REVISTA FACTO
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Mai-Jun 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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//Artigo

Agroindústria: chegou a vez do Brasil

Há três décadas o Brasil era chamado de “país do futuro”, mas esta promessa não se concretizou. Nos anos 80 ficamos enredados em dívida externa e inflação galopante. Nos 90 cedemos às pressões comerciais do primeiro mundo e jogamos fora boa parte dos resultados do esforço de industrialização do país. Agora, com a crise das commodities agrícolas, temos novamente uma oportunidade de ouro: a de nos tornarmos líderes mundiais em dois grandes mercados – alimentos e biocombustíveis – nos quais somos mais competitivos do que qualquer país desenvolvido. Mas os desafios são imensos. Se não tivermos competência para superá-los, continuaremos sendo apenas um país de futuro. E então, quem sabe um dia…

A caça aos culpados

No mês de março, pipocaram na imprensa mundial notícias sobre o aumento do preço do arroz e, em decorrência disso, a ameaça de distúrbios sociais na Ásia. Embora esse produto não seja considerado uma commodity agrícola importante – a maioria dos países consumidores de arroz é auto-suficiente ou quase na sua produção e, segundo a ONU, apenas 7% da produção mundial é exportada a cada ano – o fato causou grande inquietação e foi rapidamente seguido por uma revelação alarmante: a disparada do preço dos alimentos em geral e a ameaça de fome no mundo. Nos últimos dois anos os preços dos alimentos subiram 60% em dólar e os países pobres não terão como suportar, com recursos próprios, os novos
patamares.

O sinal de alarme reatualizou o tema de a segurança alimentar e diversos governos de países produtores reagiram lançando mão de medidas regulatórias para garantir seus estoques. A Argentina impôs tarifa sobre suas exportações de soja e a Índia, China, Tailândia, Egito, Vietnã e Camboja restringiram suas exportações de arroz. Essas medidas assustaram países dependentes da importação de alimentos, como Japão e Suíça, que chegaram a propor à OMC, sem sucesso, a imposição de limites a tais restrições.

Uma vez definido o cenário de crise, as organizações políticas e econômicas internacionais sediadas no primeiro mundo procederam à caça aos culpados e rapidamente encontraram um: o etanol, que estaria subtraindo da agricultura áreas destinadas à produção de alimentos. O relator da ONU para o Direito à Alimentação Jean Ziegler, não por acaso um suíço, declarou à imprensa que o avanço do etanol é um “crime contra a humanidade”. Os alvos imediatos dessas acusações seriam, em tese, os dois maiores exportadores mundiais de alimentos e também os maiores produtores de etanol: os Estados Unidos, que vêm concedendo massivos subsídios à produção de etanol de milho, e o Brasil, que há três décadas produz etanol de cana-de-açúcar e vem exportando o produto em ritmo crescente. Os EUA, como se sabe, não se curvam diante de pressões internacionais e fazem o que bem entendem em sua economia. Restou então, na linha de tiro, o Brasil.

Tentando parecer imparcial, o FMI generalizou o problema em torno dos biocombustíveis, declarando dramaticamente que o avanço desses programas no mundo seria “um problema moral”. Nesse momento, o teatro da exploração emocional do fantasma da fome estava montado: o ministro da Agricultura da França, país com agressiva política de subsídios agrícolas e pouco competitivo em biocombustíveis, declarou que “deve haver um reconhecimento global de que a prioridade deve ser a produção de alimentos”, reforçou as acusações ao etanol e chegou a propor a criação de um selo para garantir que o etanol vendido na Europa não fosse produzido em áreas destinadas à produção de alimentos. A proposta foi rejeitada com base no fato de que apenas 2% da produção de cereais na Europa são direcionados para o etanol.

