REVISTA FACTO
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Mai-Jun 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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//Artigo

A produção pública de medicamentos promovendo a indústria de fármacos no Brasil

Em fevereiro de 2006, ao assumir a Diretoria de Farmanguinhos o médico Eduardo Costa anunciava seu compromisso de avançar ainda mais no caminho da mudança na história da saúde no Brasil, para o qual já tanto havia contribuído em 34 anos dedicados à Fiocruz. “Vamos assumir Farmanguinhos sem ilusões, mas com determinação, para questionar, para inovar, para reinventar a história da assistência farmacêutica e da fabricação pública de medicamentos do país. Os medicamentos apresentam papel relevante na redução das taxas de mortalidade e de morbidade, mas são tão mais efetivos quanto mais competente é o controle do Estado do ponto de vista regulatório e mais dinâmica é a interferência do Estado para assegurar um acesso equânime aos medicamentos essenciais”, afirmou na ocasião. Dois anos depois, no recente Seminário sobre o Complexo Econômico Industrial da Saúde, realizado de 19 a 21 de maio pelo BNDES, o Brasil começou a colher os frutos do trabalho desse homem público, de caráter e retidão, que incansavelmente lutou pela produção local de fármacos e medicamentos.

No evento, que reuniu representantes do Governo e da iniciativa privada, duas importantes Portarias foram assinadas. A primeira foi a Portaria Interministerial que institui a Contratação de Serviços de Produção, como medida para ampliar o acesso da indústria nacional ao mercado de compras públicas. O acordo foi assinado à ocasião pelos ministros da Saúde, José Gomes Temporão, e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, sendo posteriormente assinado também pelos ministros do Planejamento e de Ciência e Tecnologia. A segunda Portaria, assinada exclusivamente pelo Ministério da Saúde, lista cerca de 100 produtos prioritários para o governo, explicitando as áreas em que se espera maior investimento por parte do setor privado e que poderão ter maiores facilidades de financiamento do BNDES.

Disse Eduardo em seu discurso de posse em Farmanguinhos, no ano de 2006: “Não há acesso de qualidade, nem equidade, quando o preço e a prescrição dependem das forças do mercado e a elas não se sobrepõe um Estado que limite e discipline essas forças para atingir os objetivos sanitários. Não há acesso de qualidade, nem equidade, nem soberania, quando o mercado é dominado por um grupo de grandes transnacionais e se desonera e remunera fartamente a aplicação financeira”. E terminou afirmando que seu maior desafio seria reverter o quadro de dependência tecnológica do país no que se refere a fármacos e medicamentos e assim diminuir os gastos governamentais, aumentar a capacidade de inovação e as exportações. “Importamos cerca de 3 bilhões de dólares anualmente em fármacos e medicamentos e exportamos menos de 500 milhões. Nesse quadro Farmaguinhos precisa advogar e trabalhar com o governo por uma política industrial que valorize a criação e fixação de empresas produtivas no Brasil”. As ações mais que as palavras deste e de outros honrados cidadãos brasileiros que fizeram história na causa da Saúde Pública foram determinantes para que se pudessem traçar os objetivos da atual Política Industrial Tecnológica de Comércio Exterior – PITCE, do PAC Mais Saúde e do PAC de Inovação. Neste cenário, destaca-se a competência e sensibilidade do ministro Temporão que garantiram a velocidade dos avanços.

Além de ser o marco de lançamento das duas Portarias, o seminário organizado pelo BNDES teve como objetivo reunir um fórum privilegiado para discutir um conjunto concreto de ações para o desenvolvimento da base produtiva nacional de bens e serviços em saúde, mediante uma forte articulação entre o Estado, o setor produtivo e a sociedade brasileira. Com isso, o evento contribuiu para um padrão nacional de desenvolvimento que viabilize, a um só tempo, o dinamismo econômico, a geração e difusão de inovações em saúde no Brasil e o acesso da população aos bens e serviços essenciais em saúde.

