéricos no mercado europeu estava ocorrendo com um retardo de cerca de sete meses após a expiração das respectivas patentes. A Comissão apurou que os grandes laboratórios têm recorrido a táticas desleais, tais como ataques à imagem dos genéricos frente aos médicos e à opinião pública, e a diversas estratégias de bloqueio direto da concorrência.
Três diferentes estratégias foram identificadas. A primeira consiste em colocar no EPO muitos pedidos de patente sobre uma mesma fórmula básica. Um medicamento com grande potencial de mercado gera cerca de cem pedidos com pequenas variações, e após a aprovação da patente principal são depositados outros pedidos, para diferentes dosagens e processos de produção. Cria-se assim um cluster de patentes secundárias que dificulta a análise de onde começa e onde termina a proteção, desestimulando iniciativas por parte dos fabricantes de genéricos. A segunda estratégia, derivada da primeira, é o enforcement do monopólio por meio de litigância jurídica com base nessas patentes secundárias. Embora quase 70% delas sejam revogadas após contestação, o simples depósito cria incerteza jurídica na concorrência. A terceira, finalmente, lança mão de mecanismos de mercado. São acordos feitos entre o detentor de patente e o fabricante de genérico para retardar um lançamento de medicamento fora de patente, que podem ser comercialmente vantajosos para ambas as partes, mas prejudicam o consumidor.
Em função da confirmação dos abusos de patentes, o relatório final do inquérito recomendou a revisão do sistema atual de exclusividade de dados de testes e a simplificação do sistema de fixação de preços e reembolso de medicamentos. No âmbito intra-bloco a União Europeia é extremamente ativa em ações de defesa da concorrência, como se pode ver. Mas quando o concorrente vem de fora o cenário muda radicalmente, como mostrou o diplomata Henrique Choer Moraes, atualmente engajado na Missão do Brasil junto às Comunidades Europeias (Bruxelas), onde chefia os setores de propriedade intelectual e de questões aduaneiras. Ele analisou os “tabuleiros” onde evolui o jogo das negociações internacionais nessa área e constatou que, atualmente, uma das maiores ameaças para as economias emergentes – o empowerment das aduanas na área de patentes – vem justamente da Europa.
O primeiro tabuleiro, dos foros multilaterais, tem hoje como principal player a Organização Mundial de Aduanas (OMA). Sediada em Bruxelas, essa entidade é a ponta-de-lança da nova estratégia do G-8, especialmente dos membros europeus, para o enforcement dos seus interesses no campo da propriedade industrial. Em 2007 a OMA lançou o projeto SECURE, declaradamente para “combater a falsificação e a pirataria” com medidas de fronteira. Como não se supunha que ofensivas na área da propriedade industrial poderiam advir daí, a diplomacia brasileira foi pega de surpresa e perdeu a primeira reunião. Na segunda, realizada no início de 2008, o Brasil começou a participar e foi o primeiro país a levantar o problema dos pressupostos, ou seja, de que a OMA não tem expertise em propriedade industrial e, portanto, não é órgão apropriado para tratar de assunto tão complexo. Acusada de incentivar a pirataria, a representação brasileira criou uma coalizão de países em desenvolvimento para articular a contra-ofensiva.
A tática do projeto SECURE é eliminar a distinção entre ações de pirataria, falsificação e supostas infrações de patente, oferecendo um pacote de “best practices” – na verdade, intervenções de cunho político – para minimizar o problema. Essas práticas foram consolidadas no SECURE Standards & Model Legislation, documento pelo qual a OMA oferecia um modelo de legislação para países que quisessem “modernizar” suas legislações aduaneiras. Segundo Moraes, a primeira versão desse documento,”um panfleto TRIPS Plus”, sugeria que as aduanas podem atuar para combater supostas violações a patentes, prática esta “muito pouco best e bastante discutível”.