Se o primeiro mundo, que controla o FMI e a imprensa internacional, estivesse à frente da produção mundial de biocombustíveis, não teria havido tal estardalhaço. O fato é que, no afã de encontrar um bode expiatório para a crise dos alimentos, cada um dos países desenvolvidos manipulou o noticiário segundo seus próprios interesses. Os europeus com setor agrícola forte, como França e Espanha, passaram a usar o problema de a segurança alimentar como pretexto para defender a ampliação dos subsídios concedidos pela União Européia à agricultura. Já os países com menor vocação agrícola, como Inglaterra e Suécia, que teriam mais a perder do que a ganhar com medidas desse tipo, passaram a defender a liberalização das importações de commodities agrícolas pelo continente.

Os Estados Unidos, por sua vez, mantêm a confortável postura de não reagir aos ataques da Europa contra os programas de etanol. Se suas decisões sobre subsídios ignoram até mesmo deliberações da OMC e dispositivos de acordos internacionais, não seria a União Européia que teria o poder de mudá-las. Além disso, como o etanol norte-americano é muito menos competitivo do que o brasileiro, qualquer ofensiva que incomodasse o concorrente seria interessante para os EUA. Como era de se esperar, a corda rebentou do lado mais fraco e o Brasil foi apresentado como o grande vilão da crise dos alimentos.

Reação em cadeia

Em boa hora, o recém-criado Parlamento do Mercosul se pronunciou e o presidente da representação brasileira, senador Aloizio Mercadante, reagindo à proposta européia de suspensão dos programas de biocombustíveis, sentenciou: “a moratória que se precisa fazer é a dos subsídios abusivos da União Européia e os Estados Unidos, que impedem a competitividade, a produção, a agricultura de subsistência e familiar na África, na América Latina, nas regiões mais pobres do planeta”. Em entrevista ao jornal O Globo o diretor da OMC, Pascal Lamy, confirmou esse diagnóstico afirmando que a solução para a alta dos preços dos alimentos passa pela abertura do comércio – leia-se, redução dos subsídios agrícolas no primeiro mundo.

No caso dos biocombustíveis, o que vale para os Estados Unidos não vale para o Brasil. Se o subsídio ao etanol de milho norte-americano pode efetivamente ter constituído uma das causas da crise das commodities, pelo fato de o milho ter avançado sobre outras culturas de grãos comestíveis num país que já não tem para onde expandir suas fronteiras agrícolas, o mesmo não se pode dizer do Brasil, que ainda dispõe fartamente de terras agriculturáveis e de potencial para aumentar a produtividade da sua agropecuária. No intuito de manter o governo brasileiro acuado e impedir o país de aproveitar a rara oportunidade que se lhe apresenta, o primeiro mundo mobilizou até suas ONGs ambientalistas para alardear na imprensa internacional que o avanço do etanol brasileiro estaria agravando a devastação da Amazônia.

Os números e os fatos comprovam, entretanto, que toda a argumentação contra o etanol não passa de mais uma ficção da mídia. Segundo o professor do Instituto de Física da USP José Goldenberg, somando-se as áreas plantadas com cana-de-açúcar no Brasil e com milho nos Estados Unidos para a produção de biocombustíveis, principalmente etanol, temos um total de 10 milhões de hectares, o que representa menos de 1% das áreas agriculturáveis de todo o mundo utilizadas para outras finalidades. Estas totalizam 1,4 bilhão de hectares. “Basta fazer as contas para se chegar à conclusão de que não é possível uma perturbação de 1% ser capaz de causar o problema da crise de alimentos.”

O problema do custo é especulativo, sublinha Goldenberg. “No que se refere ao etanol em particular, o custo de produção nos Estados Unidos é o dobro do custo no Brasil. E na Europa, que produz etanol a partir da beterraba ou do trigo, o custo é três vezes o do Brasil. Então, eu acredito que parte da campanha contra o etanol é das indústrias da Europa e dos Estados Unidos que não desejam ver o Brasil produzindo, porque evidentemente se penetrarmos no mercado europeu ou norte-americano vamos quebrar essas empresas. No mundo globalizado é
assim mesmo.”