Na presente entrevista sobre o conteúdo da sua apresentação no seminário do BNDES, Eduardo Costa faz um retrospecto da história recente da saúde no Brasil e conta um pouco da sua experiência à frente de projeto pioneiro de compra de serviços na cadeia produtiva de medicamentos. A proposta, capitaneada por Farmanguinhos, foi de estabelecer parcerias público-privado com fornecedores nacionais, mudando o conceito das aquisições exclusivamente pelo menor preço de fase: em vez de matéria-prima o instituto passou a comprar serviços de produção de princípios ativos. Ao adotar essa outra forma de contratação de serviços, o laboratório ganhou condições de acompanhar o processo produtivo de perto para garantir a qualidade dos insumos e, conseqüentemente, de estabilizar a cadeia de suprimentos que termina em suas máquinas. Ainda que a atitude de abandonar o sistema de pregões internacionais tenha resultado em alguns custos iniciais mais elevados, uma enorme economia para os cofres públicos já se confirmou, sem contar com importantes benefícios indiretos como o desenvolvimento tecnológico sustentável e a geração de empregos qualificados no País.

Como se encontrava o setor de fármacos nos anos 80 e o que aconteceu nos anos 90?

A partir de 1984, com a Portaria Inter-Ministerial N004/84, foi efetivamente implantada uma política industrial para fortalecer a área de química fina no País. Os projetos eram apresentados ao Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI), recebiam o suporte de financiamento do BNDES, havia uma garantia de mercado através da Central de Medicamentos (CEME) e o apoio à inovação tecnológica era realizado através da Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (CODETEC). Em função desses estímulos de política industrial, entre 1985 e 1990 foram investidos cerca de 1 bilhão de reais na área de química fina, em especial no segmento de fármacos. Portanto, quando houve a eleição de Fernando Collor em 1989, estavam em andamento centenas de projetos de desenvolvimento industrial. Porém, como a orientação do Presidente eleito era diametralmente oposta, todos os projetos que tinham sido aprovados com a garantia de compra governamental foram descontinuados, porque todos os compromissos anteriores foram ignorados. A CEME, responsável pela compra de medicamentos pelo Estado, e o CODETEC, que trabalhava em Campinas, vinculado à Unicamp, voltada para o fomento do desenvolvimento tecnológico, foram fechadas. O empresário que investiu cinco anos de trabalho em projetos que se transformariam em realidade produtiva, tiveram seus esforços em vão. Neste período, mais de 1100 unidades produtivas de fármacos foram fechadas no País e 500 projetos de P&D foram descontinuados. A globalização dos anos 90 ampliaria o modelo de consumo onde os paradigmas são conquistas individuais, favorecendo o “mercado”. A economia brasileira foi “aberta”. Coincidentemente, conquistas sociais com a nova Constituição brasileira incorporaram o direito à saúde e o dever do estado para assegurá-lo. Uma década depois a pressão de demanda sobre os laboratórios oficiais começa a tomar inicialmente o contorno de dar acesso a amplos setores da população, como esperado, através de programas para enfermidades de alta prevalência, voltando-se para a atenção básica. Logo, porém, precisam os laboratórios públicos se readaptar: o Ministério da Saúde descentraliza as compras exatamente desses programas ligados à atenção básica. E, sobrevém a necessidade de abater os altos custos de medicamentos de incorporação recente aos consensos terapêuticos. Esses últimos decorrem, em particular, da lei das patentes, que surpreendentemente no Brasil incorpora o pipeline, isto é, é retro-ativa. O legado neoliberal torna os desafios aos laboratórios oficiais incomensuráveis. Na década de 90, houve a entrada em vigor do acordo TRIPS e da lei brasileira de Propriedade Industrial, que adotou gratuitamente o dispositivo do pipeline, ressuscitando mais de 1000 patentes da área química, entre elas anti-retrovirais (Efavirenz, Nelfinavir, Abacavir e Amprenavir); a abertura do mercado brasileiro, resultando em exagerado aumento de importações (750% de aumento nas importações de produtos dos capítulos 29 e 30 da NCM – farmacêuticos e farmoquímicos); a paralisação de mais de 400 linhas de produção de farmoquímicos; a redução do número de produtores locais de antibióticos de 7 para 1; e a extinção das políticas industriais setoriais. A Cartilha neoliberal decidiu por desonerar importações e gravar a produção local. Um conjunto de medidas inviabiliza a produção local de farmoquímicos e aposta em trazer empresas de genéricos sem exigir a internalização de farmoquímicos. A ideologia vigente faz da lei 8.666/93 um instrumento de importação: a isonomia preconizada não é aplicada. Resumindo, toda promessa de avanço da política industrial implantada na década de 80 foi aviltada por uma irresponsável orientação única e exclusivamente para o mercado, contrária aos interesses nacionais.