A coalizão liderada pelo Brasil fechou questão em torno da ideia de que a OMA, um simples foro de técnicas aduaneiras, não pode contestar TRIPS, cujas recomendações em matéria aduaneira se limitam a casos de contrafação e pirataria e por isso compreendem, exclusivamente, marcas e direitos autorais. Em vista disso, o documento foi retirado da mesa e a competência normativa da entidade foi suspensa por todo o exercício de 2008. A OMA não pode ter poder normativo, enfatizou Moraes, pois “aquilo que começa como soft law acaba virando hard law”.
Depois de um período de impasses, a OMA decidiu acabar com o grupo SECURE e criar o grupo CAP (contrafação e pirataria), para cuidar apenas de marcas e direitos autorais. Ou seja, baixou o escopo e a pretensão. “Mas sabemos que as pressões serão constantes”, admitiu Moraes. E têm sido. Mais recentemente, prosseguiu o diplomata, “as apreensões de produtos indianos em trânsito pela Europa concretizaram nossos temores de que o poder das aduanas seria usado indevidamente”.
No início de 2009, um lote de insumo destinado à produção de medicamentos genéricos importado da Índia por empresa brasileira ficou retido por 36 dias no porto holandês de Rotterdam, um dos principais hubs da Europa, sob a alegação de ser produto falsificado. A mercadoria, que estava apenas em trânsito, pode ser comercializada livremente no Brasil, onde não é protegida por patente. Como o laboratório alemão Merck tem patente válida em seu país para o referido produto, solicitou à Holanda a retenção da carga e foi atendido. O incidente gerou uma tensão diplomática: o Brasil acusou a União Europeia de desrespeito a TRIPS e foi acusado de comércio ilegal de produtos falsificados. Em seguida, o Brasil instituiu ação conjunta na ONU e na OMC para garantir o acesso a medicamentos genéricos. Teve uma resolução aprovada no Conselho de Direitos Humanos da ONU e na OMC iniciou consultas para a abertura de um painel contra a União Europeia.
No segundo tabuleiro, dos foros plurilaterais, atualmente está em jogo o ACTA (Anti-counterfeiting Trade Agreement), tratado internacional criado ad hoc pelo G-8 para avançar, igualmente, na implementação de seus interesses em propriedade intelectual. O Brasil não participa e, segundo Moraes, não tem tido acesso ao conteúdo desse tratado, que ainda está em negociação. O que já ficou claro, afirma o diplomata, é que o acordo deverá incorporar medidas de fronteira, pois a intenção da Comunidade Europeia é a de reproduzir nele o escopo da legislação do bloco.
No âmbito dos foros regionais, que ocupam o terceiro tabuleiro, a mais recente novidade é o acordo entre a Comissão Europeia e a Coreia do Sul, que estabelece medidas de fronteira com orientação TRIPS Plus e instrumenta a aduana coreana para o enforcement da propriedade intelectual, envolvendo inclusive cargas em trânsito. O quarto tabuleiro é o dos acordos bilaterais, que agem de forma complementar. Nos IPR Enforcement Reports produzidos para monitorar tais acordos, “os europeus lamentam o fato de as legislações nacionais de seus parceiros não contemplarem as aduanas como instrumento de enforcement, em linguagem que às vezes beira o ridículo”, relata Moraes.
A conclusão do diplomata, em vista da disposição nos quatro tabuleiros, é a de que “há uma tendência de deslizamento da estratégia dos foros políticos em direção a agentes operacionais; da criação de normas substantivas para a elaboração de ‘padrões’ (soft law) alegadamente operacionais, o que implica uma mudança de interlocutores”. É como se as pretensões TRIPS Plus, que são uma invenção unilateral do primeiro mundo e extrapolam o escopo de TRIPS, fossem tomadas como conceitos já estabelecidos e não fizesse sentido pô-las em discussão.
