Guilherme Leite da Silva Dias, professor titular da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo, graduado em Ciências Econômicas e doutorado em Economia, foi Diretor da Área de Crédito, Financeira e Internacional do BNDES entre 1992 e 1993 e Secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura e do Abastecimento entre 1995 e 1997. Autor de inúmeros artigos sobre o agronegócio no Brasil e no mundo, acumula larga experiência em estudos econômicos com ênfase em economia agrária e dos recursos naturais. Nesta entrevista, Guilherme aponta a ausência de uma coordenação estratégica internacional quanto aos estoques de alimentos e os números impressionantes do programa de produção de etanol dos EUA como os dois fatores mais importantes de uma crise anunciada, que no presente se agrava graças ao quadro de instabilidade financeira com a oscilação do preço do dólar. Quanto ao papel do Brasil como futuro provedor de alimentos para o mundo, Guilherme entende que, a despeito da vantagem competitiva que o território nacional proporciona, há muitas variáveis de competência e competitividade a serem superadas para que de fato o País concorra a este título.
A crise de alimentos é resultado apenas de uma relação entre oferta e demanda ou existe muita especulação neste cenário?
A crise se apresenta porque o mercado está reagindo ao crescimento da demanda por alimentos e a estabilização da oferta mundial. Porém, se somou a isso o problema de volatividade dos preços, ou seja, você tem uma subida de preço estranha, é um patamar que assustou todo mundo, um fenômeno que aconteceu de julho do ano passado para cá. Essa volatividade dos preços tem ligação mais direta com a crise financeira internacional do que com o problema particular dos alimentos, porque o fato de não sabermos o preço real dos alimentos está relacionado com a instabilidade financeira, o dinheiro que vai para cá e para lá e a oscilação do preço do dólar. Afinal de contas, o dólar é referência para alimentos desde a II Guerra Mundial. Trata-se de um mercado em que os contratos sempre estiveram atrelados ao dólar, porque os EUA sempre foram os provedores de alimentos de última instância. Os grandes estoques americanos sempre estiveram disponíveis para o resto do mundo – inclusive para os russos durante a Guerra Fria – como a solução para um problema de escassez alimentar ocasional.
Este cenário está se modificando e é isso que provoca esta volatividade, quer dizer, um processo especulativo em cima de alimentos. Na minha opinião, está claro que existe uma coisa diferente no ar de meados do ano passado para agora. É claro que a crise se sustenta porque existe uma certa escassez de alimentos. Agora, por que o preço da tonelada de certos produtos vai parar em 1.200 dólares ou 600 dólares a tonelada de milho, quando todo mundo acha que o normal seriam 200 dólares? Por que o mercado explode a referência de preços? Está claro que há um componente “over shutting”, o que a gente chama de movimento especulador que começa a puxar o preço para cima e todo mundo reage em pânico. Então, você vê a história da Ucrânia, de alguns países da Europa Central, que quando vivem uma seca proíbem a exportação de alimentos, e outros imitam, a Argentina imita, outros também, e até nós ameaçamos fazer uma besteira dessa ordem, o que só agravaria o cenário. E logo o Brasil, que claramente tem um papel importante nesta questão, não pode de forma alguma ser um ator do pânico. Portanto, existe um componente que depende de cabeça fria, de países conversando uns com os outros, de uma análise mais profunda do problema e da adoção de soluções pontuais até o quadro se estabilizar. Nada de pânico.
A ONU pode ser a articuladora deste diálogo internacional e operar estas soluções pontuais de ajuda a países com problemas reais?
Não vejo a ONU como um organismo com credibilidade para ser o articulador desta crise e muito menos como um agente operador de um fundo internacional. Eles não têm o necessário reconhecimento internacional de ter competência para isso. Trata-se de um órgão político, que mesmo nesta dimensão já perdeu muita força. Quando a ONU pleiteia um papel deste porte, esquece do escândalo da campanha “petróleo por comida”. Na Guerra do Golfo, houve o embargo americano em pressão por um esforço de desarmamento. Um longo período de embargo a um país tão vulnerável quanto o Iraque significaria matar a população de fome, portanto, não haveria um ambiente político para o embargo, se não houvesse a possibilidade de exceção. Esta exceção foi aberta para alimentos e medicamentos através da ONU em um esquema onde houve a venda especial do petróleo do Iraque para o mercado internacional e o proveito desta compra foi entregue em alimentos e outros gêneros de primeira necessidade. Tudo foi negociado pela ONU e acabou resultando em escândalo, porque as vendas de petróleo tinham comissões estranhas e os alimentos também estranhamente eram os mais caros do mundo. Tudo isso está documentado em um relatório do FED em comissão organizada para investigar o assunto. A ONU não é executiva, é uma organização normativa e deve limitar-se à sua vocação. Neste caso, eu me pergunto, por que não a OMC, então? Pelo menos é um grupo acostumado a conversar com o mercado.
