Por que as licitações públicas feitas pelos laboratórios oficiais não preveem um tratamento isonômico entre as propostas de produtos fabricados no país e os similares importados? É a Lei de Licitações que impede que isso seja feito?
Creio que há duas classes de problemas para explicar esse fato. A primeira é de natureza ideológica, mas com implicação direta no comportamento dos dirigentes dos laboratórios oficiais: o valor nominal é, via de regra, menor quando os produtos são importados. Essa diferença ocorre porque não são aplicadas as regras da própria Lei de Licitações para compensar toda a diferença devida ao recolhimento de tributos ser maior no produto nacional, ou seja, falta isonomia fiscal na avaliação das licitações. Ainda que pareça absurdo, aplicar como preceitua a lei a devida correção traz toda uma gama de temores, como os recursos e as ações de importadores que paralisam o processo licitatório, mas, principalmente, o temor de que os órgãos de controle atuem ainda no marco simplista do neoliberalismo: menor preço vai acabar com o “protecionismo” às empresas atrasadas que vivem de favores do setor público.
Creio que dentre os efeitos positivos da atual crise econômica estará a revisão desse comportamento dos técnicos dos órgãos de controle. Esse posicionamento, aliás, já está avalizado pela Portaria IM 128/08.
A segunda é que há uma fraqueza muito acentuada na produção nacional de farmoquímicos. São menos do que 20 empresas de pequeno ou médio portes com portfólio limitado. Tudo resultado da destruição de empresas e de projetos nacionais nas décadas anteriores. Esse processo precisa ser estancado e revertido. Os passos, ainda tímidos e iniciais tomados no âmbito do Ministério da Saúde, são na direção de parcerias público-privadas para desenvolver novos fármacos, como possibilita a Portaria 978/08.
Por que as licitações públicas para a aquisição de produtos pelos laboratórios oficiais devem ser conduzidas preferencialmente sob a forma de contratação dos serviços de fabricação, e não a simples compra de produto?
Trata-se de um procedimento fundamental para a garantia da qualidade dos medicamentos, além de possibilitar a customização do princípio ativo ao parque produtivo do laboratório oficial. Isso é exigido pela Anvisa para registro de genéricos, mas impossível para um Laboratório Oficial se o princípio ativo for tratado como “commodity”, ou seja, depender de licitações anuais pelo “menor preço”.
Certo que esse grau de integração entre indústria farmacêutica (contratante/ beneficiária do serviço) e indústria farmoquímica (contratada/ prestadora do serviço) apenas é possível quando a segunda possui unidade fabril em território nacional, sem a qual estaria impedido o acompanhamento técnico da produção e o rápido retorno para a correção de qualquer não conformidade. Esse fato já foi demonstrado pela Petrobras ao Ministério Público e aos Tribunais de Contas da União, em decorrência sendo-lhe ensejada a possibilidade de exigir a fabricação local de componentes estratégicos para sua produção. Abrir mão dessa exigência técnica mudaria completamente o objeto do serviço, pois inviabilizaria o acompanhamento da equipe técnica do laboratório público, ou seja, o serviço seria outro, diverso do pretendido para uma produção mais eficiente de medicamentos.
Além da pertinência técnica da contratação de empresa com unidade fabril em território nacional; através de serviço de fabricação com fornecimento, deve ser ressaltado que a referida mudança nas aquisições de fármacos terá resultados benéficos para a política industrial brasileira e para a geração de empregos no Brasil.
E havendo produção local, por que se realizam pregões internacionais ou nacionais, mas aceitando oferta de revendedores de produtos estrangeiros? Não deveria ocorrer pelo menos uma preferência pelo produto nacional, à semelhança do que requer o Buy American Act norte-americano, editado em 1933 e vigente até hoje?
Existem de fato licitações pseudonacionais, isto é, a empresa nacional é apenas importadora. Isso coloca um intermediário entre o produtor estrangeiro e o Laboratório Oficial. Nesse sistema, freqüentemente, perde-se ainda a segurança na qualidade do produto ofertado.