Os interlocutores visados pela nova estratégia, observa Moraes, não são nem diplomatas nem policy makers, talvez porque estes estejam por demais conscientes das implicações de TRIPS Plus para seus países. Os novos interlocutores são as aduanas, a vigilância sanitária, enfim, técnicos despreparados para lidar com os aspectos conceituais e políticos da propriedade industrial, mas cuja ação fiscalizadora pode ter o poder de bloquear o fluxo de uma cadeia produtiva. Fica mais fácil vender a agenda TRIPS Plus para agentes “técnicos” – especializados, obviamente, noutras matérias que não a propriedade industrial. Moraes sublinha que essa nova estratégia não pode ser definida como “enforcement no sentido pleno, já que há pouca permeabilidade ao enforcement de normas concorrenciais”. Trata-se, antes, de implementar exclusivamente os aspectos da propriedade industrial que interessam ao G-8.
A sessão sobre a dimensão econômica da propriedade industrial evidenciou, portanto, que a defesa da concorrência só entra na agenda da União Européia quando os concorrentes envolvidos são europeus. No setor farmacêutico, e especialmente no contexto da atual guerra dos genéricos, que põe em jogo enormes fatias do mercado mundial de medicamentos, é flagrante a mudança de postura quando um dos contendores é de país emergente dotado de uma indústria promissora. Nesses momentos, é a lei do mais forte que prevalece.
Os debatedores convidados para a sessão exploraram essa perspectiva, cada um à sua maneira. O Desembargador André Fontes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, mostrou-se preocupado com o escasso conhecimento da magistratura sobre a lógica e o funcionamento da economia da informação, que ele atribui em parte ao fato de não constar da formação do advogado a teoria econômica do Direito. “Leis e normas têm frequentemente motivações econômicas” – ponderou Fontes. “As regras do jogo não são estabelecidas segundo o concerto das nações”. A título de provocar o debate, o Desembargador propôs uma reflexão: “O destino dos países do hemisfério sul é o de ser a polícia das patentes dos outros? É isto que queremos para o Brasil?”
O outro debatedor, professor Ronaldo Fiani, do Instituto de Economia da UFRJ, retomou o tema do monopólio no contexto das assimetrias globais. “Pagamos mais caro pelo produto patenteado em troca de mais inovação e do aumento da base do conhecimento para o futuro. Em tese, portanto, trata-se de um monopólio ‘bom’. Acontece que o custo e o benefício desse monopólio não ocorrem no mesmo país. Nós pagamos caro aqui por um benefício que se concentra lá”. O professor sugeriu ainda que, consideradas conjuntamente, a perspectiva de Bruno van Pottelsberghe, que define a patente como algo muito mais complicado do que uma “receita de bolo”, e o relato de Christopher Heath sobre casos de uso anticompetitivo do privilégio levam à conclusão de que “patente não é um mecanismo apropriado para todas as indústrias, mas é um excelente mecanismo para fechar mercado em todas as indústrias”, concluiu Fiani.
No debate com a plateia, coube a Bruno van Potterlsberghe tomar a iniciativa de devolver as provocações feitas ao longo da sessão contra os países desenvolvidos. “Vocês não têm a obrigação de garantir todas as patentes. Façam suas regras, mudem, adaptem seu sistema de patentes aos interesses do país”. Christopher Heath, nessa mesma linha, argumentou sobre a controvertida patente de uso que “se for conveniente para a indústria local, permitam. Se não for, é só dizer não”.
Henrique Moraes apimentou o debate ao destacar contradições no inquérito da Comissão Europeia sobre abuso de patentes. “Há diversidade de visões e também há conflitos na CE. Curiosamente, no penúltimo relatório do inquérito, emitido em 2006, vimos a Direção Geral de Comércio criticar o Chile por conceder autorizações que supostamente violavam patentes. Agora, com o último relatório condenando o linkage, a Direção Geral de Concorrência poderá gerar uma controvérsia saudável”.
