REVISTA FACTO
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Mar-Abr 2009 • ANO III • ISSN 2623-1177
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Cadeia Produtiva de Medicamentos: começa a acontecer

Ao longo de 2008 o governo federal construiu o arcabouço do marco regulatório para a implantação do Complexo Industrial da Saúde (CIS), editando cinco Portarias que definiram as linhas gerais do programa. Como parte desse processo foi também criado o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde – Gecis, com a tarefa de “fazer acontecer” a política pública definida pelo governo federal para a área da saúde. Constituído na prática há oito meses, o órgão tem por competência promover ações concretas para a viabilização do Complexo, incluindo medidas para a eliminação de gargalos legais, tributários e financeiros que tornam o País dependente de produtos e tecnologia estrangeiros.

Em louvável iniciativa, o Ministro Temporão instituiu consultas semestrais ao setor produtivo para esclarecer dúvidas e estreitar parcerias. Na mais recente reunião realizada com esse objetivo, em 26 de março, foi feita uma avaliação geral do quadro atual e foram reiterados os compromissos do Ministério e dos empresários do setor farmoquímico com conceitos de cidadania, transparência de gestão e governabilidade. Os princípios e diretrizes que norteiam a implantação do CIS, um dos principais programas do PAC da Saúde, parecem já definitivamente consolidados. Agora, é fazer acontecer.

A importância da fabricação local

Já existe consenso, consubstanciado na Portaria MS nº 3.031 de 16/12/2008, sobre as medidas necessárias para garantir a fabricação doméstica de medicamentos essenciais à saúde da população: preferência, nas licitações dos laboratórios públicos, à aquisição de princípios ativos fabricados no Brasil. Ocorre que, da data de publicação da Portaria até o mês de março, foram realizados mais de trinta pregões eletrônicos por laboratórios oficiais – principalmente pela FURP, de São Paulo, e pelo Lafepe, de Pernambuco – em flagrante desrespeito a esse novo dispositivo regulatório. Os referidos pregões não estabelecem isonomia entre as propostas recebidas, sendo decididos pelo critério do menor preço de face, sabidamente injusto do ponto de vista tributário e injusto também socialmente, de vez que tratam como meras commodities os medicamentos destinados aos usuários dos programas públicos de saúde.

Os empresários alertaram à ocasião quanto à necessidade de uma ação corretiva dessa infração no menor prazo possível, para se evitar o descrédito da Portaria nº 3.031. Seria oportuna, por certo, a realização de um entendimento de cúpula entre o Ministério da Saúde, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público, como fez a Petrobras, que hoje realiza com sucesso e ao abrigo da Lei de Licitações vigente suas compras com preferência para a fabricação local, sem qualquer outra lei específica. O empresário Alberto Mansur, da Nortec, hoje a maior produtora de princípios ativos para medicamentos em operação no País, advertiu que, se sua empresa continuar concorrendo no mercado público com produtos ditos similares, porém de baixa qualidade, provenientes do leste asiático, e sem que haja um tratamento isonômico de tributos nesses pregões eletrônicos, não terá condições de sobrevivência econômica.

Alcebíades Athayde, da Libbs, destacou que sua empresa produz diversos princípios ativos para consumo cativo, isto é, para a fabricação dos seus próprios medicamentos. Mesmo reconhecendo que sai mais caro produzir internamente do que importar o similar do leste asiático, a empresa está determinada a manter essa estratégia porque assim assegura produtos com qualidade constante e fica imune a problemas de abastecimento de matérias-primas.

Reinaldo Guimarães, Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, ciente dos episódios de descumprimento da Portaria nº 3.031, informou que sua Secretaria preparou uma proposta de projeto de lei para solucionar de vez o problema. Na opinião da ABIFINA, em realidade não se faria necessário editar uma nova lei para dar sustentação ao marco legal vigente, mas simplesmente dar à lei de licitações uma leitura positiva do ponto de vista do interesse nacional, como fez a Petrobras em seu acordo com o TCU, a AGU e o MP. Ninguém contesta hoje a preferência que a estatal do petróleo confere ao produto fabricado localmente. Entende-se que a força política de uma empresa pública ou de um Ministério se constrói, principalmente, através de uma conduta transparente, firme e inequivocamente atrelada ao interesse nacional.