Qual seria o órgão legítimo para fazer isso? Porque certamente será necessário articular uma ajuda aos países mais pobres, ao menos como uma solução emergencial, não?
Sobre este ponto fiz um comentário recente em uma entrevista, que teve muita repercussão: vocês já notaram que depois da Rodada do Uruguai não existe mais esta liderança? Se você olhar a estrutura normativa que está por trás deste histórico, que antes era o centro das políticas domésticas com os países que pretenderiam ser os líderes mundiais, você tinha a idéia de ter uma reserva de alimentos que serve para mim e para os outros países com os quais tenho bom relacionamento. Os estoques norte americanos serviram para isto, os estoques da Europa serviram para isto e basicamente estes eram os únicos que tinham estoques para suprir sua população e o resto do mundo. Obviamente, os estoques que ficavam dentro da China também eram significativos, porque depois da fome vivida durante a Revolução Cultural, os chineses, como instrumento de autonomia e de soberania, formaram um imenso estoque de alimentos. Quando eles negociaram a entrada do país na OMC em 1988, esse estoque entrou em discussão. Porque cada país não pode simplesmente fazer uma política em que compra todo o estoque e põe no armazém. Estamos vendo uma pontinha deste tipo de risco agora, de como esse comportamento pode criar realmente um ciclo de pane com a parada de movimentação de alimentos de um país para o outro.
Mas os estoques da China fazem muita falta hoje ao mundo, vide a escassez de arroz.
Exatamente, com a entrada da China em 1998 na OMC, eles assinaram um compromisso de a partir de 2002 começarem a cumprir as regras direitinho, que recomendavam a baixa dos estoques. O problema é que o estoque da China era a metade do estoque do mundo. Aí, você olha os europeus, depois da mudança política agrícola do PAC do ano de 2000, eles também vieram reduzindo os estoques violentamente, os estoques de carne, de lácteos… Aquela elevação grande de preços de laticínios que houve no ano passado aconteceu porque acabaram completamente os estoques da União Européia. Na verdade, aumentou a demanda e faltou uma estratégia coordenada de formação de estoques emergenciais. Todo mundo se comprometeu a limitar sua política doméstica de estoques para que todos os produtos fossem para o mercado internacional. Agora, estamos vivendo o resultado desta política levada ao extremo. Porque a China reduziu seus estoques fortemente depois de 2002 e o país tinha um estoque monstruoso em trigo e arroz, um razoável de milho e um estoque muito grande de algodão.
E o programa de etanol americano também é vilão nesta história?
Exatamente. A importância dos estoques americanos sempre esteve concentrada nas culturas de trigo e milho, a imagem de celeiro do mundo foi construída sobre estes alicerces. Como os preços andaram funcionando de uma maneira que desestimulou a produção de trigo, principalmente em 2005 e 2006, os estoques se reduziram. O programa de etanol a partir do milho – não tenho outra palavra – é boçal, pelo tamanho do risco, o tamanho do subsídio, a velocidade com que eles se comprometeram a implementar o programa depois de 2020. São essas coisas que o lobby propõe com números absurdos porque sabe que depois todo mundo vai negociar e reduzir pela metade, mas neste caso o Congresso americano aprovou sem questionar. Uma decisão que só se explica sob um clima de pânico, como se o etanol fosse solução para tudo. O resultado é o que estamos vivendo agora, porque os estoques americanos se reduziram em 2 anos a uma velocidade que ninguém podia prever. A verdade é que o trigo estava caindo dentro do processo normal, porque a China estava reduzindo os estoques e havia muita oferta no mercado, o que desistimulou a produção. Nós no Brasil, vivemos a crise de preços em 2006. Ninguém estava fazendo estoque, ninguém praticava uma política de preços líquidos para os governos comprarem o excesso de oferta, então, toda produção ia para o mercado internacional. Na verdade, a crise se impõe porque hoje não existe mais a soma do programa de estoques dos EUA, da Europa e da China, que faziam estoques para o mundo. Há certos produtos que você não pode achar que a volatividade de preços vai resolver todos os problemas do mercado. Isso é básico em economia: você deve lembrar aos alunos que a agricultura ainda depende da natureza, que quando você dá um salto de preço aqui a oferta demora um ano para responder, ou dois anos para responder… Um conteúdo que gente aborda na primeira lição de curso de economia agrícola, mas que parece não estar valendo na cartilha mundial.
