REVISTA FACTO
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Jan-Fev 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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Crise financeira, países emergentes e desenvolvimento industrial
//Entrevista Antonio Corrêa de Lacerda

Crise financeira, países emergentes e desenvolvimento industrial

Como vê o cenário internacional e os impactos da crise do mercado subprime norte-americano? Acha que as medidas que estão sendo tomadas pelo FED e o governo norte-americano podem fazer reverter a crise?

O mercado financeiro é especulativo por natureza, no sentido de que vive literalmente da especulação. Nos movimentos de altas e baixas muitos ganham. Vale também fazer uma diferenciação, entre o que é o efeito sobre o mercado financeiro, em contraponto ao da economia real, que tem lógica e timing diferenciados, e também entre o curto e o longo prazos. A turbulência deve acentuar a volatilidade financeira, no entanto, sem inverter o rumo do nível de atividade.

Reduzir taxa de juros, proporcionar liquidez ao sistema financeiro e expandir os gastos públicos são medidas clássicas de combate a uma crise econômica. Nesse sentido, sob o ponto de vista da direção, as decisões do FED (Federal Reserve, o equivalente ao banco central) e do governo norte-americano estão corretas. A questão é se o pacote fiscal adotado vair ser suficiente para fazer frente aos estragos. Provavelmente não.

No entanto, vale observar que os tempos mudaram, veio a globalização financeira do final do século XX, mas, apesar do discurso não-intervencionista, em geral direcionado aos “outros”, economias em debilidade têm recorrido à velha fórmula intervencionista, que, se não resolve de vez, ameniza os efeitos da crise.
No caso da crise mais recente, o que pode ser questionado, como de fato tem ocorrido, é o timing e a proporção das medidas. É cômodo para qualquer observador criticá-las, ainda mais em um palco internacional, com a atenção da mídia mundial, como ocorreu na semana passada, em mais uma edição do Fórum de Davos.

Não há dúvida, que a situação ideal é que as autoridades monetárias se antecipem aos fatos, mas isso nem sempre é tão fácil, ou, melhor dizendo, está cada vez mais difícil. Os instrumentos de análise e controle se sofisticaram, mas os mercados se tornaram muito mais complexos, tanto no que se refere aos produtos e serviços, como também quanto aos volumes negociados. Há ainda um tema candente e não resolvido que é a questão da supervisão e fiscalização do mercado, mas que não aprofundarei aqui.

Especificamente quanto à crise atual, o fato é que ninguém ainda conhece a profundidade e extensão dos impactos dos problemas gerados a partir do mercado subprime norte-americano. Assim, a postura mais recomendável para as
autoridades monetária é, primeiro, acertar na direção e, segundo, ir calibrando as ações, à medida que se conheça mais detalhadamente a extensão dos problemas.

O risco de recessão existe, mas o mais provável é que, se de fato vir a ocorrer, a recessão norte-americana seja leve e curta. Portanto, não é bom contar com um crescimento dos EUA superior a 1% em 2008. As demais regiões do globo serão afetadas, mas não a ponto de inviabilizar o crescimento da economia mundial, que deve ser menor do que no período 2002-2007, a melhor fase depois os “30 anos dourados”, pós Conferência de Bretton Woods, no final da Segunda Guerra Mundial.

A questão chave é que os EUA podem se dar ao luxo de reduzir substancialmente a sua taxa de juros, sem correr riscos de financiamento do seu ainda elevado déficit em transações correntes do balanço de pagamentos de cerca de US$ 900 bilhões ao ano.

Só para lembrar de um episódio recente, entre 2002 e 2003 a taxa de juros nominal norte-americana foi mantida em apenas 1% ao ano para estimular a recuperação da crise de 2001.

Muitos lembram, com certa razão, que a correção de crise via redução de juros é um estímulo ao risco, uma vez que incentiva o moral hazard (risco moral, em tradução literal), o que na prática equivaleria a estimular os comportamentos altamente especulativos, porque quando a crise se aproxima o banco central baixa os juros.

O fato de as taxas de juros terem permanecido baixas por longo período estimulou as operações carry trade, a tomada de recursos a juros baixos para aplicações de alto risco, inclusive no mercado subprime norte-americano.

Apesar dessa ressalva, o mais importante é que uma recessão prolongada nos EUA não interessaria a ninguém, já que seus efeitos seriam maléficos para toda a economia mundial. Assim, diante da iminência de uma recessão, nada como voltar à velha e boa intervenção nos mercados.

Cerca de 65% do total das reservas dos bancos centrais mundo afora, cujo total é estimado em US$ 7 trilhões, estão denominadas em dólares norte-americanos e os títulos do Tesouro dos EUA ainda são considerados aplicações de baixos risco, pela segurança e liquidez que proporcionam. Isso também explica a alta procura por esses títulos, por parte dos administradores das reservas cambiais dos países, independentemente da taxa de juros oferecida.

