Os 39 anos de atuação na área de Direito, com ênfase em propriedade intelectual, direito tributário, capital estrangeiro e transferência de tecnologia fazem do entrevistado uma autoridade capaz de esclarecer as lendas criadas em torno do acordo TRIPS, e mais do que isso, capaz de apontar as oportunidades geradas pelas flexibilidades do acordo e ainda não exploradas pelo Brasil. Denis fala também sobre a inerente tensão entre propriedade intelectual e livre concorrência e sobre a polêmica atuação do Estado brasileiro na defesa dos direitos de patente da iniciativa privada.
TRIPS é um marco legal padrão e uniforme para todos os países que subscreveram esse acordo, ou permite alguma flexibilização na sua aplicação pelos Estados nacionais?
Uma das lendas mais divulgadas sobre TRIPS é a que suas normas padronizariam todos os sistemas nacionais de propriedade intelectual em um conteúdo mínimo. Em essência, isso é verdade, mas o que é lendário é que isso se dê de forma automática e inevitável. Nos últimos três anos, a jurisprudência predominante – agora quase unânime – da seção especializada em propriedade intelectual do TRF 2ª Região é de que, como a própria ONC entende, TRIPS obriga, sim, porém Estados nacionais, sem criar direitos de obrigações para as outras pessoas, além do Estado.
Então, TRIPS constitui um marco regulatório de obrigações mínimas a serem obedecidas pelos países que o subecreveram?
A segunda parte da lenda é de que essa obrigação gerada por TRIPS seja de padronização geral num mínimo obrigatório. TRIPS não é só mínimo, em certos casos é máximo, como ocorre no caso das apreensões de bens na alfândega, em relação aos direitos dos donos das mercadorias apreendidas. TRIPS assegura, nesses casos, um mínimo sim, mas não aos titulares das marcas e patentes, mas sim aos donos de mercadorias. Em muitos casos, a lei brasileira optou por não incluir o mínimo de TRIPS. Um bom exemplo é o caso de não prever modalidades de marca notória, o que TRIPS exigiria. Por outro lado, aplica obrigações do acordo em excesso, ao estabelecer regras mais constritivas no tocante à responsabilidade perante o titular de uma patente dos fornecedores de insumo e materiais. Em suma, o Brasil em muitíssimos aspectos ignorou o texto do TRIPS.
O que se nota hoje é que tem havido reações diferenciadas em algumas áreas como da saúde, por exemplo, reagindo a uma tendência de uniformização.
O tratado TRIPS surge como padronizador no momento em que os países da OECD já tinham chegado ao nível das suas exigências. Ele não criou matéria nova, nem obrigação nova para os países OECD. O que ele fez foi elevar os níveis de proteção nos países que não tinham chegado ao nível de proteção dos países de OECD. O acordo teve como proposta estabelecer um piso mínimo, sendo que o mínimo era acima do que os países como o Brasil, a Índia e a Argentina estavam praticando naquele momento. Então, você pode dizer que ele funcionou como um padronizador, mas não para OECD. O que quero dizer é que a padronização visou adequar práticas de outros países, os países desenvolvidos no tema não chegaram a modificar tanto suas práticas. Portanto, há muitos temas em aberto e discussões sobre materias cruciais que ainda podem se encaminhar de maneiras diversas, como por exemplo, a decisão sobre o que se pode patentear ou não. Porém, exatamente porque a padronização não foi real, o acordo deixa certas margens que o Brasil não aproveita. Ao contrário, o país no momento da adoção do TRIPS deixou de usar as flexibilidades disponíveis a seu favor. Ainda existem muitas brechas que podemos e devemos usar em favor do desenvolvimento brasileiro. Por exemplo, o TRIPS não se importou com modelos de utilidades, que é uma patente de inovação considerada “menor”. Mas, então, por que o Brasil não cria um sistema de modelo de utilidade para efeito interno mais eficaz? Estamos livres para isso e há uma série de instrumentos que você pode usar para defender propostas como esta que resultam das próprias indefinições de TRIPS.
Em sua visão, em quais vertentes o Brasil poderia, de forma mais efetiva, valer-se de das flexibilidades encontradas em TRIPS?