As mudanças climáticas acrescentam mais um dado de instabilidade ao cenário.
Exatamente, o clima é mais um fator de instabilidade. Então, como é que você vai resolver o problema simplesmente aumentando os preços? Se o preço sobe muito, alguém vai ficar sem comer e não é possível esperar o ano que vem para que a comida apareça nos pratos novamente. Esta é obviamente uma imagem caricatural do momento que vivemos, mas que tem seu fundo de verdade quando falamos de produtos com uma oferta anual discreta e um processo complexo de reagir a preços com defasagem. A verdade é que precisamos de um mecanismo regulador que não apenas o mercado. Se você olhar a história de comércio internacional de produtos agrícolas e alimentícios nos últimos 50 anos, estávamos vivendo um período em que todo mundo acreditava que a fome estava desaparecendo, que “as fomes” eram pontuais e de origem política na maioria das vezes, culpa do exercício de governos estranhos e autoritários. Aí, você desperta com uma crise que não tem relação direta com nada disso. A verdade é que o alimento não é um produto para ser deixado ao sabor dos ventos, do equilíbrio do mercado, da volatilidade dos preços, essas coisas que funcionam em outras commodities. Creio que deste cenário vai emergir uma liderança, que faz sentido que seja no âmbito da Organização Mundial do Comércio, principalmente, porque todos os grandes comerciantes de produtos agrícolas do mundo estão estruturados naquele sistema de representação. Não é possível usurpar este papel que a OMC tem consolidado. A FAO e a ONU não conseguirão se transformar de uma hora para outra em estrutura para mobilizar um esforço de guerra em termos de transporte de alimentos ao redor do mundo…não tem cabimento. A OMC talvez não tenha se apresentado em um primeiro momento porque há um conflito intrínseco ao tema. Afinal, foi ela mesma quem conduziu o processo de forma a evitar estoques de alimentos…houve uma certa falta de orientação sobre como fazer isso sem comprometer o futuro. Por isso, talvez, eles estejam tão reservados. Será que eu posso falar sobre aquilo em que errei?
Você acredita, então, que é fundamental que se articule uma orientação global sobre os estoques de alimentos, equilibrando oferta e demanda através de mecanismos reguladores?
Sim. Será necessário, sem dúvida, uma revisão de postura em relação ao tema. Poderíamos, por exemplo, estabelecer uma regra de que quando o preço baixasse muito, desestimulando a oferta, os países pudessem usar mecanismos de salvaguarda, onde os governos anunciam preços acima do mercado e compram o excedente. Hoje isso não é permitido por conta de compromissos de política doméstica em relação ao mercado internacional. Acho que uma revisão de estratégia se faz necessária. Regras já são traçadas pela OMC, simplesmente terá que se fazer uma revisão das regras e prioridades traçadas até aqui.
Organizações internacionais responsabilizaram a produção de etanol pela alta dos preços das commodities agrícolas. O Brasil produz a partir da cana, portanto não existe o efeito de substituição da terra, e os Estados Unidos alegam que o impacto do etanol no cultivo do milho não é relevante. O etanol é mesmo a origem do problema?