Sei que o Gecis estuda uma proposta visando usar coerentemente o poder de compra do SUS para o desenvolvimento industrial brasileiro, vale dizer, para toda a economia nacional.
Não se pode entender o incentivo ao mercado interno expresso na norma acima como uma contradição com a revogação do art. 171 da mesma Constituição. O que deixou de existir com a Emenda Constitucional nº 6/95 foi a categoria de empresa brasileira de capital nacional e as vantagens e incentivos especiais a tal empresa permitidos; benefícios que tinham o condão de estimular um desenvolvimento nacional soberano. Entretanto, apesar da mudança, manteve-se constitucionalmente a categoria de mercado interno e a previsão de que o mesmo deve ser incentivado pelo Poder Público. Tudo isso significa que embora dentro do mercado interno não se possa mais incentivar a empresa brasileira de capital nacional em condições diversas da empresa brasileira de capital estrangeiro, o mesmo não pode ser dito do mercado interno em relação ao mercado externo. Identificar as fronteiras entre o interno e o externo e exercer seu poder soberano em relação ao primeiro é atribuição histórica dos Estados Nacionais.
E quanto à isonomia tributária citada antes, cuja compensação não seria corretamente aplicada nas licitações, poderia explicar?
A lei 8.666/93, em seu artigo 42º, parágrafo 4°, determina que sejam avaliados, para efeito de comparação de preços entre um licitante nacional e um estrangeiro, os tributos que incidem sobre o produto nacional se adicionem os mesmos ao preço ofertado pelo estrangeiro. Isso não tem sido feito, ou tem sido erroneamente aplicado.
O espírito da lei é certamente o da isonomia, inclusive tributária, para a justeza do certame. Os governos dão incentivos para exportar, inclusive o Brasil, retirando os tributos dos produtos. Alguns chegam a vir com incentivos monetários “para cada dólar exportado, tanto de abatimento dos tributos nacionais”. Em alguns países não há as exigências regulatórias que temos, como sobre o ambiente, diminuindo a necessidade de investimentos. Como então comparar desiguais?
O que a lei das licitações indica é que a totalidade dos gravames que incide sobre o produto nacional deve ser acrescida ao produto importado, sem considerar os tributos pagos nos países de origem, não só por dificuldades operacionais, mas, fundamentalmente, por que legislamos sobre a isonomia no mercado interno, nacional. Ou seja, o princípio que existe por trás é a igualdade de contribuições para o desenvolvimento brasileiro. Assim temos:
“Art.42. Nas concorrências de âmbito internacional o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes”. ……. &4º. “Para fins de julgamento da licitação, as propostas apresentadas por licitantes estrangeiros serão acrescidas dos gravames conseqüentes dos mesmos tributos que oneram exclusivamente os licitantes brasileiros quanto à operação final de venda.”
Ora, o que onera a operação final de venda são todos os tributos brasileiros que incidem sobre a produção nacional e que incluem desde IPI, INSS, COFINS, IPTU, ISS, ICMS, por exemplo, como também o imposto de importação.
Nesse mesmo espírito isonômico do total de gravames que incide sobre o produtor nacional, deve ser descontado o eventual e efetivamente pago como imposto de importação, pelo importador do farmoquímico.
Para conforto dos pregoeiros é importante que no caso dos farmoquímicos sejam definidos e quantificados tais gravames pelos órgãos competentes, como assinala em seu caput o Art.42. Assim, o MDIC, o Ministério do Planejamento, o Ministério da Fazenda e o Ministério da Saúde poderão evitar interpretações mais restritivas ao desenvolvimento brasileiro que possam ser dadas devido ao &4º do art. 42 da lei no. 8666/93.