A mais importante tarefa no momento em que o Judiciário revê o acordo TRIPS com óculos de precisão, é também eliminar as lendas a respeito do tratado. Recentemente, soube através de uma especialista em patentes, profissional chave de uma das maiores empresas nacionais, de que está disseminada a idéia de que utilizar-se livremente do objeto de patente em domínio público violaria o acordo TRIPS. O uso livre do material em domínio público no campo tecnológico não foi afetado pelo acordo TRIPS. Porém, muitas lendas persistem, mesmo em meios que julgamos bem informados. Neste instante em que a estrutura da OMC pode ser utilizada em favor da economia brasileira como forma de afirmar nossos interesses no comércio internacional – o caso do contencioso do algodão com os Estados Unidos está assombrando de novo nossos especialistas. Usar a propriedade intelectual como instrumento legítimo de retaliação parece temeridade, imoralidade ou pecado.
O acordo TRIPS é simplesmente uma regra do jogo, que não nos impede de defender direitos e oportunidades.
O instituto do “pipeline” foi uma criação da lei brasileira ou ele foi examinado no contexto das nações, por ocasião das discussões internacionais que culminaram com a aprovação do TRIPS?
Não precisamos lembrar das coisas que, a pretexto de TRIPS, foram introduzidas no direito brasileiro, sem que o tratado na verdade nos obrigasse a isso. O fato de maior relevância neste sentido é, obviamente, o “pipeline”, que foi proposto e rejeitado pelos Estados-membros do acordo TRIPS, mas adotado no Brasil. Também foram instuídas inúmeras prorrogações de patente sobre as quais os juízes vêm discernindo absolutamente sem base no tratado. Nesses e em outros casos, houve o efeito da lenda sobre o acordo TRIPS, que não corresponde ao texto legal.
A exaustão nacional dos direitos também não expressa uma desnecessária e exagerada concessão feita pelo Brasil à custa de nosso desenvolvimento econômico?
O ponto mais curioso em relação ao TRIPS é a vasta proporção de política nacional que o tratado deixa ao exercício da liberdade do Estado, liberdade essa para a qual o Brasil ainda não despertou. O TRIPS deixa aos países a liberdade de escolher a modalidade de exaustão de direitos (nacional ou internacional). Por exemplo, somente o Brasil na América Latina optou por restringir os benefícios do comércio internacional, optando pela exaustão apenas interna. No tocante aos modelos de utilidade e outras patentes menores que podem ser úteis no incentivo à inovação incremental, o Brasil optou por uma estrutura complexa, pesada e sem a adaptabilidade às diferentes tecnologias e diferentes graus de renovação. Estivemos muito preocupados em cumprir o tratado e esquecemos de usá-lo em favor da economia brasileira.
Têm havido muitas críticas ao governo brasileiro em função da concessão de licença compulsória para um retroviral porque isso traria uma insegurança jurídica para as empresas que investem em pesquisa e inovação. Afinal, estas licenças compulsórias estão ou não previstas no acordo Trips ou na nossa legislação, quer dizer, é possível fazer este tipo de concessão em função da saúde pública? Qual é sua posição em relação a isso?
O TRIPS originalmente já previa a concessão de licenças compulsórias em função do interesse público, o que consta nos artigos 7º e 8º do acordo. Certas interpretações iniciais do órgão de soluções de controvérsias da OMC no entanto, em particular no caso dos genéricos do Canadá, trouxeram algumas dúvidas sobre a extensão da aplicação do acordo em favor de terceiros, ou seja, frisou-se que o TRIPS teria sido concebido como uma forma de garantir os interesses dos titulares de direitos de patentes e, conseqüentemente, por este viés, a licença compulsória feriria os artigos 30 e 31 que tratam das exceções, das limitações e do uso sem autorização do titular. Esse tipo de questionamento ocorreu nas primeiras iniciativas relativas à defesa compulsória que tiveram lugar durante o governo Fernando Henrique Cardoso com o ministro de Saúde José Serra. O Brasil tomou a iniciativa de suscitar esta questão, houve uma discussão bastante vigorosa na OMC, e ao mesmo tempo, o Brasil acabou por não concluir o procedimento de licença compulsória. Os EUA também por razões de um certo impasse recolheram as suas baterias de artilharia contra a licença compulsória em geral, não só a licença compulsória por interesse público, mas também a nossa licença compulsória do artigo 68 do código de propriedade industrial, que é a licença