A expectativa para esse ano é que 24% da oferta do milho nos EUA seja destinada à produção de etanol. Nesse caso, o etanol de milho é claramente o bode expiatório desse negócio, é óbvio que é parte relevante do problema de alimentos. O caso do Brasil é diferente, porque a produção de etanol a partir da cana-de-açúcar não cria nenhum problema para o cenário de alimentos no mundo, não há substituição de lavoura. Muito pelo contrário, recentemente houve uma imensa queda no preço de açúcar no mercado internacional. Portanto, esta é uma conversa de quem quer arrumar argumentos para derrubar nosso programa de etanol que é muito competitivo, pois é uma produção mais barata. Essa conversa não se sustenta nos fatos, porque estamos fazendo até um favor ao reduzir a oferta de açúcar este ano, porque o mercado internacional está dando sinal de que não quer tanto açúcar. O programa de etanol brasileiro está funcionando até como mecanismo de equilíbrio do mercado de açúcar. Basta verificar que o preço do açúcar desabou, enquanto o preço do milho explodiu no mercado internacional. O que fica no ar em relação ao nosso programa de etanol é o destino dos recursos de financiamento que são finitos. O fato é que para o Brasil a questão da terra disponível não é tão importante, pois temos como aumentar a área ocupada por lavouras. O argumento aqui é um pouco diferente: se todo o dinheiro vai para expandir a lavoura de cana de açúcar para fazer etanol, falta dinheiro para expandir outras culturas. Isso pode acabar prejudicando o cenário do agronegócio.
Aumentar a oferta de alimentos não depende apenas de uma articulação internacional, mas também do tempo possível para o desenvolvimento de infra-estrutura e outras demandas deste mercado, como fertilizantes, por exemplo?
Certamente, há limites graves para expandir a produção de alimentos no mundo hoje. Para responder a esta crise, o mundo teria que alcançar cerca de 3% ao ano a mais na expansão de alimentos durante uns 3 anos para recompor o estoque. Isso é factível no atual quadro de crescimento da demanda mundial de alimentos? A resposta provavelmente é não sei. Principalmente, porque o quadro de fertilizantes não é promissor. Nos últimos anos, foram fechadas diversas minas de fosfato e potássio que estavam ficando ineficientes ou muito caras. Estas minas acabaram, uma vez abandonadas não há retorno rápido. São necessários em média dois anos para abrir uma nova mina. Isso, sem falar nos nos problemas políticos que estão ligados a esse negócio de exploração de grandes minas de fosfato ou de potássio, pois as principais minas estão localizadas em países complicados para a atuação de capital internacional como Rússia, Ásia Central, Oriente Médio. O maior produtor de fosfato do mundo é o Marrocos. É um país um pouco mais estável, mas quem abriu a primeira planta química para exportar os produtos intermediários de fertilizantes a partir do Marrocos levou cinco anos para negociar o projeto. Não há fertilizante sem fosfato para um país como o nosso. Os nossos solos, principalmente os de cerrado, são extremamente deficientes de fosfato. A fração do solo brasileiro de perfil para produção de cereais ou de oleaginosas implica uma demanda muito pesada de fertilizantes fosfatados.
Então, fica comprometida a visão de futuro que aponta o Brasil como a saída para a produção de alimentos do mundo? Nossa principal vantagem competitiva que é território para expansão de lavouras fica condicionada a variáveis externas importantes como essa dependência de fertilizantes?
Sim, porque o controle das minas está extraordinariamente concentrado em pouquíssimas empresas e países, eu acho que são somente quatro as minas importantes de fosfato e potássio do mundo, que são fundamentais para aumentar a oferta de alimentos. Isso é perigoso. É um problema global, não é localizado no Brasil, mas atrapalha muito qualquer plano para o futuro. Curiosamente não existe um instrumento para atuar nesta regulação global, não existe o equivalente a um CAD internacional para regular preços e práticas. Só existem órgãos domésticos de regulação de concorrência, não há um fórum mundial sobre este assunto, não existe uma Corte de Haia para os crimes contra a humanidade. No momento em que mergulhamos na globalização de fato, percebemos que ela é incompleta.
O Brasil vem sendo apresentado como capaz de fazer parte da solução do problema da oferta de determinados produtos agrícolas. O que, além de fatores de dependência externa, como os fertilizantes, nós impede de cumprir este destino?