Esse fator não deixa de ser um grande trunfo para os EUA que têm o privilegio e a primazia de emissão da moeda de maior referência internacional e também de emitir o título mais procurado no mercado. Ambos são fatores que tornarão um pouco mais fácil a tarefa do FED para criar um ambiente favorável à superação da crise.

Quais as diferenças de comportamento a destacar entre nações emergentes pequenas, como o Chile, e as grandes, como o Brasil?

Basicamente a diferença é que paises pequenos como o Chile, cuja população total é menor do que a da cidade de São Paulo, é que podem se especializar em produtos primários, e não se preocupar em industrializar-se.
O Brasil conta com uma população que em pouco tempo estará em 200 milhões de habitantes e precisa criar anualmente quase dois milhões de novos empregos. Para isso é imprescindível o dinamismo da indústria. Uma nação que venceu o desafio da industrialização no século passado não deveria jogar pela janela o que conquistou a duras penas. O Brasil também tem a vantagem de poder ser forte na agropecuária, sem que isso signifique abrir mão de desenvolver sua indústria e serviços. Alias, pelo contrário, a grande força do Brasil é a sua capacidade de diversificação. Estou falando de ramos de atividades, mercados de destino e outros indicadores.

Outro desafio, não menos importante, é que além de condições de competitividade isonômicas em relação à média internacional, é preciso criar e implementar políticas de desenvolvimento que viabilizem a criação de novas competências, especialmente aquelas que têm comportamento mais dinâmico no mercado internacional. Isso implica a necessidade de articulação das políticas de competitividade, envolvendo desde a política industrial em si, mas coadunada com as políticas comercial, ciência e tecnologia e investimentos, entre outros elementos importantes.

Em um ambiente internacional cuja competitividade tem sido fortemente influenciada pela China, que além de ter vários itens de competitividade que podem ser questionados, adota deliberadamente uma política de câmbio fortemente desvalorizado, o desafio para o Brasil é enorme. O pior é enfrentar essa disputa com o câmbio valorizado, além de outros fatores de competitividade sistêmica, como carga tributária, carências de infra-estrutura e logística desequilibradas.

Essa disputa não envolve apenas as exportações, mas também o mercado doméstico diante da concorrência com os produtos importados. Uma outra dimensão, não menos importante, é sobre a localização de investimentos mundo afora. As empresas, sejam elas estrangeiras ou brasileiras, avaliam a viabilidade de novos projetos a partir, entre outros elementos, da comparação dos custos de produção expressos em dólares. Portanto, a questão cambial é determinante.

A batalha não está perdida, mas é preciso ter consciência de que a
situação se agrava rapidamente. O cenário menos favorável é a acomodação com os avanços, inegáveis relativamente ao nosso passado recente, mas ainda longe da nova realidade internacional. Essa é uma tarefa que não se restringe ao âmbito governamental. Os setores representativos da sociedade brasileira precisam ter em conta que não vale a pena abrir mão da sustentabilidade futura pelos resultados do curto prazo, fáceis, porém fugazes.

O Brasil de hoje está de fato mais preparado para a crise?

O primeiro e principal trunfo é a extraordinária redução da vulnerabilidade externa brasileira. No período 2003 a 2007 foi acumulado um superávit de
US$ 53 bilhões na conta de transações correntes do balanço de pagamentos, contra um déficit de US$ 114 bilhões, dos cinco anos anteriores. Isso proporcionou a redução da divida externa e a evolução do nível de reservas cambiais, que cresceram de US$ 17 bilhões no início de 2003 para US$ 190 bilhões atualmente, também favorecidas pelos influxos externos.

O fato de o Brasil estar próximo de vir a ser classificado com grau de investimento pelas agências de risco deverá ser um motivador para a continuidade dos ingressos externos, especialmente as modalidades de investimento direto e portfolio. Isso vai impor duas pressões contraditórias sobre a taxa de câmbio real/US$. Uma de desvalorização, pela deterioração da conta de transações correntes e outra de valorização, pelo influxo de capitais forâneos. No médio e longo prazos é crucial ampliar a pauta de exportação além das commodities, mais dependentes dos ciclos internacionais de níveis de demanda e preços.

O segundo ponto é a pujança do mercado interno. Há um efeito positivo do carry over da atividade do ano passado. O crescimento da renda e emprego tem favorecido a expansão do crédito. Apesar dos elevados juros cobrados do consumidor, o volume tem se elevado em 26% ao ano e pode crescer ainda mais, já que representa apenas 35% do PIB (Produto Interno Bruto). Do ponto de vista da oferta, o investimento tem crescido muito acima da atividade. Enquanto a produção industrial evoluiu 6% no acumulado até novembro passado, a produção de máquinas e equipamentos, importante indicador de investimentos em modernização e ampliação da capacidade de produção, cresceu 19,5%.

