“Alimentos estão sendo transformados de alguma coisa que se cultiva para comer em alguma coisa que se compra, vende e manipula.” – René Dumont
Morreram milhares de africanos antes que a morte dos primeiros americanos e europeus vitimados pela Aids despertasse o Ocidente para a gravidade do problema e que a comunidade científica e, a seguir a industrial, se lançasse em busca de uma solução para conter a disseminação e a mortalidade causada pelo vírus.
Há anos que milhares de pobres nas nações periféricas, sobretudo da África, morrem de desnutrição e fome, mas somente quando o crescimento da desigualdade nos EUA agravou o problema da desnutrição local e fatores conjunturais elevaram o custo da alimentação para os países centrais é que a questão da disponibilidade de alimentos alcançou as manchetes da grande imprensa e começou-se a discutir o problema com uma menor dose de hipocrisia.
O fantasma da fome deixou de assombrar apenas o Burundi, Rwanda ou Bangaladesh. Reapareceu nas classes menos favorecidas dos países ocidentais, e a possibilidade do surgimento de instabilidades sociais acendeu um sinal amarelo na sala dos governantes. Agitações já começaram a pipocar, como sempre na periferia. Em abril deste ano, Jacques Diouf, diretor geral da FAO afirmou que motins da fome não tardariam a surgir. Manifestações de rua já estão acontecendo nas grandes cidades de Camarões, Abdijã, Egito e Senegal. Na Mauritânia a segurança alimentar não ultrapassa 30% segundo advertência do Programa Alimentar Mundial (PAM) e são previsíveis as agitações e os protestos. No México, o presidente Calderón lançou um novo programa, o Vivir Mejor que vai dar ajuda em dinheiro para compensar a alta dos alimentos. Em muitos países do sudeste da Ásia, que têm no arroz seu alimento básico, a situação de abastecimento está longe de ser tranqüila.
Nos EUA, o órgão do Congresso que cuida do orçamento previu que, em 2009, os americanos que recebem ajuda alimentar do governo através do selo alimentar (food stamp) chegarão a 28 milhões e o orçamento para o programa alimentar, cerca de US$ 300 bilhões em cinco anos, vai necessitar de pelo menos mais US$ 10 bilhões anuais para dar conta do aumento do número de assistidos e dos níveis crescentes de preços dos alimentos. A cesta básica do programa teve um aumento de 6,5% nos últimos 12 meses.
Os culpados pela crise imediatamente começaram a surgir na grande imprensa: são os chineses e indianos cujas populações não param de crescer e que estão comendo mais e melhor, são os brasileiros que deixam de plantar alimentos para transformar o país em um imenso canavial, são os americanos que estão desviando milho da cadeia alimentar para produzir álcool combustível, são os europeus que só pensam no biodiesel e estão usando óleos alimentares para isso, foi a seca na Austrália que reduziu a colheita de trigo, foram as inundações no sudeste da Ásia que diminuíram a oferta de arroz, foi o aumento do petróleo que encareceu o transporte, e por aí vai, que a lista é grande e diversificada.
Não se pode negar que fatores conjunturais estejam desempenhando um papel importante na crise de oferta e na conseqüente escalada dos preços dos alimentos observada ultimamente, mas seria má análise socioeconômica procurar apenas neles as causas do problema. Há que se olhar para a evolução estrutural do sistema de produção de alimentos que conforma o pano de fundo sobre o qual atuam os fatores conjunturais.
Desequilíbrios na oferta-demanda de alimentos causados por fatores conjunturais não são uma novidade na história da humanidade, mas para além de medidas de curto prazo, o que importa saber é que estrutura de produção agrícola é mais conveniente para reduzir os efeitos de eventuais condições adversas. Historicamente, cada núcleo populacional procurou estabelecer suas fontes próprias de produção de alimentos ficando o recurso ao comércio internacional relegado a uma função complementar. Nem mesmo o processo de urbanização que se acelerou acentuadamente nos tempos modernos foi capaz de alterar substancialmente esse quadro. É claro que a expansão colonialista européia introduziu um componente novo, a produção de alimentos nas colônias, mas esse foi um fenômeno que teve maior significado nos primeiros tempos da era colonial e muito especialmente para a Inglaterra em função de suas limitações insulares que contrastavam com a vastidão dos espaços na América do Norte, Nova Zelândia e Austrália. De forma geral, a segurança alimentar da Europa era razoavelmente balanceada entre a produção local e as importações, que tradicionalmente provinham de regiões próximas, da franja mediterrânea da África ou dos países de Leste europeu. O que se obtinha de mais importante das colônias eram especiarias ou matérias-primas, agrícolas ou minerais: algodão, linho, juta, açúcar, cacau, madeira, ferro, diamantes, ouro, cobre, estanho, guano etc., matérias-primas que foram se tornando cada vez mais importantes na medida em que a Europa, e depois os EUA, entravam aceleradamente na era industrial.