Como alertou em recente depoimento à FACTO o diretor da Biolab Sanus, Dante Alario Jr., todos os países com clara visão de futuro protegerão ou já estão protegendo seus mercados, população e empresas durante a crise, e “se baixarmos a cabeça e não tomarmos as providências necessárias, sem dúvida nos tornaremos mais vulneráveis”.

A engenharia das PPPs

Em maio de 2008, a Portaria MS n° 978 definiu a lista de produtos estratégicos para o SUS, e a Portaria Interministerial n° 128 estabeleceu as diretrizes para a contratação desses produtos pelos órgãos integrantes do SUS. A efetiva implantação desse novo sistema de contratações, inaugurado com o projeto do Efavirenz nacional, certamente dará novo ânimo às empresas desse setor, especialmente em face das dificuldades impostas pelo atual quadro de crise financeira às empresas de médio porte, que são maioria no setor farmoquímico nacional. O projeto Efavirenz funcionou respaldado pela coragem pessoal do diretor de Farmanguinhos, Eduardo Costa, que fez valer na prática o modelo da Portaria 128.

Os modelos atualmente em discussão, para a viabilização de parcerias público-privadas, exigem da indústria produtora de medicamentos a transferência de tecnologia para o laboratório oficial. Esse conceito, importante para algumas classes de medicamentos e para parcerias internacionais, cria algumas dificuldades para empresas farmacêuticas nacionais que investem recursos e precioso tempo de desenvolvimento para chegar a formulações com comprovação de eficácia e segurança. Para contornar esse problema, a aplicação desse conceito no âmbito da Portaria 128 deveria ser vinculada a contratos de fornecimento de longo prazo – três a quatro anos – com negociação de preços segundo parâmetros previamente estabelecidos e levando em conta a tecnologia transferida. Isto daria segurança ao laboratório privado, além de possibilitar maiores investimentos e maior agilidade do setor industrial farmacêutico no desenvolvimento de medicamentos de alto valor agregado consumidos exclusivamente pelo SUS.

Reinaldo Guimarães fez uma apresentação daquilo que sua Secretaria já realizou na área de parcerias público-privadas. Segundo ele, vinte empresas privadas e dez laboratórios públicos apresentaram-se como interessados em fabricar no País 89 fármacos constantes da lista de produtos estratégicos prioritários, definida pela Portaria MS nº 978/08. As PPPs pré-qualificadas para análise envolvem dezesseis empresas privadas, os mesmos dez laboratórios oficiais e a fabricação de 38 fármacos, a seguir listados:

PúblicoPrivadoProdutoIndicação Terapêutica
FARMANGUINHOSGlobe (Brasil)TenofovirAntirretroviral
Chemo (Argentina)BudesonidaTratamento de asma
Formoterol + Budesonida
Lupin (Índia)CanamicinaTuberculostático
Ciclocerina
Etionamida
Etambutol + Isoniazida + Pirazinamida + Rifampicina (Formulação 4 em 1)
Stragen Pharma (Suíça), Biolab (Brasil), Libbs (Brasil)Ciproterona + EtinilestradiolContraceptivo
Desogestrel
Etinilestradiol
Gestodeno + Etinilestradiol
Levonorgestel + Etinilestradiol

Numa primeira etapa foram aprovadas oito parcerias, envolvendo dez empresas privadas (quatro estrangeiras e seis nacionais) e sete laboratórios públicos para a fabricação local de vinte e quatro fármacos. A parcela referente às compras diretas e repasses efetuados pelo Ministério da Saúde relativos aos produtos selecionados nessa etapa somam R$ 660 milhões, sem considerar os anticoncepcionais. A economia média anual estimada é da ordem de R$ 130 milhões.

Lélio Maçaira e Antonio Werneck apresentaram a PPP que foi montada entre os respectivos laboratórios – Laborvida, privado, e Instituto Vital Brazil, público estadual – ambos situados no estado do Rio de Janeiro. Essa PPP, que se destina à produção integrada verticalmente de intermediários químicos, princípios ativos e medicamentos, com destaque para produtos farmacêuticos definidos pelo governo federal como estratégicos para o País, diferencia-se da maioria pelo seu modelo de gestão. O IVB, através de licitação pública feita pelo governo do estado, terceirizou seu processo de gestão para a LaborVida por quatro anos. Dessa forma, a fabricação pelo laboratório oficial observará práticas de gestão privadas, sem as amarras da administração pública direta. A PPP está detalhando sete projetos relacionados à lista da Portaria nº 978 para apreciação da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde.

