A industrialização tem um papel fundamental no desempenho econômico dos países emergentes, mas parece que o Brasil se esqueceu disso nas últimas décadas. A Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior lançada no início do primeiro governo Lula, embora mal tenha saído do papel até hoje, representa uma tentativa de recuperar o terreno perdido. Mas será que estamos na direção certa? Para discutir esse tema em seus múltiplos desdobramentos, convidamos o coordenador de Pós-Graduação do Instituto de Economia da UFRJ, prof. Edson Peterli Guimarães, que analisa a política de comércio exterior brasileira; o assessor econômico da presidência da Abimaq, Mário Bernardini, que enfoca a política industrial no contexto macroeconômico; o diretor da Protec, Roberto Nicolsky, que aborda a inovação tecnológica como indutora do crescimento industrial; o presidente do INPI, Jorge Ávila, que discute os desafios do sistema de patentes para a industrialização dos países emergentes; e o Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Reinaldo Guimarães, que apresenta em detalhes a mais promissora novidade de 2007 no setor de química fina: o Complexo Industrial e Produtivo da Saúde.
Ambigüidade na política de comércio exterior
A falta de uma opção estratégica clara para o comércio exterior, segundo o coordenador de pós-graduação do Instituto de Economia da UFRJ, Edson Peterli, é o principal motivo da baixa competitividade brasileira no comércio internacional. Em sua opinião, o país deveria ter pautado suas decisões de política industrial ou pela obtenção de vantagens absolutas, o que implicaria investir na invenção e em monopólios por patentes, ou pelo exercício de vantagens comparativas, o que significaria apostar na redução dos custos de produção, por exemplo via capacitação de mão-de-obra técnica, e conseqüentemente na redução dos preços.
“O problema é que no Brasil essa escolha ficou a cargo da própria indústria – lamenta o professor – pois o governo não olha o mercado externo como uma variável estratégica de composição da política industrial. Para se ter uma política de comércio exterior bem sucedida é preciso deixar claro se as empresas nacionais vão competir com vantagens absolutas ou comparativas”. Como no Brasil essa sinalização é ambígua, segundo Peterli, as empresas tendem a uma postura defensiva e muitas preferem o conforto do mercado doméstico à arriscada aventura exportadora. No que tange ao relacionamento com o governo, em sua opinião, a maioria se perde em reivindicações pontuais relacionadas a redução de custos em curto prazo. “O incentivo imediato só é bom se o empresário aproveitá-lo para construir diferenciais de longo prazo”- afirma.
Para Edson Peterli, qualquer opção firme por uma dessas duas estratégias é melhor do que oscilar entre as duas. “É possível crescer com vantagens comparativas, como fez o Japão por muito tempo e como faz a China hoje, embora esta já esteja apostando no conforto das vantagens absolutas. Já o Brasil não deixa clara a sua opção. Durante a abertura comercial, muitas empresas multinacionais vieram para cá e o governo passou a priorizar, no âmbito da educação, as escolas técnicas, porque a idéia era formar mão-de-obra adequada a uma estratégia de vantagem comparativa. Mas hoje já se vê um discurso diferente, pautado no incentivo à parceria entre universidade e empresa visando o desenvolvimento tecnológico”.
Para Peterli, este é um caminho válido, apesar de certas resistências no meio acadêmico. “Embora nas universidades exista uma corrente que acha que a produção científica não pode se voltar para o mercado, isto já acontece em vários países com sucesso. O pensamento científico tem que gerar desenvolvimento para o país. A Petrobras é um exemplo do sucesso dessas parcerias onde se produz tecnologia de ponta”. Por outro lado, o professor adverte que a construção de uma cultura de inovação exige investimento e comprometimento estratégico. E, sobretudo, exige tempo: “Não é possível migrar de uma hora para outra da posição de vantagem comparativa para a de vantagem absoluta calcada no desenvolvimento tecnológico. O desafio do Brasil hoje é manter a posição atual e acrescentar a ótica da inovação, para ganharmos consistentemente no longo prazo”- afirma o professor.