É conveniente, assim, que um instrumento administrativo convalide ambas as opções contratuais – a de rotina: pregões nacionais para contratação de serviços com fornecimento de produtos e, em situações especiais, pregões internacionais para aquisição de princípio ativo. Uma portaria interministerial (Saúde, Planejamento e Desenvolvimento, Indústria e Comércio), advogada por nós com esse fim, foi editada (PI 128/08) buscando desatar o nó da ineficiência produtiva dos laboratórios oficiais e dar tratamento isonômico a produtos nacionais e estrangeiros, protegendo assim a economia nacional. Porém, o indicador proposto para a carga tributária nacional no setor industrial, em meados do ano passado, que era estimada em 34% pela Fundação IBGE – por parecer do Ministério do Planejamento, não foi incluído no texto dessa Portaria, pretendendo-se uma normatização adicional do MPOG que ainda não foi publicada.
Resolver essa questão crítica para a aplicação da Portaria 128/08 é urgente, inclusive por seu efeito indutor na produção farmoquímica nacional e, assim, conjugadamente no atendimento às necessidades sanitárias e econômicas do país pelo apoio à política de medicamentos e à política industrial do Governo Federal.
Quais são os seus destaques dessa grande experiência que foi a criação de uma parceria público-privada para o desenvolvimento tecnológico e a fabricação local do Efavirenz? Valeu a pena o sacrifício desse pioneirismo?
Certamente valeu e está valendo a pena. A experiência está sendo muito rica para Farmanguinhos, tanto do ponto de vista técnico, como político. Entre outras coisas botou por terra vários mitos. Destruiu “verdades”, revelando a força de nossa vontade e os limites de nossas competências. Dá-nos hoje um novo caminho, mais verdadeiro e sólido como paradigma para a produção nacional, em especial nos Laboratórios Oficiais. Nesse sentido, a própria participação diferenciada da Anvisa propiciou um novo norte nas relações entre Laboratórios Oficiais e esse órgão regulador.
E o que pode nos informar quanto às demais parcerias em cogitação, como insulina, hormônios, etc.?
Estamos construindo algumas parcerias um pouco mais complexas porque envolvem parceiros do exterior, mas sempre envolvendo também empresa nacional.
Entre essas a da insulina é exemplar de um modo singular: o enfrentamento foi visível por todos. O processo de absorção tecnológica e de importação ficou parado durante oito meses por intervenção de técnicos da Anvisa. A tentativa de desqualificar o produto foi completamente absurda, primeiro pelos próprios resultados de sua aplicação no Brasil, e segundo porque fomos obrigados a examinar lote por lote, com testes que incluíam potência e resíduos, que não são normalmente exigidos, ficando demonstrada de maneira irrefutável a qualidade superior do produto.
Aliás, a história da insulina no Brasil propicia outras lições interessantes: a fragilidade das empresas nacionais frente às transnacionais. Sem uma parceria públicoprivada elas são facilmente destruídas.
Para a viabilização desses patrióticos empreendimentos não seria melhor mudar o marco regulatório de Farmanguinhos, atualmente restrito pela sua forma de administração pública direta?
O marco regulatório atual da contratualização de Farmanguinhos com o Ministério da Saúde foi estabelecido em 2000, ou seja, em meio ao tão decantado período neoliberal.
Por paradoxal que seja, Farmanguinhos, que deu a direção da intervenção possível nesse estágio do desenvolvimento farmoquímico brasileiro, que dá apoio permanente às ações de saúde do Ministério da Saúde, que viabiliza a política de relações internacionais do Brasil com a África, que é exemplo para vários países do mundo, encontra-se fragilizado financeiramente.