BNDES: um parceiro indispensável

A participação do BNDES no fomento à implantação do Complexo Industrial da Saúde é de capital importância. Para isso o Banco já dispõe de instrumentos como os Programas de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma, Profarma I e Profarma II). Porém, como o regulamento interno do BNDES o impede de atender diretamente empresas de pequeno e médio portes, que constituem justamente a base da indústria farmoquímica nacional, tais instrumentos são disponibilizados através da sua rede de agentes financeiros.

Essa intermediação, compreensível do ponto de vista da escala econômica, na prática tem sido altamente prejudicial para o CIS, pois os agentes financeiros agem como bancos comerciais, o que efetivamente são, e não como instituições de fomento, onerando excessivamente os contratos ou mesmo mostrando completo desinteresse pelo setor. Na atual conjuntura de crise o problema se agrava, pois, diante da falta generalizada de capital de giro e do aperto do crédito, esses bancos privados que deveriam estar repassando os recursos das linhas de financiamento do BNDES simplesmente não emprestam nada às empresas.

Caso não se altere esse quadro, o esforço do Ministério da Saúde será insuficiente para garantir a produção nacional de fármacos. Em se tratando de um segmento eleito como prioritário não só pelo PAC da Saúde, como também pela Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior do atual governo, a expectativa dos empresários é que o BNDES abra uma exceção para a indústria farmoquímica nacional e passe a atendê-la diretamente. A Medida Provisória n° 453, editada em 22/01/2009 e que deverá ser votada em breve, vem recebendo emendas para atender necessidades específicas de diversos setores da economia nacional. Nesse cenário, a ABIFINA entende que faria sentido se reservar uma parte do montante previsto para que o BNDES apóie diretamente as empresas da cadeia produtiva farmacêutica em suas necessidades de capital de giro.

Registro sanitário: avanços modestos

Tanto quanto as compras governamentais, o registro sanitário é um instrumento estratégico para um país garantir seu suprimento de medicamentos com base na produção local. Basta ver como a União Europeia vem tratando o assunto, por meio do REACH. No Brasil, embora tenha havido avanços promovidos por uma diretoria da Anvisa mais consciente quanto às implicações políticas e econômicas do registro, o órgão ainda retarda decisões e providências importantes. Algumas delas são o início do processo de registro de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs); a fiscalização Extra-Zona, que prevê a fiscalização no exterior de empresas que exportam para o Brasil produtos similares aos nacionais; e o disciplinamento, através de Resolução da Diretoria Colegiada (RDC), da produção de genéricos fornecidos ao SUS pelos laboratórios oficiais.

A partir de 2008, a Anvisa empreendeu uma radical mudança nos seus procedimentos. A Consulta Pública para o Registro de IFAs procedeu-se da forma mais transparente possível, daí a expectativa da indústria de que a publicação da RDC relacionada a essa matéria ocorra em breve para orientar o início do referido procedimento. O que mais preocupa com relação à Anvisa é o reduzido número de fiscais aptos e especializados para a auditagem de plantas farmoquímicas que, por sua natureza, são muito diferentes das unidades farmacêuticas, bem como a aparente pouca sensibilidade para esse procedimento por parte da Diretoria de Fiscalização da Agência.

A Instrução Normativa n° 6 da Anvisa dá suporte aos laboratórios farmacêuticos oficiais para a produção de medicamentos essenciais à saúde, porém limita esse suporte à superação das dificuldades com a reprodução de testes de biodisponibilidade, com vistas, por exemplo, à produção de genéricos na área pública. O Efavirenz foi o primeiro produto fabricado em laboratório oficial de acordo com essa IN. Na prática, ela permite o registro automático de genéricos que já tenham tido seus registros para distribuição e produção aprovados pela agência, desde que o princípio ativo e seu fabricante, entre outras especificações, sejam os mesmos dos processos analisados anteriormente pelo órgão, ainda que o registro seja solicitado por outra entidade farmacêutica. Antes, o novo interessado deveria apresentar novamente todos os testes exigidos para registro de um genérico, o que tornava o processo demorado e caro demais para os laboratórios públicos.