A utilização dos vastos espaços coloniais para a produção de matérias-primas necessárias ao esforço industrial ocidental introduziu um fator de desequilíbrio na segurança alimentar das colônias na medida em que as melhores terras eram destinadas a monoculturas de exportação, algodão, café, cacau, açúcar e que vastos ambientes naturais eram degradados pela exploração mineral. A agricultura para a produção de alimentos perdeu espaço, colocando em xeque a segurança alimentar de inúmeros países periféricos que passaram a depender de importações para complementar suas necessidades.
Se esta transformação estrutural começou a ter efeitos no colonialismo tardio, a passagem para a fase neocolonialista, característica da primeira metade do século XX, não mudou o panorama e se agravou substancialmente na passagem para a era do pós-colonialismo em que vivemos, quando a governança global deixou de ser predicado exclusivo dos governos das nações em função do crescente poder das grandes empresas de atuação internacional.
Durante o período da 2ª Guerra Mundial, os EUA se tornaram o grande exportador mundial de alimentos e essa situação se prolongou pelo período do pós-guerra, na fase de reconstrução. Com o aumento da produtividade agrícola decorrente dos avanços tecnológicos da “revolução verde”, os EUA passaram a dispor de um excedente notável de alimentos que era necessário exportar. Ou se exportava ou se teria que diminuir a produção com o conseqüente desemprego interno.
Foi diante dessa promessa de abundância de alimentos gerada nos EUA que as instituições de Breton Woods, o FMI e o Banco Mundial, passaram a aviar uma receita de produção para os países periféricos: produzam matérias-primas úteis para a indústria que com a renda gerada por suas exportações comprarão os alimentos de que precisam a preços convidativos, pois eles serão produzidos com o de melhor existe em tecnologia agrícola. Ao longo das últimas décadas essa receita foi seguida por um sem-número de países, com prejuízo notável para as culturas tradicionais de alimentação. Há inúmeros países, especialmente na África, cujas economias dependem inteiramente da exportação de um ou dois produtos agrícolas os quais ocuparam, senão todas, pelo menos as melhores terras antes dedicadas à produção local de alimentos. Segundo um relatório recente da ONU, 38 países em desenvolvimento dependem de um único produto de exportação para a geração de 50% do total de suas receitas externas.
A receita, aviada em função de uma superoferta existente nos anos 50 e 60, ganhou um reforço considerável com a ideologia neoliberal, que se tornou hegemônica a partir do início dos anos 80. Diante da vitória da tese de que o mercado cuidaria de obter a melhor maneira de equilibrar oferta e demanda, toda uma série de macroestruturas de controle de produção e preços, o Acordo Internacional do Café, o do Trigo, o do Cacau, foi desmantelada. O mercado foi liberado da influência dos Estados para se tornar refém dos interesses das grandes empresas responsáveis pelos fluxos de comércio internacional.
No último relatório anual do Banco Mundial o erro dessa receita foi reconhecido, mas vai ser preciso algum tempo e muito sofrimento dos mais pobres para corrigir a situação. Com a falência do modelo neoliberal já se reconhece que a ação do Estado é imprescindível para sanar imperfeições de mercado e na questão da agricultura, de seus insumos e da comercialização de seus produtos, as imperfeições não são pequenas.
Elas começam com os pesados subsídios e as barreiras protecionistas impostas pelos países centrais dirigidas especialmente para os produtos tropicais, algodão, açúcar, suco de laranja etc. e se espraiam pela pesada concentração existente na produção e distribuição de insumos para finalizar na comercialização da produção. Há uma grande controvérsia acadêmica a respeito da oligopolização mundial das commodities agrícolas, mas nenhuma dúvida quanto à enorme concentração alcançada pelo setor. Nas “commodities” alimentares, cerca de 60% do comércio internacional é realizado por um punhado de empresas multinacionais. Por exemplo, apenas quatro grandes empresas controlam 60% do comércio internacional de café, três empresas são responsáveis pelo comércio internacional de chá, duas companhias dominam 50% do comércio internacional de bananas. Em 2002, apenas duas companhias controlavam 75% do comércio internacional de grãos.