Para as funções estratégicas que temos, entre elas, manter estrutura de pesquisa e desenvolvimento, prestar assessorias, inclusive internacionais a pedido do Ministério das Relações Exteriores, manter o ambiente saudável e socialmente ativo no entorno de nossas unidades produtivas, Farmanguinhos não dispõe de nada, nenhuma previsão orçamentária, que não seja o resultado de vendas efetivas ao SUS. Mas nossos preços são estabelecidos a partir do confronto pelo valor do menor preço oferecido em licitações públicas por importadores, mesmo quando praticam “dumping”, ou descarregam produtos encalhados. Quando não é essa, a comparação se dá com os preços de aquisição de organismos internacionais, tipo UNICEF, onde são colocados, via de regra, por grandes empresas, seus excedentes de produção a preços promocionais, para serem divulgados em toda a imprensa “especializada”, inclusive The Economist, no seu portfólio de bondades com a África ou as sofridas criancinhas vítimas dos conflitos mundiais.
É importante que se saiba que, na verdade, Farmanguinhos é apenas um “departamento” de uma fundação pública (a Fiocruz), ao qual não se alocam recursos sem compromisso com a produção de medicamentos, diferentemente das outras unidades da Fiocruz (Biomanguinhos também funciona a partir de sua produção). Temos possibilidade de ter financiamento para projetos de pesquisa e desenvolvimento, desde que não se incluam as despesas de infraestrutura e de pessoal. Pelo sistema não temos qualquer possibilidade de retorno financeiro, nem capitalização (nem capital de giro para financiar a produção), de um ano para outro. O que não é empenhado é devolvido ao final do ano.
Com a descentralização das compras governamentais para a atenção básica de saúde – o que ocorreu dois ou três meses antes de nossa posse no início de 2006 – a arrecadação de Farmanguinhos perdeu cerca de 100 milhões de reais anualmente. De lá para cá vivemos uma situação de grandes restrições financeiras. Temos alertado a todos os dirigentes e, recentemente, conseguimos junto ao Presidente da Fiocruz, que o Ministro da Saúde criasse uma comissão para rever o marco regulatório e medidas para mais bem preparar Farmanguinhos para cumprir seu papel estratégico.
Não há duvidas que para cumprir seu papel adequadamente, depois de preparar essa mudança de conceitos no âmbito do Governo Federal, Farmanguinhos precisará se tornar uma empresa pública, viabilizando inclusive a exportação para a América Latina e África, principalmente e assim ganhando escala para praticar preços ainda melhores.
O que poderíamos esperar ser concretizado neste final de governo Lula, no contexto da política pública definida para desenvolver o complexo industrial da saúde, ou seja, o PAC da Saúde?
Não creio que se vá avançar muito mais agora. A expectativa, como vejo, é de um lado que a proposta do Gecis seja boa e possamos mesmo criar as condições básicas para o uso do poder de compra do SUS de maneira eficiente, e de outro que venha a ser aplicada. Isso é sempre mais uma questão política do que legal no Brasil. Novidades de agora só repercutirão no próximo Governo. Mas é importante que sejam discutidas e implantadas desde logo.
Acho, entretanto, que ainda faltam instrumentos efetivos para o desenvolvimento farmoquímico brasileiro. Um estudo iniciado pela Petrorio, com o apoio da ABIFINA e de Farmanguinhos, para pensar na utilização de derivados do petróleo para insumos farmacêuticos e agrícolas a partir de Itaboraí, é uma das ações concretas necessárias para avançar na cadeia produtiva dos princípios ativos.
A transformação de Farmanguinhos, bem como Biomanguinhos, em empresas públicas, como comentamos, modificaria radical e rapidamente o panorama de dependência que temos. Mudaria também enormemente a qualidade da própria pesquisa no âmbito da Fiocruz. Uma parceria mais propositiva com a Argentina nos beneficiaria na área de biotecnologia. A integração latino-americana propiciará maiores oportunidades de negócios e consolidação desses projetos.
Creio que essas ações que estão na pauta são pré-condições para uma ação mais concertada e focada. Em todas as esferas de Governo, no entanto, há uma pauta a ser cumprida. Precisamos portanto de um projeto de Governo, no âmbito da Casa Civil, para coordenar todas essas ações e programar os investimentos necessários.
Creio, por fim, que esse projeto estará, necessariamente, entre as propostas da provável candidata do Governo à sucessão presidencial.