Nós somos o principal exportador de carne bovina, somos o segundo e estamos nos transformando no primeiro em soja e somos liderança nas principais culturas de alimentos. Além disso, somos a fronteira em termos de tecnologia agrícola. O que de fato nos atrapalha é a questão de infra-estrutura em transportes. A situação dos portos e a natureza do produto agrícola nesse contexto são preocupantes. Porque estamos tratando de um produto perecível, de grande volume e com baixo valor agregado. Portanto, é tudo que o diretor de um porto não quer. O produto agrícola para ele é um problema e tem baixo retorno se comparado a todo o resto. Porque se pensarmos em um projeto para aumentar o fluxo de alimentos que passam pelo Porto de Paranaguá, por exemplo, isso exige investimentos pesados para um espaço que vai ficar reservado só para aquele tipo de produto, que é exatamente o que tem uma promessa de rentabilidade pequena. Portanto, os alimentos são produtos que claramente precisam de uma solução mais planejada, mais coordenada, precisam de um tratamento especial como fator estratégico de crescimento e sustentabilidade para o País. Eu li o PAC com toda a atenção e boa vontade como especialista em agricultura, porém tive uma grande decepção. As dúvidas que foram colocadas no lançamento do PAC em 2006, sobre os grandes investimentos que tínhamos que fazer, eu já ouvia quando estava dentro do Governo em 1996. Mais de dez anos se passaram e a questão política e estratégica estava no mesmo ponto. Se você olhar a execução do PAC, vai ver que este pedaço está parado. Exatamente este pedaço que talvez seja mais crucial para o futuro do País. Por que está parado? Por que nós não sabemos como proteger a Amazônia da invasão – ou não queremos. O fato é que fica tudo imobilizado, mas isso não impede que a pecuária vá entrando. Ela vai tomando conta, porque os bois andam. Não temos nenhuma definição do ponto de vista estratégico de prioridades para executar o papel que está implícito na pergunta que você fez. Não tenho dúvidas de que deixamos os países importadores preocupados. Somos sua esperança, mas não temos planos para corresponder às expectativas internacionais e ao tamanho desta oportunidade de crescimento. Você pode notar que o Governo apresenta quatro grandes eixos para a melhoria da infra-estrutura, mas é óbvio que o Brasil não tem dinheiro para fazer os quatro ao mesmo tempo, mas o PAC não aponta claramente a prioridade.
Alguns analistas indicam que a crise provocada pelo aumento dos preços dos alimentos decorre também da disparada dos preços do petróleo e dos subsídios agrícolas dos países ricos. Qual é sua opinião sobre o assunto?
Mais sério do que o desequilíbrio da fome, já há alguns anos estamos cientes, é o desequilíbrio de energia. Então, é sintomático que a gente esteja discutindo a fome há dois meses, mas neste período o petróleo passou de 90 para para 124 dólares. É curioso que, nesse meio-tempo em que a fome adquiriu espaço nos jornais, o preço do petróleo tenha explodido ainda mais. Isso é muito revelador de fato desse desequilíbrio entre o crescimento da demanda do mercado mundial e a capacidade de atender esta demanda.
É o resultado da disputa política daqueles que estão por trás dessa questão da energia, fora a ligação entre esse problema de oferta de energia e o aquecimento global. Tudo se relaciona. Se o modelo é de globalização, tudo indica que o aparato de gestão de conflitos está ridículo em relação ao tamanho do desafio. Nesse cenário turbulento, creio que a OMC tem maior vocação para se apresentar como articuladora na questão dos alimentos. Na questão do aquecimento global já não sei. Os subsídios agrícolas são claramente um problema, porque resultam em uma redistribuição de oportunidades. A implicação por trás disso é que de fato o preço dos alimentos tem que subir. Se você retira aqueles subsídios todos, a oferta global deve se ajustar a um preço mais alto. Encarar a questão de que os alimentos passariam por um ciclo de preços mais altos vem junto com a idéia de reduzir os subsídios. Eu acho que o processo de redução de subsídios é lento, mas está acontecendo. Com uma única exceção no mundo, que são os Estados Unidos, pois depois de 98 eles voltaram a aumentar os subsídios. Só tem um país importante no mundo que não está reduzindo os subsídios, porque a Europa está. Podemos reclamar que a redução anda muito devagar, mas inequivocamente ela está acontecendo.
A conclusão da Rodada de Doha, com a conseqüente liberação do comércio agrícola e redução de subsídios praticados pelos países desenvolvidos, poderá impactar favoravelmente na oferta e na renda dos produtores dos países em desenvolvimento?
Sim. Reduzidos os subsídios, sobem os preços e sobram benefícios para os países em desenvolvimento. A competição fica mais leal. Para nós, para a Argentina e para a Austrália sem seca seria ótimo isso. E todo mundo fica esperando saber em que momento a África passará a ser uma grande fornecedora de alimentos. Afinal, todos os cientistas e técnicos que andaram por lá não compreendem como o cenário não se modifica para os países africanos. A questão política precisa ser superada para contarmos também com este continente de oportunidades.