A moderadora Liliane Roriz, Desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, encerrou a sessão propondo algumas instigantes questões para reflexão. Ela lembrou que, “se a visão do economista é a do mercado, a do jurista é a de que o mercado não pode resolver tudo”. E, acolhendo dúvidas levantadas no Seminário, especulou sobre o que seria a melhor política de patentes para um país com média tecnologia como o Brasil. “Talvez haja outros meios de proteção da tecnologia que não o do monopólio de vinte anos”.
Dimensão social: o problema dos emergentes
O setor de medicamentos é onde mais se cometem abusos de patentes e litigância de má fé, e também onde os malefícios sociais decorrentes dessas práticas são mais visíveis. A sessão sobre a dimensão social da propriedade intelectual trouxe à cena experiências concretas e confrontos reais entre interesses econômicos e sociais nessa área, além de sugestões para preservar e ampliar as conquistas dos programas públicos de saúde.
A primeira palestrante foi Jayashree Watal, a principal negociadora da Índia no acordo TRIPS, assessora do governo indiano em negociações internacionais sobre propriedade intelectual e atualmente Conselheira da Divisão de Propriedade Intelectual da OMC. Após o seu candente relato sobre a história de TRIPS na perspectiva de um país de terceiro mundo, que lutou para preservar o acesso de sua população aos medicamentos essenciais, ficou claro porque a Índia é hoje uma potência na produção e exportação de genéricos. A participação de Watal no SIPID foi um testemunho contra a concepção, muito comum no Brasil, de que países em desenvolvimento são fatalmente perdedores nos embates do comércio multilateral.
A conselheira da OMC destacou as flexibilidades de TRIPS para mostrar que o acordo é equilibrado do ponto de vista das assimetrias econômicas internacionais. As patentes para produtos e processos farmacêuticos passariam a ser aceitas somente a partir de 1995 e seriam concedidas apenas a novos inventos; e os países em desenvolvimento teriam o direito de retardar esses procedimentos em dez anos. Na Rodada Uruguai do Gatt que resultou em TRIPS, a Índia atuou como um dos líderes da resistência dos países em desenvolvimento. Depois de firmado o acordo, o país manteve em vigor, durante todo o período de transição de dez anos, sua lei de patentes de 1970, que proibia o patenteamento de produtos farmacêuticos, aceitando registrar apenas patentes de processo por um período de no máximo sete anos após a data do pedido. A Índia só passou a garantir direitos de comercialização exclusiva para determinados produtos farmacêuticos depois de perder um contencioso na OMC com os EUA e a União Europeia. Sua nova lei de patentes compatível com TRIPS foi sancionada somente em 2005 – como se diz em futebol, “no último minuto do segundo tempo”.
Segundo Watal, as flexibilidades de TRIPS, que estabeleceram algum equilíbrio entre a dimensão econômica e a social em patentes, não caíram do céu: ao contrário, “houve muita luta”. Os EUA queriam que a licença compulsória valesse só para práticas anticompetitivas e emergência nacional declarada. A Índia tentou flexibilizar essas condições articulando-se com países do Common Wealth, mas não teve sucesso e acabou apresentando isoladamente a proposta que viria a se converter no artigo 31 de TRIPS, prevendo a possibilidade da licença compulsória para uso de governo. O argumento decisivo foi mostrar que os EUA já tinham esse dispositivo incorporado em sua lei de patentes.
A advogada Michelle Childs, Diretora de Advocacia Política da Campanha de Medicamentos Essenciais de Médicos sem Fronteira (MSF), levou estatísticas atualizadas sobre a Aids no mundo e confirmou a força dos indianos nesse setor: 80% dos ARVs utilizados pela organização para seus programas de tratamento de Aids são adquiridos na Índia. A grande preocupação do MSF no momento é que a resistência do vírus exige a aquisição de medicamentos mais novos – por exemplo, em Ruanda, um em cada cinco pacientes de Aids precisa mudar para medicamento de nova geração – e, com a plena implementação de TRIPS, todos os novos remédios serão patenteados, o que certamente irá pressionar os custos. “É urgente haver mais genéricos e mais inovação, pois os tratamentos antigos perdem a eficácia” – advertiu Childs.