Um modelo que tem atraído o interesse dos economistas é o dos clusters industriais ou Arranjos Produtivos Locais (APL), aos quais o governo brasileiro tem dedicado alguma atenção. Na opinião de Edson Peterli, porém, poucos deles contemplam mecanismos voltados para o mercado externo, como, por exemplo, a configuração de marcas de produtos ou certificações com reconhecimento internacional. De qualquer forma, segundo ele é muito importante a idéia de criar estratégias para pequenas e médias empresas, contemplando suas necessidades e ampliando seu potencial de crescimento. “Ninguém nasce grande. As estratégias, do ponto de vista de governo, não podem ser pensadas de forma igual para empresas de portes diferentes”.
O coordenador de pós-gradução do IE também não subestima o impacto do câmbio na competitividade das exportações brasileiras, embora compreenda a opção do governo. “Se até os anos 90 o câmbio era manipulado como uma variável de comércio exterior, hoje ele funciona como variável de ajustamento macroeconômico. O comércio exterior é bem menor que o fluxo financeiro dos capitais internacionais, logo o governo privilegia o câmbio nesse sentido”. Porém, alerta Peterli, esta situação pode se modificar em 2008 e os números da macroeconomia não serem tão promissores como hoje. “Aí reside o problema brasileiro. Nosso comércio exterior é baseado em commodities e, se houver uma redução de preço no mercado internacional, não teremos como mudar essa matriz em curto período de tempo, o que representa uma fragilidade”.
A ilusão do crescimento baseado em commodities
Este último tópico abordado por Edson Peterli foi o foco principal da abordagem do assessor econômico da presidência da Abimaq, Mário Bernardini, sobre a relação entre política de comércio exterior e política industrial. O excepcionalmente longo período de elevada demanda de commodities no mercado internacional criou, segundo ele, a ilusão de que a economia brasileira vai bem. “O país reverteu uma posição de vulnerabilidade externa para uma situação confortável, graças a superávits comerciais crescentes”, afirma.
“Mas o mérito de uma situação folgada nas contas externas não é do Brasil, infelizmente” – sublinha Bernardini. “Isso aconteceu. Foi um fenômeno, foi bom, mas estes fenômenos de valorização de commodities são exatamente isto: ciclos mais longos ou menos longos, mas se esgotam. E neste momento, se o país não fez o dever de casa de transformar as vantagens comparativas – que são devidas ao fato de termos sol, terra abundante, água, minérios – em vantagens competitivas, que são vantagens construídas; se não fizemos isso no ciclo de bonança, no próximo ciclo de depressão dos preços de commodities vamos sofrer as conseqüências.”
O mecanismo de sustentação desse precário conforto é perverso – a começar pela política de câmbio livre e juros altos. “Vivemos dos louros de um superávit muito forte da balança comercial, que deprimiu o câmbio” – enfatiza Bernardini, fazendo a ressalva de que a primeira fase de decréscimo do câmbio foi saudável, porque ele estava de fato supervalorizado e também por ter sido decorrência de um impulso nas exportações. Já a segunda fase da desvalorização do dólar, segundo ele, ocorreu porque o mercado, aproveitando-se da promessa do Banco Central de congelamento da Selic por um ano e da isenção de impostos para investidores estrangeiros, teve “garantias por escrito de que aplicar em especulação no Brasil é um bom negócio”.
Assim, além dos US$ 40 bilhões de superávit da balança, o país foi invadido por uma avalanche de recursos externos, com entradas de capital estrangeiro na Bolsa saltando de US$ 37 bi em 2001 para US$ 200 bi em 2007. Isso produziu dois efeitos, explica o assessor da Abimaq: “primeiro, como este volume é muito grande em relação à Bolsa brasileira, representando mais de 60 ou 70% dos recursos, houve uma forte tendência à alta da Bolsa. Segundo, o excesso de dólares no mercado, somado ao saldo positivo da balança comercial, deprecia ainda mais a moeda. O pessoal que conhece o jogo sabe que se entrarem recursos a Bolsa se valoriza e o real também, e por isso aplica na Bolsa e no real”.
Bernardini sugere que a participação de 30% no ingresso de capitais atribuída pelo governo ao investimento direto estrangeiro seja colocada entre aspas, “porque a maior parte do que figura nas estatísticas como investimento direto é na verdade compra de empresas. Ora, isto não é investimento, ou só é investimento para o Banco Central, que recebe dólares. Mas o país não recebe fábricas, elas só mudam de titularidade”. O assessor da Abimaq lembra que já fizemos essa experiência em 1995, 96 e 97 e sabemos o que nos custou: “o alto rendimento das ações e das aplicações desestimula o investimento produtivo”.