Como se caracteriza atualmente a produção pública de medicamentos?

A produção pública de medicamentos engloba 206 apresentações, incluídos os 11 soros específicos. Depois de crescer a quase 10 bilhões de unidades produzidas em 2005, cairia para quase 8 bilhões em 2006 e a menos de 5 bilhões em 2007, ou seja, uma redução de 50%. Farmanguinhos, atualmente, fabrica 66 medicamentos, entre eles, antibióticos, antiinflamatórios, antinfecciosos, antiulcerantes, analgésicos e produtos dermatológicos; medicamentos para doenças endêmicas como malária e tuberculose; drogas anti-retrovirais; medicamentos para doenças do sistema cardiovascular e do sistema nervoso central e para os programas de hipertensão e diabetes.

A produção pública de medicamentos gera economia?

Só para dar um exemplo em números exatos, o desenvolvimento de tecnologia para a produção de anti-retrovirais por Farmanguinhos teve como objetivo garantir a disponibilidade, como forma de ampliar o acesso aos pacientes portadores de HIV/AIDS atendidos pelo Programa DST/AIDS do Ministério da Saúde. A produção dessa linha de medicamentos foi iniciada em 1997. O efeito regulador de preços foi surpreendente. A economia gerada pela produção nacional de anti-retrovirais no período de 1997 a 2000 foi de US$ 222 milhões. Desta economia, US$ 148 milhões foram obtidos somente no ano 2000. A contribuição de Farmanguinhos neste montante foi de US$ 115 milhões. Assim é para todo o restante da produção com variantes é claro, mas a economia é evidente.

Pode ilustrar como Farmanguinhos pode estimular a produção nacional de fármacos?