Como conciliar inovação e acesso universal num mundo de patentes globalizadas? Entendendo que esse novo cenário apresenta não apenas obstáculos, mas também oportunidades, o MSF aposta no crescimento da demanda mundial por medicamentos novos para Aids que sejam acessíveis aos programas públicos e trabalha na construção de um pool de patentes – o Unitaid, que deve começar a operar em 2010.
O pool trabalha com a lógica do mercado, tentando aproximar voluntariamente detentores de patentes e potenciais clientes do setor público a partir da noção de responsabilidade social. Consiste na aquisição conjunta – e disponibilização para fabricantes em bases não exclusivas – de licenças das patentes necessárias à formulação de coquetéis para Aids. Os direitos são gerenciados coletivamente, bem como as licenças, a arrecadação dos royalties e as negociações para inclusão de novas patentes que interessem ao pool. Childs admite o risco de laboratórios tentarem empurrar para esse novo sistema medicamentos mais antigos, ultrapassados, mas acredita que o pool terá a expertise necessária para selecionar produtos que realmente interessem.
A advogada Mirta Levis, diretora executiva da Asociación Latino-americana de Industrias Farmacéuticas (Alifar), retomou o tema abordado na sessão anterior pelo diplomata Henrique Moraes: o perigoso avanço da campanha mundial dos laboratórios transnacionais para associar supostas infrações de patentes à ideia de falsificação. Ela mostrou que as estatísticas misturam produtos piratas, falsificados e genéricos, “confundindo aspectos relacionados à propriedade intelectual e à saúde pública como se fossem delitos de natureza similar”. Levis lembrou que até a insuspeita Associação Europeia de Medicamentos Genéricos, em documento publicado em 2008, denunciou essa manobra e pleiteou a exclusão do item patentes do alcance do ACTA.
A diretora da Alifar reiterou a percepção dominante no SIPID de que a estratégia dos clusters de patentes e o enforcement na esfera aduaneira formam uma combinação perversa para países em desenvolvimento. “A maioria das patentes que se solicita e muitas vezes se concede, protege modificações triviais de produtos já conhecidos e comercializados, com o propósito de eliminar os competidores do mercado. Essas modificações triviais se realizam sobre fórmulas químicas de dificultosa ou impossível verificação por parte de uma autoridade aduaneira”.
As informações apresentadas por Levis mostraram que a estratégia de privilegiar os agentes operacionais em detrimento das discussões substantivas sobre propriedade industrial é generalizada entre os países de primeiro mundo. Enquanto a Europa concentra suas apostas nas medidas de fronteira, que resultam num bloqueio imediato e eficaz, os Estados Unidos investem mais em ações de médio prazo conduzidas pelo Departamento de Comércio, tais como acordos bilaterais e programas de assistência técnica a instituições públicas dos países menos desenvolvidos. O discurso é sempre o do apoio, da colaboração e da capacitação técnica para cumprimento dos tratados internacionais.