A Europa adotou a regra de misturar 10% de biocombustíveis à gasolina até o ano 2010. Há um mandato nesse sentido aprovado pelo Parlamento europeu, que ainda precisa ser ratificado por cada país. Nos Estados Unidos, uma lei aprovada pelo Congresso prevê a adição de 20% de etanol à gasolina até 2022. “Isto significa que em 2022 o mundo terá que estar produzindo aproximadamente cinco vezes mais etanol do que hoje”, frisa Goldenberg. “Penso que os Estados Unidos terão sérias dificuldades para cumprir essa meta com produção local e, portanto, terão que importar.” Afinal, só no ano passado a cultura do milho para etanol nos EUA expandiu-se em 5 milhões de hectares de terras e, com a crise, haverá pressão para se refrear essa tendência em benefício da produção de alimentos. A provável necessidade de importações substanciais de etanol pelos EUA abre uma oportunidade excelente para o Brasil.

“Se as barreiras alfandegárias forem removidas o Brasil será o grande supridor de etanol dos EUA, quintuplicando a produção atual sem sacrifício de áreas de produção de alimentos”, garante Goldenberg. Outro fator que, em sua opinião, contribui para elevar comparativamente a competitividade do etanol brasileiro é a alta do preço do petróleo, que vai aumentar ainda mais o custo da produção do etanol norte-americano, “porque lá se usa muito combustível fóssil na cadeia de produção. O programa brasileiro será menos afetado, porque aqui o bagaço da cana é a fonte de energia usada nas destilarias”.

Na opinião do consultor Alexandre Mendonça de Barros, sócio da MB Associados, o Brasil precisa atuar com firmeza para neutralizar a armadilha política em que o primeiro mundo o quer aprisionar. “O biocombustível é realmente um vilão no cenário norte-americano, mas a produção no Brasil não significa nada em termos de restrição à produção de alimentos. É muito importante que nós brasileiros nos posicionemos nesse sentido, porque estão querendo pôr tudo dentro do mesmo saco. Do ponto de vista ambiental, é corretíssimo o biocombustível substituir a gasolina. O Brasil, com um pouco mais de área cultivada, conseguiria converter quase que exclusivamente para o álcool o consumo interno de combustíveis automotivos no país, o que seria algo fantástico.”

O diretor do Instituto de Estudos do Agrobusiness, Luiz Antonio Pinazza, também entende que a crise dos alimentos tem como um dos fatores o programa de etanol dos EUA. “Na Europa o biocombustível ainda ocupa um espaço muito pequeno, mas nos Estados Unidos ele já é significativo. Lá, em função do programa de subsídio ao etanol, nada menos que um terço da safra de milho, que é de 330 milhões de toneladas anuais, estará sendo canalizada este ano para a produção de combustível. Então, de fato houve uma redução significativa da área de plantio destinada a alimentos por conta do programa de etanol dos Estados Unidos. Isto porque o espaço de plantio do milho aumentou e avançou sobre áreas onde se plantava soja, algodão e arroz. Já na Europa, boa parte do biocombustível tem sido obtida da colza, que é uma oleaginosa da família da canola porém muito mais ácida, razão pela qual não serve nem para ração de animais”.

Balança desequilibrada

O fato é que a crise dos preços dos alimentos não parece ser um evento passageiro e, após o período inicial de histeria contra o etanol, analistas econômicos e políticos puderam refletir com maior isenção sobre suas verdadeiras causas. E constataram a existência de uma multiplicidade de fatores concorrendo para o desequilíbrio entre oferta e demanda de alimentos no mundo. Segundo Alexandre Mendonça de Barros, entre os elementos de demanda envolvidos nesse fenômeno “o primeiro é o crescimento populacional, que é um movimento lento e progressivo. O segundo, que ganhou muita relevância nos últimos anos, é o crescimento da renda especialmente na Ásia – um pedaço do mundo subdesenvolvido que tem padrão de nutrição muito baixo e que passou a crescer a taxas absurdas (10% ao ano ou mais), como é o caso da China e da Índia, onde se concentra o grosso da população mundial”.