por não uso em benefício público. Essa foi uma questão suscitada pelos EUA porém, por acordo, eles recolheram a sua pretensão contra o Brasil que se prontificou a avisar previamente os EUA na ocorrência de qualquer discussão que levasse à concessão de uma licença compulsória de uma empresa norte-americana. Assim encerrou-se o caso, de uma forma indireta, porém bastante interessante, com possibilidade de desdobramentos futuros. Logo em seguida, como parte da rodada de Doha, foi feita uma declaração ministerial e no artigo 6 dessa declaração constava uma pré-aprovação do sistema de licenças compulsórias e de outras medidas necessárias para apoiar as pretensões de todos os países, em particular aqueles em desenvolvimento, em favor de uma melhor relação entre a propriedade intelectual e a área de saúde. Com base nesse artigo 6, enunciou-se claramente que cabe, é lícito e absolutamente insuscetível de discussão, a adoção de licença compulsória para os interesses públicos, dada a existência dos pressupostos da TRIPS e da lei local, criando inclusive uma nova licença compulsória através de um novo artigo de TRIPS. Trata-se do artigo 31, que diz onde se prevê a licença compulsória num país para atender a necessidade de saúde pública de um outro país. Ele cria a licença de exportação do primeiro país para o segundo com vistas ao atendimento destas necessidades. Então, hoje não há sombra honesta de dúvida a respeito da licitude no contexto do TRIPS de se concederem licenças compulsórias.
Os Estados Unidos são o país que mais concede licenças compulsórias para remediar abusos no controle do mercado. Em seu entendimento esse fato provoca insegurança jurídica para as empresas americanas?
O que caracteriza o sistema norte-americano é, em primeiro lugar, o amplo uso do instituto de “uso público não-comercial”, que nos EUA ocupa o lugar que entre nós é o da licença compulsória. Em segundo lugar, aparece a existência de decisões judiciais e extrajudiciais que dão a autorização de uso de patentes e de outros direitos com o fundamento nas normas antitruste. Então, o fundamento desta terceira modalidade é o uso sem autorização resultante de uma ação de caráter pró-concorrencial antitruste. As várias formas de uso não-autorizadas pelo titular são utilizadas pelos EUA em grande escala há pelo menos 90 anos, sem que haja nenhum impacto na economia. Não existe nenhum dado que prove que os EUA deixou de se desenvolver em algum segmento por causa disso.
Em muitos países o sistema de defesa da concorrência atua como moderador dos efeitos nocivos ao mercado que a concessão de direitos de propriedade intelectual pode provocar. Como vê a atuação do sistema de defesa de concorrência no Brasil?
Como as formas da propriedade intelectual dizem respeito a uma manipulação dos padrões normais de concorrência livre em favor do incentivo à inovação tecnológica, sempre há uma tensão inerente quando se discute esta questão. Em tese há espaço para que um instrumento, apoiado pelas leis antitruste, atue em tensão ou em contraponto com a propriedade intelectual. Assim sempre é bom considerar olhar para a patente para ver se você de fato e efetivamente está usando do sistema abusivamente. Certos teóricos apontam para o fato de que os termos da propriedade intelectual, em particular a de patente, funcionem de maneira diferente em uma economia de pouca competitividade tecnológica. Isso, porque o sistema de patentes, que poderia ser razoavelmente pró-competitivo em uma economia de alta vocação tecnológica, em caso contrário torna os países mais vulneráveis ao seu uso anti-competitivo e abusivo. Então, para estes países o uso de instrumentos antimonopólio, como o Cade e as ações judiciais, se torna de fato relevante. Eu, por encargo da Unctad (Agência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento), fiz um levantamento há dois anos e meio atrás, do que está acontecendo na América do Sul em relação a este tema. A conclusão é de que, embora estes instrumentos existam, seja de forma incipiente ou mais desenvolvida, em lugar nenhum da América do Sul se está fazendo uso destes instrumentos no sentido de garantir a competitividade apesar das restrições das patentes. Não existe esta prática, o sistema não está operando desta forma. Eu posso chegar a dizer que os sistemas de defesa da concorrência e economia social não estão efetivamente atuando de forma a exercer um contrabalanceamento saudável da propriedade intelectual, mas existem, e existe algum tipo de atuação nesse