REVISTA FACTO
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Jan-Fev 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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//Matérias

Amicus Curie

Boa parte, senão a maior parte, das ações judiciais que chegam à decisão dos magistrados diz respeito apenas às partes em litígio, sejam elas pessoas ou grupos de pessoas. Nestes casos, as partes podem fazer constar do processo todos os fatos e dados relevantes à sua avaliação e julgamento e a regra de que o juiz julga apenas com o que consta dos autos pode ser seguida sem nenhuma dúvida quanto à justiça contida na decisão.

Há, entretanto, casos em que o interesse na decisão judicial transcende aos das partes em litígio, pode alcançar o público em geral, ou pelo menos uma parcela substancial do público que não é partícipe do processo. Em outras palavras, podem existir situações em que a demanda entre dois agentes diga respeito a uma causa de interesse social mais amplo.

Questões relativas à propriedade intelectual estão neste último caso: uma querela entre duas empresas em relação aos direitos de propriedade intelectual relativos a um determinado produto pode estar envolvendo o interesse de milhares de cidadãos, que embora consumidores passíveis de serem alcançados pelos efeitos da decisão, não são parte do processo. Não é difícil imaginar exemplos na área dos direitos de autor ou do direito marcário, mas penso que em nenhuma outra área o problema se torna tão agudo ou importante quanto na área do direito das patentes, especialmente naqueles casos que envolvem a área da saúde, propriedade industrial sobre medicamentos, vacinas, testes diagnósticos etc.

A legislação sobre propriedade intelectual é complexa envolvendo não somente leis nacionais, mas também um extenso rol de acordos internacionais, multilaterais, regionais e bilaterais, e, mais que isso, interpretações administrativas de conceitos inseridos nas leis, como atividade industrial ou atividade inventiva, que são absolutamente básicos na análise do direito patentário e que guardam em si um elevado grau de subjetividade.

Ademais, esta complexidade não é estática. Ao contrário ela é dinâmica, na medida em que novas áreas de patentea-bilidade são abertas com o progresso dos conhecimentos científicos, como é o caso da biotecnologia e da nanotecnologia, para citar apenas os exemplos mais conspícuos. O alargamento das fronteiras do conhecimento costuma trazer desafios não-triviais na interpretação das leis, freqüentemente exigindo sua mudança ou alterando sua interpretação.

É diante de situações em que o interesse do público em geral ou de parcelas substanciais do mesmo possam ser afetados por uma decisão judicial em um processo em que as duas partes litigantes sejam indivíduos, empresas ou agências governamentais, que se pode perguntar se constarão dos autos todas as informações necessárias ao magistrado que julgará o dissenso. A resposta mais razoável parece ser a da negativa e é nestas situações que surge para o direito a figura do amicus curie, uma terceira parte que, possuidora de conhecimentos relevantes para o processo em causa, coloca-as à disposição da justiça.

A prática já é costumeira em outros países, em especial naqueles em que a legislação sobre propriedade intelectual se estende por áreas do conhecimento de marcado interesse social, como a área dos medicamentos, por exemplo. É o caso dos Estados Unidos que há muitos anos adotaram uma cobertura patentária muito abrangente e que, por isto mesmo, têm um número elevado de disputas judiciais, freqüentemente entre empresas, mas envolvendo interesses sociais amplos. Nesses casos é usual cortes americanas aceitarem de bom grado a figura do amicus curie e um bom exemplo é o caso recente da disputa entre as empresas Barr e Bayer a respeito da fabricação pela Barr da versão genérica do medicamento Cipro em que a Federal Trade Commission entrou como amicus curie para subsidiar a decisão da Justiça. As informações prestadas pela FTC fizeram com que um tribunal de apelação corrigisse uma sentença proferida por um magistrado de primeira instância, beneficiando os consumidores do medicamento em causa.

A legislação brasileira sobre propriedade industrial foi muito alterada em decorrência do acordo Trips, com novas áreas de patentabilidade sendo agregadas ao direito nacional. Mais que isto, foi introduzido na lei um dispositivo altamente controverso, o conhecido pipeline argüido até mesmo de inconstitucional, mas que ainda permanece em vigor.  Como conseqüência direta destas mudanças o grau de litigiosidade na área patentária cresceu exponencialmente, nos últimos anos.

O Judiciário brasileiro foi colocado diante do enorme desafio de adaptar-se à ampliação da proteção patentária para áreas de alta complexidade tecnológica, envolvendo nitidamente o interesse público, num ambiente de litigiosidade crescente.

O desafio vem sendo vencido com galhardia, como denotam as sentenças proferidas nos últimos julgados, mercê da aplicação com que o Judiciário vem se dedicando ao estudo das questões relativas ao direito de propriedade intelectual. A figura do amicus curie tem sido acolhida em inúmeros casos em que o interesse público está caracterizado e certamente tem trazido uma contribuição valiosa à administração da Justiça.

Marcos Oliveira
Marcos Oliveira
Membro do Conselho Consultivo da ABIFINA.
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