No caso dos insumos o panorama não é diferente: seis companhias controlam cerca de 80% do comércio mundial de pesticidas e no setor de sementes o controle é exercido por não mais do que três empresas. Em fertilizantes a concentração é menor, mas ainda assim bastante expressiva, especialmente em potássio.
Dizer que a expansão dos canaviais brasileiros ou a expansão do uso da soja para biodiesel seriam os responsáveis pelo aumento do preço dos alimentos do mundo beira o ridículo e já surgiram explicações suficientes para mostrar que o Brasil tem áreas agriculturáveis de dimensão suficiente para aumentar a produção de biocombustíveis sem afetar sua produção de alimentos.
O problema mundial do abastecimento de alimentos tem raízes profundas numa estrutura excessivamente concentrada de distribuição e controle, seja de insumos seja de produtos e aparentemente o fator conjuntural mais importante para deflagrar a atual crise de preços foi financeiro, o elevado nível de especulação com commodities agrícolas. Há poucos dias noticiou-se que cerca de 40% dos contratos futuros lançados na Bolsa de Chicago estavam sendo adquiridos por fundos de pensão, num claro movimento de financeirização da produção agrícola. Alimentos estão passando de bens essenciais para ativos financeiros com os quais se especula, como previu René Dumont há mais de 30 anos. Uma operação de contrato futuro de soja ou trigo pode render ao especulador, em apenas um dia, mais que a renda do produtor que levou meses arando, semeando e colhendo.
Seja como for, a crise teve um efeito positivo, o de despertar consciências para as deficiências globais do sistema de produção agrícola. O Brasil pode não ser parte significativa do problema, mas se quiser ter papel influente na solução vai ter que pensar mais em medidas estruturantes do que paliativos para enfrentar problemas eventuais. Temos condições básicas – água, terra, sol – excelentes para aumentar em muito nossa produção agrícola, seja de “cash-crops”, seja de alimentos, mas para alcançar um equilíbrio adequado entre ganhos financeiros e necessidades sociais o governo vai ter que intervir para reduzir a influência das imperfeições de mercado que hoje existem e isto passa por mudar a agenda das discussões sobre o problema agrícola. Até agora essa agenda incorpora, basicamente, a remoção de gargalos e óbices do interesse dos controladores dos fluxos de exportação e dos fornecedores de insumos, como melhoria de portos e corredores de exportação, aprovação da comercialização de sementes transgênicas e plantas geneticamente modificadas para resistir a produtos específicos e assim por diante. O Brasil tem uma área de assentamentos quase igual à área de cultivo agrícola extensivo mas que hoje é extremamente improdutiva. Falta uma política adequada de suporte para permitir a atuação eficiente do pequeno produtor, que sabidamente tem uma importância crucial na produção de alimentos.
Permitir que fatores básicos de produção, como a terra, por exemplo, passem para a mão de estrangeiros, como vem acontecendo, é perder controle sobre o direcionamento da produção e alimentar a grilagem e a especulação, que vem se acelerando no Centro-Oeste e na Amazônia. Limitar a produção de biocombustiveis usando como matérias-primas soja e açúcar de cana é um erro. Há que se ganhar produtividade através do uso de material celulósico para a produção de álcool e as pesquisas neste sentido, no Brasil, andam meio atrasadas em relação ao resto do mundo.
O Estado tem total condição de aumentar a produção e oferta de fertilizantes e de apoiar a produção nacional de sementes e defensivos agrícolas, reduzindo as pressões de preço decorrentes da oligopolização desses mercados.
Se for preciso um argumento monetarista para realçar a necessidade de aumentar a oferta de alimentos basta dizer que 1/3 da atual inflação brasileira é decorrente do aumento do preço da cesta básica, do feijão com arroz nosso de cada dia.
Toda crise tem seu componente de oportunidade e esta não é diferente, resta saber se teremos a sabedoria para aproveitá-la.