sentido, embora rara. No caso brasileiro a situação é pior. Embora o Cade venha, desde 1962, cuidando de alguns aspectos de patente, a Lei 4.137 de 3 de Setembro de 1962, que cuidava disso, até bem em um certo sentido, mas nova Lei Cade 8.383 não tem dispositivos como da lei anterior que tratavam diretamente das patentes. Em março, o SDE anunciou a decisão de não prosseguimento de um inquérito contra as montadoras de veículos, com base em abuso de propriedade intelectual, simplesmente dizendo que elas estavam usando razoavelmente os seus direitos. O caso é que as montadoras usam os registros de desenho industrial para impedir que outras empresas produzam peças de reposição no país, peças que não implicam funcionalidades. Em alguns países, existe na lei uma limitação especial que impede que as montadoras usem o desenho industrial para impedir as fabricantes de peças de reposição de fabricarem e venderem livremente as peças sob o pretexto da exclusividade do desenho industrial. Agora, aqui no Brasil, a SDE autorizou esta restrição à produção nacional. Com esta decisão, a SDE criou uma situação em que praticamente confessou uma renúncia de uso dos instrumentos de concorrência para proteger o mercado em um contraponto saudável e necessário aos direitos de propriedade intelectual. A verdade é que a situação brasileira no momento é bastante sombria em relação a esse contraponto entre estas duas figuras de direito. Acabamos de dar um passo atrás considerável.
Uma patente dá a seu titular o direito de impedir terceiros de usar o conhecimento protegido e a responsabilidade de fiscalização é do próprio titular. É cabível a utilização de recursos do Estado como uma fiscalização aduaneira e a fiscalização sanitária para o controle de infrações de patentes? Isso está acontecendo especificamente no Brasil?
O sistema de propriedade intelectual é uma alternativa, entre várias, para incentivo à inovação. Só excepcionalmente ele gera a privatização de uma atividade, então, já que a inovação é hoje uma das temáticas centrais nacionais, o que o Estado poderia fazer? Nos setores vocacionados à inovação, ele pagaria pela pesquisa e desenvolvimento e elaboraria algum método para que a economia nacional tirasse proveito das conquistas tecnológicas e científicas alcançadas. Este método poderia ser, por exemplo, criar um sistema de patente nacional que impedisse os competidores estrangeiros de fazer uso da patente. O que se vê é o contrário disso, pois o Estado privatiza aquela oportunidade exatamente para não investir nela. Há uma tese, de que no momento em que você concede uma patente em contrapartida o titular revela a sua tecnologia para o público, para uso em pesquisa e uso livre quando acabar a patente. Desta forma, ele ganharia com base nessa troca a ação do Estado em seu apoio. O sistema de propriedade intelectual precisa ser examinado em relação a custos e benefícios para a sociedade. Se concedemos uma patente para privatizar investimentos, se usamos o dinheiro do contribuinte para dar proteção policial, aduaneira ou fiscalização sanitária em favor de interesses privados de um sujeito, isso modifica o equilíbrio da justificativa. Basta fazer a contabilidade básica deste esforço e você vai chegar a uma óbvia conclusão: fica mais barato pagar por esse desenvolvimento ou desapropriar o direito que custa muito caro à sociedade? Hoje, você vê o Estado tirando a polícia federal de repressão de tóxicos ou de crime organizado para perseguir chinês que falsifica marca de chinelos. Esta função não é do Estado, mas do detentor da patente.
O raciocínio é, portanto, se o ganho com a patente é particular, então que ela gere o valor suficiente para protegê-la, não?
Exato. Se com o uso daquela patente o titular não ganhar o suficiente para protegê-la com ações judiciais, então, trata-se de um valor artificial. A patente deve ser capaz de proteger a si mesma. O apoio à inovação deve existir e a patente é um dos mecanismos deste apoio. Porém se o criador não tem dinheiro para investir na patente, provavelmente não tem dinheiro para colocá-la no mercado ou para conseguir um processo inovador contínuo. Então, dentro de uma análise econômica do direito, se você não tem dinheiro para pagar a sua própria defesa, deve deixar a patente cair em domínio público, porque a melhor solução para a economia e para a sociedade. O Estado não pode paternalizar o titular da uma patente, oferecendo, com recursos do contribuinte, fiscalização e polícia para sustentar a sua posição de mercado.