Segundo o consultor, já se sabia que o crescimento dos países emergentes asiáticos iria mudar o padrão de demanda do mundo inteiro, mas a implementação do programa de subsídio ao etanol dos EUA acelerou o processo. “Não se trata de um problema brasileiro, muito menos da cana-de-açúcar, mas claramente provém do programa norte-americano de etanol, dada a importância da produção de milho dos Estados Unidos, que representa cerca de 40% da produção mundial. De repente os norte-americanos começaram a esmagar um volume considerável de milho para produção de etanol, e não há a menor dúvida de que isto afetou os preços dos grãos. Eles diminuíram a área de soja e de algodão, e os preços subiram. Esta foi uma mudança súbita. O etanol de milho já existia há muitos anos, mas essa aceleração foi muito forte”.

O aumento da demanda e a queda dos estoques produziram uma conjuntura de escassez relativa, explica Mendonça de Barros. “O tema de segurança alimentar, que a ONU vinha desencorajando em passado recente, com base na globalização dos mercados agrícolas, volta à moda. Já a ocorrência de pequenas quebra de safra no mundo – na Austrália, Canadá e Europa – que a grande imprensa incluiu entre os fatores determinantes da crise, é um fato normal. O mundo inteiro produz trigo e em algum lugar sempre há quebra. O que vale ser destacado é que estamos hoje com os preços mais altos da história sem ter nenhuma grande quebra de safra nos últimos cinco anos nem nos Estados Unidos nem na China, que são as duas maiores economias agrícolas do mundo”.

Esse componente adicional de demanda – a expectativa da escassez provocando uma corrida de reposição de estoques – surgiu muito recentemente e, segundo Pinazza, “forma uma equação complicada, que gera pressões psicológicas para o futuro. É este cenário que responde pela especulação de curto prazo”. Essa avaliação é respaldada no fato de não ter sido uma demanda real que fez soar o primeiro sinal de alarme. “Foi o problema do arroz que chamou a atenção do mundo, embora não tenha havido nenhuma grande quebra de safra de arroz e as exportações líquidas de arroz não ultrapassem 6% da produção”, esclarece Mendonça de Barros. “Mas como a Tailândia bloqueou a saída de uma parte das suas exportações, começa a faltar o produto nos países que importam e se paga qualquer preço para fechar a oferta doméstica”. Ele lembra que os Estados Unidos, a China e a Europa sempre tiveram estoques muito grandes, que em caso de uma catástrofe climática poderiam sustentar o mundo, mas isto agora acabou, gerando, efetivamente, um risco enorme. “Como os estoques estão muito reduzidos, o mundo começou a enxergar que a segurança alimentar de vários países está sob risco.”

“Financeirização” das commodities

O desequilíbrio entre oferta e demanda de commodities agrícolas fornece explicações, certamente, para a crise atual do preço dos alimentos, mas apenas num nível superficial. Há também componentes macroeconômicos em jogo, lembra Mendonça de Barros, como a crise financeira dos Estados Unidos. “O dólar perdeu valor, e como as commodities são cotadas em dólar ocorre uma alta natural. Outra conseqüência desse mesmo fator conjuntural é que, em toda crise financeira, as pessoas passam a desconfiar da estabilidade do mercado financeiro, da credibilidade dos bancos, dos papéis etc., e os investimentos migram, por exemplo, para as commodities. Este é um efeito de curto prazo com o qual iremos conviver enquanto perdurar a insegurança no mercado financeiro”.
 