A norma permite um tipo de comarketing que é do interesse da área pública, pois permite separar o mercado público do privado na comercialização do produto. Por esse sistema, um laboratório oficial pode receber “emprestado” de empresa privada o registro de um medicamento na Anvisa. A empresa continua a comercializar normalmente no mercado privado e o laboratório oficial passa a fornecer o produto ao Ministério da Saúde (SUS), com o compromisso de internalizar a fabricação do fármaco no País. O problema é que este compromisso não ficou claro na IN nº 6, o que abre uma brecha para se utilizar o precioso instrumento do comarketing “para o mal”, isto é, para acordos de fornecimento com o exterior que mantenham a dependência do País em relação aos fármacos importados.

Pode-se objetar que, como está prevista a transferência de tecnologia, não haveria o risco da dependência. Entretanto, este é um processo extremamente complexo. Contratos de transferência não garantem, por si só, uma absorção real da tecnologia necessária para a fabricação do medicamento. A empresa que domina um processo industrial tem meios para manter em “caixa preta” a informação de caráter estratégico, especialmente quando esse processo industrial é realizado fora do País. A transferência efetiva de tecnologia só pode ser garantida quando o comprador tem acesso regular às instalações industriais do fornecedor.

Sob esse ponto de vista, a IN nº 6 pode produzir um efeito competitivo preocupante entre os laboratórios oficiais, que passam a se interessar em negociar o mais rapidamente possível acordos com o setor privado visando obter os dossiês para registro. Os dezessete laboratórios oficiais existentes no País – federais, estaduais, municipais, fundações etc – atuam sem nenhuma articulação, todos dependendo das verbas do SUS disponibilizadas pelo Ministério da Saúde. A cada ano há uma disputa acirrada entre eles pela obtenção desses recursos e as oportunidades criadas pela IN nº 6 devem pôr mais lenha nessa fogueira. Na ânsia de fortalecer-se comercialmente, o laboratório oficial pode, em vez de fazer parcerias com farmoquímicas locais para desenvolver e industrializar localmente fármacos de interesse dos programas públicos, optar por negociar acordos com fornecedores no exterior, certamente condicionados ao suprimento dessas estratégicas matérias-primas por tais empresas. Pode ser este o espírito de acordo que vem sendo negociado entre laboratórios públicos e empresas estrangeiras.

A expectativa da FURP é iniciar a distribuição dos genéricos no segundo semestre não só para fornecimento à Secretaria da Saúde de São Paulo, mas também para outros estados e municípios. Segundo o diretor desse laboratório, que também é presidente da Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil, a idéia é fazer acordos de cooperação e otimizar a oportunidade aberta agora. De fato a oportunidade é excelente, e mais ainda quando se considera a perspectiva de término em curto prazo do período de proteção das patentes de diversos medicamentos comercialmente bem sucedidos. Entretanto, é fundamental que se entenda: ampliar a produção de genéricos no Brasil com fármacos importados, sem se fixar prazos para a produção nacional, significa anular todo o esforço do Ministério da Saúde pela recuperação da soberania nacional no setor farmoquímico.

O estímulo da norma da Anvisa de que os produtos para os quais se pleiteia registro sejam em tudo iguais ao do dossiê – em especial, a origem do princípio ativo – tende a perpetuar a importação do fármaco, funcionando assim contra a expansão da farmoquímica nacional. Essa percepção já foi transmitida à direção da Anvisa e o problema terá de ser superado, seja através de uma RDC que discipline a IN 06/08 ou outra medida administrativa a ser editada pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do MS. Para o efetivo desenvolvimento do setor farmoquímico nacional, o ideal seria a inclusão da obrigatoriedade de, em prazo definido, o IFA apresentado no dossiê vir a ser produzido no Brasil. Dessa forma seriam atendidos também os objetivos das Portarias nº 978 e 128.