Os efeitos desse círculo vicioso estimulam o consumo de forma pouco sustentável. Segundo o assessor da Abimaq, o barateamento dos produtos importados, associado aos gastos assistencialistas do governo, como bolsa-família e outros, exerce um efeito equivalente ao de um aumento salarial. “Esse efeito e a queda da Selic tornam o financiamento do consumo altamente lucrativo para os bancos, superando a lucratividade dos títulos do Tesouro. Com acesso ao crédito, novas camadas da população entram no mercado de consumo. Porém, este mercado de crédito só é sustentável se tivermos uma redução do seu custo e um aumento de renda derivado do aumento da produtividade e dos salários reais. Caso contrário, representa um comprometimento de renda futura que conduz à inadimplência”.
Em vez de aumento real de produtividade e salários, entretanto, o que se vê no Brasil hoje é um aumento quantitativo do emprego de baixa renda, que, segundo Bernardini, “no fundo é mais uma formalização de empregos pré-existentes do que a criação de empregos novos”. Esse quadro vem sendo escamoteado pela persistência do céu de brigadeiro no comércio internacional, mas na eventualidade de uma crise externa a situação brasileira pode se complicar. Para o assessor da
Abimaq, é fácil prever as conseqüências: “em primeiro lugar, haverá uma forte redução da balança comercial. As importações já estão crescendo 30% ao ano contra 15% das exportações, o que por si só configura uma tendência nessa direção. Se considerarmos outros desdobramentos de uma crise externa, como a redução dos preços das commodities brasileiras e a inversão do fluxo de capitais, teremos, enfim, a tão desejada desvalorização do real. Mas aí poderá ser muito tarde”.
De acordo com Bernardini, cinco anos de juros altos, carga tributária crescente e câmbio desfavorável não chegaram a provocar uma desindustrialização geral no país, mas já se observa uma desindustrialização seletiva, mais acentuada nos setores conhecidos como “bens de salário” – indústrias de tecidos, calçados etc. “Primeiro se começa a importar bens intermediários e insumos para a produção. Depois, o mercado de consumo, que é mais lento e mais varejista, começa a importar bens de salário. E por fim passa a importar produtos acabados, porque o empresário conclui que não vale a pena produzir”.
Para o assessor da Abimaq, a justificativa do governo de que o dólar baixo permite a modernização da indústria, por baratear os bens de capital importados, é uma história mal contada. “Está em curso um processo de retração dos investimentos que não garante sequer a reposição do parque industrial existente. O Brasil só realiza investimentos de verdade em quatro setores – petróleo, papel e celulose, açúcar e álcool e siderurgia -, que respondem por 30% do crescimento de 4,7% do PIB este ano. Caso haja uma redução da liquidez internacional, da balança comercial e dos investimentos de capital estrangeiro, poderá ocorrer uma pressão sobre os preços e um conseqüente risco de inflação. Neste caso, o Banco Central teria um motivo real para aumentar os juros e o nosso ciclo de crescimento seria abortado”.
Ao contrário do professor Edson Peterli, Mário Bernardini está convicto de que incentivos e desoneração favorecem, sim, investimentos produtivos de longo prazo e conseqüentemente desenvolvimento industrial sustentável. Isto vale sobretudo para setores estratégicos como fármacos e química fina, bens de capital e indústria eletro-eletrônica. “Se compararmos países desenvolvidos e em desenvolvimento em termos de composição de PIB, veremos que o Brasil está fora do contexto. Países em desenvolvimento como China, Coréia e Índia têm a indústria participando com 40% do PIB, agricultura com algo entre 5% e 10% e serviços com o resto. Já nos países desenvolvidos, com renda per capita superior a 35 mil dólares, a agricultura fica com 2 a 3%, a indústria com 25 a 28% e os serviços com 75%. Isto é conseqüência do desenvolvimento. O certo é começar com uma forte base agrícola e industrial e, quando a indústria estiver tecnologicamente madura, passar a vender griffe – ou seja, serviços relacionados à propriedade intelectual”.