Luiz Antonio Pinazza concorda que “o degelo do dólar gera mais incerteza”, já que esta moeda era considerada um ativo real e agora não é mais. Ele acrescenta que o fato de os juros estarem em queda em quase todo o mundo também estimulou os grandes fundos de investimento a se voltarem para ativos reais, e lembra que a alta do preço das commodities minerais, especialmente o petróleo, está diretamente ligada a esse fenômeno (o preço do barril subiu de US$ 35 para US$ 125 nos últimos cinco anos), assim como a disparada do preço das commodities agrícolas. “Temos hoje uma luz amarela acesa e bem brilhante, e estamos perto de acender a luz vermelha. Se ocorrer algum problema climático nos Estados Unidos no período entre junho e agosto, pode haver turbulência no chamado ‘mercado de clima’ das bolsas de valores.

O fato é que, na economia global, a balança entre oferta e demanda deixou de ser o fator decisivo do rumo do mercado de commodities. As cotações dos futuros agrícolas (derivativos) passaram a ser influenciadas diretamente pela atuação dos fundos de investimento, num fenômeno que tem sido chamado de “financeirização” do mercado de commodities, como também pelas agressivas políticas de subsídios à agricultura praticadas pelos Estados Unidos e União Européia. Ao injetarem anualmente US$ 400 bilhões em suas economias agrícolas, tornando-as artificialmente competitivas, esses países desestimulam os países subdesenvolvidos e emergentes a produzir mais para o mercado global. O diretor da OMC Pascal Lamy reconhece este fato ao afirmar que “a produção insuficiente nos países em desenvolvimento é, em parte, resultado de subsídios e tarifas que distorcem o comércio e que precisam ser reduzidas”.

Esses fatores, entretanto, podem ainda ser considerados como de ordem conjuntural. Se buscarmos as causas mais profundas da crise dos alimentos veremos que existe uma matriz estrutural se consolidando há cerca de três décadas. Com o início da globalização nos anos 80, e a imposição aos países menos desenvolvidos, pelo FMI e Banco Mundial, de modelos econômicos neoliberais, desmontaram-se as instituições nacionais e internacionais que exerciam algum poder regulatório sobre os mercados de commodities – por exemplo, no Brasil, o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e o Instituto Brasileiro do Café (IBC). Com isso os fluxos do comércio foram entregues às “forças de mercado” e, conseqüentemente, ficaram sujeitos à ação de oligopólios.

Num estudo intitulado “Commodity dependence and development” o South Centre, organização intergovernamental dos países em desenvolvimento, aponta a concentração do mercado de commodities agrícolas nas mãos de poucos intermediários – processadores, tradings e distribuidoras – como um dos principais fatores de desestímulo ao aumento da produção entre os países pobres. “A extinção das funções reguladoras das organizações internacionais e dos órgãos nacionais que monitoravam esses mercados, e que no passado atuavam como vetores de estabilização, apesar de sua eventual fragilidade e limitações, exacerbou a volatilidade nos mercados de commodities”, afirma o estudo.

A realidade do mercado de commodities agrícolas hoje, segundo o South Centre, é a do oligopsônio, que se diferencia do oligopólio apenas por ser o poder de compra, e não o de venda, que se concentra nas mãos de poucas empresas – neste caso processadoras e distribuidoras em detrimento tanto dos produtores quanto dos consumidores. O progressivo aumento dessa concentração, por meio de fusões e aquisições, habilitou intermediários a ficar com a “parte do leão” e reduziu a parcela de ganhos do produtor na cadeia de valor das commodities agrícolas.

Segundo o documento, outro fator de desestímulo à produção foi “o sistemático descumprimento de compromissos assumidos pelos países de primeiro mundo com relação à redução dos seus subsídios agrícolas”, que funcionam como barreiras à entrada de commodities provenientes de países menos desenvolvidos. “A falta de vontade política resultou em ceticismo e inação”, lamenta South Centre. Para superar a crise do preço dos alimentos, o documento defende a tese de que o mundo precisa de mais regulação e políticas industriais que ampliem e fortaleçam um conjunto maior de atores. “O pensamento corrente, hoje, sobre política industrial, é que os governos desempenham um papel crucial no equacionamento das disfunções das forças de mercado”, resume o estudo.