Quanto à renovação de registro e alterações pós-registro a partir da publicação do marco regulatório de 2003, as indústrias farmacêuticas nacionais estão fortemente empenhadas em atender a todas as normas sanitárias determinadas pela Anvisa, arcando com investimentos muitas vezes superiores aos 5% do faturamento, embora os reajustes anuais de preços autorizados pela agência não passem desse percentual. Isto sem contar os fortes investimentos em inovações, no lançamento de novos medicamentos e na atualização do parque farmacêutico nacional, que o setor está determinado a manter.

Recentemente, renovações e petições de alterações de registro sanitário têm sido indeferidas em função de inconformidades que poderiam ser facilmente resolvidas por meio de exigências formuladas através de diálogo entre as partes. Não raro, essas ditas inconformidades resultam de especificidades no fornecimento de um produto específico e podem ser facilmente sanadas. Um indeferimento de renovação do registro é um processo a menos em aberto na Agência, que pode ser interpretado como gestão eficiente, mas representa um enorme estrago para uma indústria que está atendendo a todos os requisitos técnicos regulatórios. Via de regra, os casos de indeferimento ocorridos entre as farmoquímicas nacionais não se referem a demandas relacionadas ao risco sanitário, pois nesses casos o setor privado é totalmente favorável ao rigor da fiscalização. São casos que, em sua maioria, demandam apenas a emissão de exigências mais claras, discussões técnicas entre os fiscais e a empresa, e definição de prazos e tarefas que tornem factível a completa harmonização da demanda regulatória com o entendimento técnico vigente.

Dirceu Raposo, presidente da Anvisa, fez um histórico sobre a evolução dos procedimentos da Agência durante sua gestão. Até o final de seu mandato, que ocorrerá em 2011, ele acredita que terão sido superadas todas as dificuldades burocráticas e resistências culturais mencionadas pelas empresas usuárias dos serviços de registro, transformando a Anvisa num órgão plenamente integrado às políticas públicas do governo federal e, ao mesmo tempo, detentor de um rigoroso e absolutamente necessário controle da saúde pública. Raposo acrescentou que a plataforma para peticionamento eletrônico será disponibilizada até meados de 2010, quando então não mais haverá necessidade de papel para esse procedimento.

Patentes: a Justiça faz justiça

O monopólio temporário de mercado criado pela concessão da patente industrial às inovações tecnológicas de processo e produto farmacêutico deve ser contido nos limites exatos dos interesses nacionais e das necessidades da população brasileira. Não há um direito natural do inventor embutido numa patente industrial, nem se pode admitir que o direito patentário se sobreponha aos interesses nacionais, em especial da população atendida pelo produto ou processo em questão. Tais direitos devem ser regulados e monitorados pelo Estado, que realiza a concessão patentária de mercado. Na prática, o conceito do uso social das patentes deve-se refletir numa análise rigorosa dos pedidos de patente à luz dos conceitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, a fim de se evitar a concessão de patentes de escasso mérito, utilizadas especialmente para o bloqueio da concorrência em frações do mercado.

A se julgar pelas decisões judiciais, seminários e debates havidos no âmbito do Tribunal Regional Federal da 2° Região, e também por recente decisão do STJ em processo da empresa DuPont que visava obter a extensão do prazo de uma patente, percebe-se nitidamente que a Magistratura vem assimilando o entendimento supracitado. O Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi), coordenado pelo MDIC e integrado por dez Ministérios, entre os quais o da Saúde e o de Ciência e Tecnologia, manifestou-se há pouco tempo nessa mesma linha de pensamento, opondo-se à concessão de “patentes frágeis”, que realmente não apresentam uma atividade inventiva mas apenas uma descoberta (que não é matéria patenteável), ou uma conseqüência óbvia do estado da técnica. Esses posicionamentos são fundamentais para que o Brasil possa reagir à estratégia de “evergreening” dos grandes laboratórios transnacionais, que consiste na obtenção de múltiplas patentes sobre diferentes atributos de um mesmo produto farmacêutico para perpetuar seus mercados bilionários e neutralizar a concorrência. Exemplos emblemáticos dessa estratégia são o patenteamento de polimorfos, segundo uso médico etc.