O Brasil tem na composição do seu PIB a agricultura com 5 a 6%, a indústria com 28% e o resto é computado como serviço, o que para Bernardini leva à seguinte interpretação: “temos um perfil de país desenvolvido com uma renda per capita de menos de 5 mil dólares, o que significa que nós abortamos o processo de crescimento da indústria no meio do caminho. Para termos uma renda per capita alta, nossa indústria deveria participar com 40% do PIB”. Na verdade, o serviço que cresceu no Brasil é de mão-de-obra não qualificada, enquanto nos países desenvolvidos essa categoria é formada principalmente por software, tecnologia, engenharia, intermediação financeira e outros serviços que empregam recursos humanos altamente qualificados. “Lá fora, quem paga altos salários é o setor de serviços. No Brasil é a indústria, que cada vez mais perde espaço no PIB, gerando uma redução do rendimento médio no país, embora se registre um aumento de vagas”.
Produção científica não gera inovação
O Brasil ocupa, atualmente, a 15ª posição no ranking internacional de artigos científicos publicados. Já no ranking de patentes estamos apenas no 28º lugar. O processo é justamente o inverso do que ocorre em outros países emergentes como China, Índia e Coréia, onde o crescimento em patentes está à frente do crescimento em papers científicos mas mantém com este último uma relação constante. Como são as patentes, e não os papers, que rendem receitas comerciais, e como em termos de crescimento do PIB nosso desempenho é dos piores entre os emergentes, cabe a pergunta: em que estamos errando?
O diretor da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec), Roberto Nicolsky, faz um diagnóstico preciso do problema: é que os emergentes asiáticos estão usando a seu favor o fenômeno conhecido como technology push, caracterizado pela fertilização da produção científica a partir do desenvolvimento tecnológico. Naqueles países o Estado incentiva prioritariamente a inovação gerada em chão de fábrica, e apenas canaliza seus efeitos para os circuitos de pesquisa científica. Para Nicolsky, que também é professor titular do Instituto de Física da UFRJ, esta é a forma mais coerente de encadear ciência com tecnologia, e não o contrário, como pensa a grande maioria da comunidade acadêmica: “precisamos ter a coragem de reconhecer a precedência do desenvolvimento tecnológico em relação à produção científica, em termos de benefícios econômicos e sociais para o país”.
Por outro lado, incentivo é algo que não pode ficar só no discurso: tem que se traduzir em ações concretas. E nesse aspecto o Brasil deixa a desejar. “As políticas públicas não geram um ambiente estimulante à criação de inovações tecnológicas” – lastima Nicolsky. “A Lei do Bem limita o incentivo fiscal apenas ao Imposto de Renda sobre o lucro real, beneficiando somente 6% do total das empresas, ou seja, as grandes; e a Lei de Inovação, embora prometa, em seu artigo 19, subvenção econômica para projetos de inovação com recursos da CIDE e de royalties sobre concessões, fica inoperante porque 90% desses recursos são sistematicamente contingenciados pelo governo”.
O diretor da Protec aposta numa estratégia focada em inovações incrementais, modestas, que imediatamente agreguem valor aos produtos brasileiros de exportação. “O PAC é um esforço positivo e válido para melhorar as condições de crescimento futuro, mas qualquer investimento em infra-estrutura realizado agora terá um efeito muito limitado no curto prazo, pois sua maturação leva cerca de quatro anos. Uma economia de industrialização tardia como a nossa só acelerará seu crescimento se a indústria de transformação e os serviços qualificados crescerem acima do PIB, ou seja, se liderarem o desenvolvimento” – afirma Nicolsky.
Os setores industrial e de serviços qualificados são os que, na opinião do diretor da Protec, podem propiciar uma resposta rápida e sustentada de crescimento, desde que estimulados por políticas públicas que promovam a agregação contínua de valor pela incorporação de inovações tecnológicas incrementais. Isso pode ser conseguido sem os onerosos investimentos que inevitavelmente cercam a criação de produtos e processos radicalmente novos. Nicolsky acredita que, se temos recursos escassos, a saída é otimizar os existentes, focando em caráter prioritário as inovações incrementais. “Se temos limitações para crescer pelo aumento da capacidade produtiva, resta buscarmos alternativas com firmeza e criatividade. O foco do PAC deve ser redirecionado para a agregação de valor à produção, para elevar o PIB sem aumento da demanda de energia nem sobrecarga da estrutura logística atual” – conclui.