O debate que se encontra na agenda de várias organizações públicas e não-governamentais a respeito da produção oriunda da propriedade empresarial vis a vis da propriedade familiar tem alguma relevância?
Acho essa discussão inadequada. É ingênuo acreditar que o sistema de pequena propriedade familiar vai sobreviver só com alimentos. Isso não é verdade. A pequena propriedade vai se dedicar a qualquer cultura que signifique mais qualidade de vida para o produtor. A verdade é que não existe organização de produtores familiares se não existir a super estrutura de uma organização cooperativa ou de uma coordenação agroindustrial sobre o sistema. O Incra tem sido um fracasso no sentido de montar a tal da estrutura de organização. A Conab, empresa de alimentação do Ministério da Agricultura, tem tentado assumir a montagem de tais estruturas de organização, mas está engantinhando ainda. Acho que seria bom deixar a iniciativa privada entrar para organizar este negócio da compra dos excendentes que a agricultura familiar gera. Há discussões no ar, mas nenhuma delas tomou forma efetiva. Na minha opinião, o Governo tinha que fomentar esta estrutura. O México, por exemplo, organizou um sistema de coordenação da agricultura de pequenos agricultores familiares. A idéia é traçar metas e prioridades, pois esta super estrutura dialoga com os produtores e defende seus interesses, mas define o que vai ser produzido e como, busca financiamentos, funciona como um diretor comercial. Há uma ausência de gestão no campo, de uma coordenação estratégica dos pequenos produtores. Eu acredito no sistema de cooperativa, só que se trata de um desafio da literatura internacional, não é um problema só brasileiro. Reproduzir uma estrutura de cooperativa não é uma tarefa simples. É muito complicado em um país com tradição individualista como o nosso, tipo o sertão nordestino, por exemplo, fazer com que aquele grupo de produtores passe a trabalhar dentro de um sistema coordenado. No sul é diferente, porque os agricultores reproduziram modelos trazidos da Europa.
Quer dizer que superar a questão cultural é um desafio?
Sim. A questão é cultural e política, mas é possível trabalhar para modificar a tradição individualista. É uma questão de tempo e de liderança. Lideranças empresariais ou mesmo originárias dos movimentos sociais. Se o MST fosse um pouco mais preparado, já estaria preocupado, atuando efetivamente neste sentido. Esta questão já fazia parte das instruções dos anos 80 nos movimentos que deram origem ao MST, mas creio que eles perderam o bonde e optaram pela idéia de que o Estado vai fazer tudo. A reforma agrária no Brasil é absolutamente necessária, um país com a concentração de renda que nós temos tem que atuar neste sentido. Mas também neste assunto estamos patinando há muito tempo, sem uma condução estratégica para o tema. Por outro lado, se a opção é pela agricultura empresarial, concentrada na produção em larga escala e tudo o mais, como dá a impressão de que é o caminho que estamos seguindo, aí então existe uma outra questão muito séria. Se este sistema precisa de uma renegociação de dívida a cada sete anos, onde está a sustentabilidade dele? Se os produtores estão sempre com o pires na mão, pedindo milhões de presente, onde vamos chegar com isso? É desta forma que estamos conduzindo nossa agricultura de 95 para cá. O governo dando dinheiro, sem dizer claramente que está dando, sem mostrar os dados para a sociedade do quanto existe de transferência nesse processo de crédito rural. É uma caixa preta. Uma pergunta não quer calar: Como está sendo a renegociação, quanto é de fato que vai custar aos cofres públicos? Os números não são revelados com transparência, então, não temos noção de quanto significa esta socialização do prejuízo, de quanto foi escondido dentro do orçamento. Definitivamente não há transparência. É uma análise que deve ser feita por técnicos com a oposição presente. Este seria o procedimento político decente para avaliarmos correções de rumos. Alguém tem que discutir isso, são dois imensos socorros em 10 anos. Na minha conta isso significa que de cinco em cinco anos temos que refinanciar a agricultura. Um imenso subsídio que está disfarçado, mas que faz parte do sistema de expansão da agricultura brasileira. Mais cedo ou mais tarde, teremos que responder a estas questões com mais seriedade.