Estranhamente, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), órgão executivo que deveria seguir a orientação do Grupo Interministerial, tem agido de forma não só independente como até contrária. Em recente decisão de rever suas diretrizes para o exame de patentes, o INPI acolheu o patenteamento de novas apresentações polimórficas de substâncias amplamente conhecidas, em domínio público ou não. Desde os anos 1960, sabe-se que substâncias orgânicas no estado sólido podem se apresentar de diversas maneiras, amorfas ou cristalinas, apresentando variações em algumas propriedades físicas que podem ser importantes para formulações farmacêuticas.

No final dos anos 80, problemas ocorridos com algumas formulações evidenciaram que o exato conhecimento do polimorfo usado na preparação de um medicamento era importante para a sua prescrição terapêutica correta. A partir de então, o estudo do polimorfismo das moléculas biologicamente ativas passou a ser rotina, e rotina é a antítese da invenção – daí que a mera descoberta de variedades polimórficas perdeu o atributo da inventividade, essencial para que se obtenha uma patente.

A área técnica do INPI parece sofrer forte influência da política extremamente liberal adotada pelo Instituto de Patentes dos EUA, que vem sendo inclusive contestada em decisões recentes da Suprema Corte daquele País. E não só lá: há um significativo número de estudos realizados por órgãos de governo, sociedades científicas e organizações não governamentais em todo o mundo mostrando que a concessão de patentes “frágeis” vem em prejuízo da concorrência e do impulso inovador, contrariamente ao apelo no sentido de que favoreceria a empresa pequena atuante em países emergentes. Nesse contexto, entende-se porque no presente momento é indispensável a Anvisa conservar a atribuição da anuência prévia aos depósitos de patente e o Ministério da Saúde reforçar sua atuação no Gipi, como tem feito ultimamente. comercial para US$ 4,4 bilhões, por meio do desenvolvimento de tecnologia e industrialização local para produção de um pacote básico de produtos estratégicos para o SUS.

Em última instância o principal desafio do CIS, nos moldes estabelecidos pelo programa Mais Saúde, é diminuir a vulnerabilidade dos programas de saúde pública, hoje ainda dependentes de importações de princípios ativos cujos preços estão inteiramente fora do controle do governo. O projeto do Efavirenz nacional mostrou que o País pode vencer esse desafio, além de preservar a credibilidade do seu Programa Antiaids, considerado pela própria Organização Mundial de Saúde como um modelo a ser seguido pelos países emergentes.

Quando Farmanguinhos concluiu com sucesso a tarefa de fornecer ao Ministério da Saúde o primeiro lote de Efavirenz produzido no País, seu diretor, o médico Eduardo Costa, declarou que a concretização do projeto do Complexo Industrial da Saúde “demonstra uma mudança de orientação política”. Se antes a preocupação era exclusivamente com o orçamento e a entrega de medicamentos para os programas públicos de saúde, agora a visão é de que a saúde da população “não depende apenas de remédio; depende de emprego, de trabalho, do meio ambiente”.

Este é o princípio que o PAC da Saúde precisa preservar acima de tudo. Os custos e o orçamento são aspectos fundamentais da sustentabilidade dos programas nele incluídos e devem ser rigorosamente controlados, mas nunca em detrimento da indústria local. Se os laboratórios oficiais cederem à tentação de contratar o fornecimento, na base do “quem faz por menos”, sem considerar a isonomia tributária e os demais aspectos que envolvem a produção de medicamentos de forma segura e com qualidade – e o exemplo da Petrobras mostra que, nesse contexto, a fabricação local tem importância estratégica – o PAC da Saúde terá sido desviado do rumo que norteou a sua criação. Ao invés de reduzir a vulnerabilidade dos programas de saúde pública, o governo estará ainda compactuando com um modelo que corrói a competitividade da indústria local de fármacos e medicamentos, embora de forma disfarçada.

Os instrumentos regulatórios básicos para a implantação do Complexo Industrial da Saúde no Brasil já foram definidos. Agora falta aperfeiçoá-los, eliminando aspectos ambíguos que ainda podem permitir que interesses meramente comerciais e de curto prazo se sobreponham ao interesse maior dos programas de saúde pública e do desenvolvimento econômico e social do país. E, sobretudo, falta fazer acontecer.

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