Um desafio para o Brasil

Em que pesem as barreiras conjunturais e estruturais contra os países menos desenvolvidos, o Brasil tem excepcionais condições – mais do que qualquer outro país, talvez – de se tornar um líder na exportação tanto de alimentos quanto de biocombustíveis. Segundo maior produtor de alimentos do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, o País tem 64 milhões de hectares plantados e ainda dispõe de algo entre 70 e 90 milhões de hectares de terras agriculturáveis hoje subaproveitadas, que equivalem a mais do que os territórios da França e da Alemanha somados. São, em geral, áreas de pastagens degradadas ou ainda em uso na pecuária, porém de forma demasiado extensiva, e que se forem tecnificadas poderão liberar terras para plantio. Esta conta não inclui a Amazônia e nem as áreas de preservação do Cerrado e da Mata Atlântica.

Na agricultura o Brasil tem avançado a passos largos. Entre 1996 e 2006, a produção agrícola nacional cresceu mais de 4% ao ano, enquanto a média mundial não passou de 1%. A condição do Brasil é única, com terra, água doce (13% das fontes existentes no planeta estão aqui) e insolação abundantes. Nos Estados Unidos a terra ainda disponível é considerada de risco ambiental, o que implicaria altos custos de produção. A Austrália tem boa disponibilidade de terra, mas não de água. A África, onde as condições naturais seriam mais próximas às do Brasil, há problemas políticos de difícil solução em curto prazo que inviabilizam a produção massiva de alimentos.

Porém, boas condições naturais não bastam. Para que a terra se torne produtiva é preciso pôr em funcionamento toda uma cadeia de suprimentos que inclui implementos agrícolas, armazenagem, transporte, sementes, fertilizantes e defensivos agrícolas, entre outros itens. E nessa esfera a situação se complica, pois o Brasil luta com notórios e ainda mal equacionados gargalos de infra-estrutura – especialmente nas áreas de energia e transporte – e depende de fertilizantes importados que não estão sobrando no mundo. Atualmente o País importa 65% do fertilizante que consome e recentemente os preços em dólar de alguns desses produtos chegaram a dobrar no mercado nacional.

Alexandre Mendonça de Barros explica que há problemas relacionados ao abastecimento dos três grandes nutrientes que compõem os fertilizantes – nitrogênio, fósforo e potássio. “O nitrogênio é obtido a partir da matriz do petróleo e um insumo fundamental para sua produção é o gás natural, utilizado para liberar hidrogênio e reagir com o nitrogênio do ar para produzir amônia. Os fatores limitantes, aí, são a quantidade de gás natural e as fábricas para produzir o insumo. De qualquer forma, nos últimos anos este foi o único nutriente em que houve investimentos. Recentemente a China, que é uma exportadora de nitrogênio importante, impôs uma tarifa de mais de 100% sobre suas vendas externas de adubos nitrogenados e fosfatados para reter o produto no mercado interno. O resultado é uma escassez da oferta de nitrogênio no mercado internacional e uma elevação significativa do preço. Já o fósforo e o potássio são obtidos basicamente por mineração: 60% das reservas de fósforo estão no Marrocos e o potássio se concentra no Canadá, Rússia, Alemanha e Israel, em minas que estão operando a plena capacidade. Vai levar um tempo até que a oferta se corrija – a estimativa de especialistas é de não menos que três anos”.

Diversos fatores concorrem, portanto, para encarecer os preços dos fertilizantes. Além da alta do petróleo, commodity indispensável para a produção do nitrogênio, e do fato de os demais nutrientes também dependerem de reservas minerais esgotáveis, há ainda as pressões de demanda. Mendonça de Barros lembra que, como o consumo de fertilizantes também cresce fortemente, “especialmente na China e na Índia, que hoje consomem 30 a 40% do adubo do mundo e têm políticas de subsídio para evitar desabastecimento, o preço deve continuar subindo no mercado internacional”.