Na América Latina, a Argentina em 2004 e a Venezuela em 2005 foram os países que chegaram a mudar suas leis para incorporar as prescrições da Organização Mundial de Aduanas. Depois de quatro anos de pressões da indústria local e do Ministério da Saúde, a Argentina reverteu as absurdas concessões feitas na área de patentes por meio de uma reforma legal que limitou as medidas de fronteira a marcas e direitos autorais. Não é difícil entender como dispositivos tão prejudiciais ao interesse nacional chegaram a ser incorporados à legislação de um país que tem se caracterizado, nos últimos anos, justamente pelo resgate do nacionalismo. Propriedade industrial é um tópico complexo e de mais difícil compreensão pelo senso comum do que o direito autoral e as marcas, que deram origem às noções de plágio, pirataria e falsificação. Como os órgãos públicos não especializados no assunto tendem a trabalhar com pressupostos do senso comum, eles assimilam sem resistência a ideia de que qualquer possível infração à propriedade intelectual se enquadra em uma dessas categorias, merecendo portanto tratamento semelhante. Ao receber um projeto de lei específica encaminhado por órgão competente, o Congresso, que também não conhece a fundo o assunto e por isso tende igualmente a seguir o senso comum, aprova-o sem maior apreciação crítica.
A diretora da Alifar assinala que a identidade entre falsificação e medicamentos genéricos que os grandes patenteadores pretendem forjar em suas campanhas de comunicação é duplamente nefasta. “A falsificação de medicamentos é um delito contra a saúde pública, e não uma infração contra a propriedade industrial. Uma vez que a proteção de patentes em nada interfere no problema da falsificação de medicamentos, tal associação só contribui para distorcer o problema e retardar as soluções. Uma clara distinção entre os conceitos permitiria desenhar ferramentas eficazes para a luta contra a pirataria e a falsificação sem afetar o acesso aos medicamentos e à saúde pública”, afirma Mirta Levis.
A debatedora Juliana Vallini, consultora da Assessoria de Cooperação Internacional do Programa Nacional de DST-Aids do Ministério da Saúde brasileiro, reiterou a importância da intervenção do MS em questões de patente como forma de fazer frente à guerra aberta dos grandes laboratórios contra os genéricos, citando o exemplo do Tenofovir. A Gillead, empresa detentora da patente, firmou contratos de licença voluntária que impedem a exportação desse produto para o Brasil, numa evidente retaliação contra a licença compulsória do Efavirenz. Vallini destacou que o Tenofovir é um medicamento essencial, usado também no tratamento da hepatite.
A professora Lia Hasenclever, do Instituto de Economia da UFRJ, comentou que o projeto do pool de patentes, embora seja uma alternativa para acelerar a difusão tecnológica nesse setor socialmente sensível, pode ser de difícil operacionalização. “É óbvio o interesse das empresas que pedem a licença. O que não está claro é qual a vantagem para a empresa cedente, além do fator humanitário”, questionou. O moderador da sessão, Zich Moysés, diretor do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde do MS, acrescentou que pode ser difícil atrair licenças voluntárias para o pool na medida em que a remuneração das empresas farmacêuticas vem do mercado de capitais e decorre, precisamente, do monopólio de patentes.
Diante dessas objeções, Michelle Childs admitiu que a licença voluntária é apenas uma tentativa de aproximação. “Se tiver sucesso, ajudará os países em desenvolvimento na manutenção dos seus programas de combate à Aids e também será positivo para os detentores de patentes, pois eles precisam crescer e o mercado na Europa está saturado. As empresas sabem que, se quiserem criar mercado futuro no terceiro mundo, não podem ser vistas como responsáveis por uma pandemia. E se elas se recusarem a negociar com o pool, isto poderá acelerar medidas de licença compulsória em alguns países”.
A lição que se pode extrair dos debates ocorridos no SIPID é que o discurso da vítima não ajuda o Brasil. Se nos acovardamos lá atrás, quando entregamos de bandeja ao primeiro mundo as patentes pipeline, de alguma forma nos redimimos quando decretamos a licença compulsória do Efavirenz. É inútil esperar que nossos parceiros – que são também nossos adversários – reconheçam o valor das concessões que fizemos e nos compensem por isto. Quando mais concedermos, mais nos irão subtrair. É hora de passarmos a seguir os exemplos concretos das políticas de patentes e de desenvolvimento industrial do primeiro mundo, e não as prescrições que eles nos endereçam. O futuro depende, acima de tudo, da nossa própria atitude.