Há gargalos importantes a serem solucionados na infra-estrutura, especialmente em transportes e energia, que vai depender não apenas da maturação de novos investimentos, mas dos níveis pluviométricos, dada a nossa expressiva dependência hídrica. Um prolongamento da estiagem, no mínimo, impactará a estrutura de custos, porque a alternativa térmica é bem mais cara.

Diferentemente de outras crises passadas, a economia brasileira tem hoje uma situação bem mais favorável. Isso não garante uma blindagem plena relativamente às instabilidades internacionais. Aliás, vale destacar que esse não se trata apenas de um problema conjuntural. A crise norte-americana é apenas uma das faces da turbulência inerente ao capitalismo contemporâneo.

Como o que interessa ao país não é apenas garantir o crescimento de 2008, mas o desenvolvimento de médio e longo prazos, isso vai nos exigir mais do que o comodismo curto-prazista da dobradinha juro alto-câmbio valorizado. Não precisamos de nenhum freio de arrumação, mas é bom colocar as barbas de molho, até porque o mar está mais turbulento. É fundamental aprimorar o arcabouço das políticas macroeconômicas (monetária, fiscal e cambial), além da definição e adoção de políticas de desenvolvimento (industrial, comercial, científica-tecnológica etc). Estamos diante de um grande desafio para o governo e sociedade brasileiros.

Como analisa a excessiva valorização do real face ao dólar nos últimos anos? Haverá algum retorno dessa taxa a um ponto de equilíbrio que, efetivamente, permita a competitividade internacional de uma indústria de ponta no país?

A questão básica é que combinação de câmbio valorizado, juros reais elevados, impostos excessivos, assim como demais condições desfavoráveis (excessiva burocracia, infra-estrutura e logística deficientes, por exemplo) tem provocado forte reestruturação no tecido industrial brasileiro. Os fatores de competitividade sistêmica, tudo aquilo que corresponde ao ambiente externo à empresa, estão em clara desvantagem relativamente à média internacional, o que é agravado pela taxa de câmbio valorizada.

Há, em decorrência, um grave processo de substituição da produção local por importações em vários segmentos, assim como a perda de dinamismo das exportações de maior valor agregado. Embora do ponto de vista microeconômico, da lógica empresarial, a decisão das empresas em ampliar a importação de matérias-primas, componentes e produtos, para o desenvolvimento do país, essa medida, provocada pelas distorções apontadas, significa, muitas vezes, desperdiçar a capacidade produtiva, a engenharia e know-how locais.

O que está ocorrendo claramente, em muitos casos, é que o câmbio valorizado está “subsidiando” importações de produtos e serviços que poderiam ser realizadas localmente. Não se trata apenas da questão de queima de divisas, mas de um processo de perda de conhecimento em áreas sofisticadas e de desperdício de oportunidades de desenvolvimento de fornecedores e de tecnologia, agregadores potenciais de jovens profissionais.

Não por acaso, a maioria dos países hoje adiantados e muitos países em desenvolvimento de sucesso utilizaram e utilizam instrumentos, como o poder de compra do Estado, o fomento às atividades locais, e uma clara política de câmbio desvalorizado para incentivo à industrialização. Quem desejar conhecer um trabalho interessante sobre essas experiências pode recorrer ao livro Chutando a escada – a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica do professor da Universidade de Oxford, o sul-coreano Ha-Joon Chang.

Parece que, infelizmente, aprendemos pouco com a experiência alheia e com a nossa própria passada. Há ainda os que defendem, como um processo saudável, o aumento de importações de bens de capital, em detrimento da produção local, por “modernizar a indústria”. Se esse é o objetivo, o instrumento mais adequado para estimular a importação de bens não produzidos localmente, não é o câmbio, mas tarifas e incentivos localizados e de duração limitada, para evitar que toda a estrutura industrial seja negativamente afetada.

Há também o argumento de que as empresas acabam se “adaptando” ao câmbio valorizado. Elas de fato se adaptam, mas essa adaptação, embora racional do ponto de vista microeconômico, diante da necessidade de sobrevivência ou expansão das empresas, na maioria das vezes não é favorável à nação.

Como ocorre em algumas doenças crônicas, nem sempre os sintomas têm sinais claros. No entanto, se despercebidos, podem causar estragos diretos e também muitos efeitos colaterais. O câmbio distorcido influi em decisões que vão afetar nosso futuro porque afeta os investimentos produtivos, com uma perda de valor agregado local, empregos e renda.

Antonio Corrêa de Lacerda
Antonio Corrêa de Lacerda
Presidente do Conselho Federal de Economia
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