Alguns fatores macroeconômicos internos também conspiram contra a nova revolução agrícola que o Brasil poderia fazer. O câmbio desfavorável à exportação, que anula o incentivo dos altos preços internacionais para o produtor brasileiro, é considerado o principal deles. “Como o real está se valorizando e como a logística no Brasil é ruim – a escassez de portos e estradas coloca uma dificuldade adicional – os custos de produção subiram muito e as margens para os produtores brasileiros não são tão convidativas como deveriam, considerando-se que os preços mundiais atingiram seu recorde histórico” – argumenta Mendonça de Barros. “O que tem acontecido é que a produção no Brasil não tem crescido e, a meu ver, não crescerá no próximo ano, pelo menos na proporção que o mundo nos demanda. O Brasil não irá resolver o problema de oferta do mundo”.

O consultor aponta como um problema adicional as dificuldades de gestão do governo brasileiro. “Em minha opinião, falta um projeto unificado, uma ação interministerial com orientação comum. Sente-se, pelo contrário, muita divisão. Em uma democracia isto é interessante, mas uma opinião pode neutralizar a outra e então nada acontece. Parece que, infelizmente, o caminho não tem sido de conciliação, mas de conflito de opiniões. Isto não ajuda.”
Luiz Antonio Pinazza está mais otimista. Ele acredita que “o Brasil, como já se antecipava há décadas, vai ser o grande celeiro do mundo. Acho que está chegando este momento. Os Estados Unidos não têm área para crescer, a Argentina tem pouca área, e a África não vai dar resposta em curto prazo, por conta da instabilidade política e de uma insegurança institucional muito grande. Neste cenário, o Brasil ocupa um lugar especial. Temos um agronegócio muito profissional e os grandes players internacionais do setor estão aqui, em todos os elos da cadeia”.

Por outro lado, ele compartilha as preocupações de Mendonça de Barros com relação aos gargalos, assinalando que o PAC ainda não deu uma resposta à altura dos desafios relacionados à infra-estrutura. “Os investimentos estão evoluindo em ritmo muito lento e, num cenário de cinco ou seis anos à frente, corremos o risco de apagão na área de energia”. Quanto aos fertilizantes, Pinazza considera ser possível diminuir a dependência externa. Para isso, afirma, “é preciso avaliar as jazidas de fósforo e potássio que existem no País e os impactos ambientais decorrentes da sua exploração”.

Outro ponto destacado pelo diretor do Instituto de Estudos do Agrobusiness é o apoio ao cooperativismo no País. “O sistema de integração do agronegócio é quase todo baseado na pequena propriedade familiar: a agroindústria fornece o insumo, tecnologia e assistência e os pequenos produtores cuidam da lavoura. Cerca de 90% da produção agrícola no Brasil vem de cooperativas, e por isso é importante o seu fortalecimento e a criação de instrumentos para elas agregarem valor ao produto, industria­lizando-se mais”.

Finalmente, todos concordam que a questão ambiental não pode ser negligenciada. Mendonça de Barros lembra que “o Brasil já é líder mundial em oito mercados, com 60 milhões de hectares plantados, enquanto os Estados Unidos plantam 180 milhões de hectares. Temos um grande potencial para crescer”. Será preciso repetir muitas vezes ao mundo que, com as áreas ainda disponíveis no Brasil, não será preciso derrubar florestas para aumentar nossa produção. Luiz Antonio Pinazza admite que um avanço muito rápido da agricultura poderia constituir, sim, um risco para o meio ambiente, mas insiste em que é preciso enfrentar esse desafio: “ameaças ambientais sempre existirão, mas a tecnologia, se empregada corretamente, ajuda a preservar o meio ambiente”.

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