Há pelo menos sete linhas de estímulo já testadas pelos resultados alcançados de atividades que levaram à ampliação da produção local de princípios ativos. A primeira delas seria o desenvolvimento próprio ou compartilhado de fármacos com tecnologias de síntese (inclui engenharia reversa para estabelecer as rotas) ou desenvolvimento de análogos (moléculas modificadas). Como “cases” de sucesso neste sentido temos também a transferência ou licenciamento dessas tecnologias para parceiros privados: lidocaína, carbamazepina, haloperidol, dietilcarbamazina, fenitoína, ribavirina, didanosina entérica e sinvastatina (em progresso), além de análogos da lidocaína (atividade anti-histamínica). Outra modalidade são os contratos internacionais de incorporação de tecnologia, com obrigatoriedade da transferência da tecnologia de produção do princípio ativo para produção própria (insulina humana, em progresso) ou para transferência e licenciamento dessas tecnologias para parceiros privados (em fase final de negociação: respiratórios). Podemos incluir nesta lista também a intervenção contratual para internalizar a produção de importantes produtores mundiais de fármacos com o objetivo de garantir a produção de Farmanguinhos e de outros laboratórios oficiais por meio do licenciamento de farmoquímicas nacionais (em fase final: metformina; prednisona; metildopa; amoxicilina); ou para garantir suprimento regular e adequado de programas do Ministério da Saúde por Farmanguinhos e outros laboratórios oficiais – com perspectiva de apoio do Profarma; ou ainda focada em estabelecer farmoquímicas no Brasil através da formação de novas empresas com capital nacional ou estrangeiro ou ambos (em negociação: hormônios; em estudos: oncológicos). A transferência de tecnologia de produção de medicamentos de Farmanguinhos para laboratórios de outros países com princípios ativos nacionais e obrigatoriedade de uso dos mesmos por período contratual inicial (cinco a dez anos) é uma outra proposta de estímulo interessante. Isso sempre com obrigatoriedade de aquisição dos princípios ativos nacionais por período de 5 a 10 anos (em fase final: Nigéria, Angola e Moçambique já acordados); ou, no caso de droga combinada de dois produtos transferida para Índia, um dos produtos terá base de produção nacional por um período de 5 anos (contrato negociado em apreciação jurídica). Outra linha de atuação neste sentido é a Pesquisa e Desenvolvimento na área de bioprodutos e de fitomedicamentos. Pode-se dar desenvolvimento próprio com patentes de bioprodutos licenciados para produtores locais (velas de andiroba; BTI – larvicida para aedes sp.) ou com fitomedicamentos em desenvolvimento: fisalinas (imunomoduladores); der. Echinodorus sp (antihipertensivo); der. Aroeira (anti-inflamatórios), entre outros. São muitas as oportunidades de Farmanguinhos como estímulo à indústria de fármacos que produz em território nacional. É importante ressaltar os estudos e projetos estratégicos para a produção nacional de fármacos:participação direta no estudo enviado à Petroquisa/Petrobrás, envolvendo a viabilidade técnico-financeira da implantação do complexo para a produção de intermediários de síntese e levantamento de todas as empresas farmoquímicas nacionais, com dados gerenciais, tecnológicos, etc. Mas entre todas as linhas de estímulo citadas destaco, no entanto, a escolha de parceiros para compra de serviços dentro da cadeia de produção de medicamentos. Em 2006, Farmanguinhos identificou um grave problema no suprimento de princípios ativos a tempo e com qualidade como seu principal desafio gerencial. Esse problema precisou ser solucionado com uma forte parceria estratégica com as farmoquímicas nacionais. Por essa razão, o instituto se filiou à ABIFINA e desenvolveu profícuo trabalho sob a competente liderança desta entidade. A inovação no sistema de compras de princípios ativos em Farmanguinhos demonstrou ser um “ovo de Colombo”, pois afinal é sabido que o princípio ativo não é um “commodity”. O contrato de serviço de produção com fornecimento permite a customização, a rastreabilidade, a certificação da ANVISA e internacional dos produtos como genéricos e ainda privilegia a produção local, gerando emprego e desenvolvimento real para o País.

Em sua opinião quais os destaques da Portaria Interministerial no. 128, de 29 de junho de 2008?

Na determinação das diretrizes para a contratação de fármacos e medicamentos pelos órgãos e entidades integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS), esta Portaria tem o mérito de estabelecer que, a fim de garantir o pleno atendimento de todas as exigências sanitárias nacionais nas aquisições de medicamentos acabados por entidades da Administração Pública Direta ou Indireta, serão preferenciais as licitações de âmbito nacional. Outro destaque é que nas aquisições de medicamentos acabados, deverá estar prevista no instrumento convocatório a exigência de apresentação do certificado de registro do produto e do certificado de boas práticas de fabricação do produtor, emitidos pela ANVISA, bem como declaração do produtor, sujeita à comprovação, referente à origem do produto acabado e do insumo farmacêutico ativo que o compõe. Além disso, as aquisições de medicamento acabado patenteado no Brasil e não produzido em território brasileiro, após o terceiro ano de validade da patente, apenas poderão ocorrer quando a autoridade sanitária federal o considere imprescindível e seja demonstrado impedimento justificável à produção no País. Em relação à compra de fármacos, há grande avanço em definir que, em razão da singularidade, natureza e relevância da produção de medicamentos, os laboratórios oficiais de produção de medicamentos, em suas licitações, deverão, sempre que possível, contratar o serviço de customização e produção, devendo prever a exigência de que a empresa a ser contratada possua unidade fabril em território nacional, sob pena de desclassificação. Destaco também a questão da isonomia tributária nas licitações internacionais para aquisição de fármacos e medicamentos, considerando no preço do produto proveniente do estrangeiro, para efeito de julgamento das propostas todos os tributos que incidem em toda a cadeia produtiva e que oneram o preço final dos produtos fabricados no País, descontando-se os tributos pagos com internalização e comercialização do bem, quando for o caso. Estamos avançando a passos largos, garantindo uma competitividade leal e priorizando a Saúde Pública em detrimento das regras do mercado. Há de fato muito o que comemorar.

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