A polêmica harmonização de patentes
Para o presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, Jorge Ávila, a discussão sobre o futuro da indústria nacional impõe certas escolhas relacionadas ao sistema de patentes. Uma delas seria a adesão ao controvertido processo conhecido como “harmonização internacional de patentes”, mediante o qual as grandes potências mundiais pretendem fazer prevalecer no mundo, em seu benefício, um extremo rigor no tratamento dos direitos propriedade intelectual.
Ávila discorda daqueles que defendem o boicote do tema da harmonização. Ele acredita que o Brasil, com seu estágio intermediário de desenvolvimento industrial, está em situação tão diferente de um país em estágio muito incipiente de industrialização quanto dos países avançados do hemisfério norte. E essa diferença, em sua opinião, deve nos motivar a participar do processo. “Em 2004, apresentamos à OMPI, junto a outros países em desenvolvimento, uma proposta com o objetivo de provocar uma reflexão mais profunda sobre as relações entre propriedade intelectual e desenvolvimento. O argumento é de que o sistema de propriedade intelectual deve ser calibrado em cada país de acordo com seu estágio de desenvolvimento e suas necessidades, em vez de padronizar procedimentos de maneira excessivamente rígida e orientada exclusivamente para os interesses dos países mais desenvolvidos”.
Estas são as diretrizes da Agenda do Desenvolvimento. O diretor do INPI cultiva a esperança de que seja possível avançar nesse tema “de forma que todos saiam ganhando, que se crie um ambiente de negócios no mundo favorável à redução das desigualdades, à maior transferência de tecnologia e ao maior acesso dos cidadãos dos países em desenvolvimento aos avanços do conhecimento e da técnica”. Este cenário parece um tanto utópico, levando-se em conta o fracasso da Rodada de Doha, mas Ávila sustenta que a harmonização não deve ser traduzida necessariamente como uniformização e propõe que o Brasil permaneça ativo no front. “Apesar de ser uma discussão longa, os princípios gerais já foram aprovados em Assembléia Geral da ONU de setembro e resultaram numa série de recomendações. O caso brasileiro é particularmente complexo porque, na condição de país em estágio de desenvolvimento intermediário, temos que ponderar até onde o sistema de propriedade intelectual ainda representa um entrave ou impõe custos excessivos para a obtenção de tecnologia e onde ele de fato é necessário como uma ferramenta de promoção da inovação”.
Para Jorge Ávila, o sistema de propriedade intelectual deve ser um indutor da capacidade nacional de produzir inovação tecnológica com os recursos disponíveis no presente. Este é um detalhe importante, pois foi em decorrência de promessas para o futuro não concretizadas que a Rodada de Doha acabou naufragando. “O sistema deve ser um mecanismo viabilizador de investimentos no desenvolvimento de novos produtos e novos processos, de maneira que a gente possa participar mais ativamente dos mercados que são orientados para a inovação” – afirma o presidente do INPI.
Um aspecto da política de inovação que mobiliza particularmente a atenção do INPI é a adaptação do sistema brasileiro de propriedade intelectual ao paradigma da inovação aberta. “Hoje a inovação é produzida de maneira cooperativa entre diferentes atores, e não mais entre as paredes do laboratório de uma só empresa ou universidade”, esclarece Ávila. “Cada ator observa o que o outro está fazendo e busca construir parcerias com aqueles que estão desenvolvendo projetos sinérgicos. Esta é uma realidade tanto nacional quanto internacional. Para tal cooperação ocorrer de maneira fluida, é preciso que todos os atores estejam seguro de que suas respectivas contribuições serão devidamente respeitadas e remuneradas”.
Apesar de a legislação já ter introduzido avanços nessa área, o diretor do INPI acredita que ainda vivemos um processo de aprendizado sobre como aplicar a lei e celebrar contratos que envolvam uma multiplicidade de atores do setor público, universidades, institutos de pesquisa e empresas privadas. “Sem regras claras não há como avançar nessas parcerias”. Ele reconhece que há dificuldades relacionadas, por exemplo, à compatibilização entre o conhecimento produzido em conjunto pela universidade, que seria um bem público, e pela empresa, que seria um ativo privado. “Se a questão da propriedade não for bem definida, não haverá segurança jurídica para que as empresas invistam no desenvolvimento do produto ou processo resultante da pesquisa até o ponto de levá-lo ao mercado”.
PAC da Saúde renova o fôlego da indústria
No contexto do Programa de Aceleração do Crescimento, o ministro José Temporão obteve sinal verde da Presidência da República para um ousado e inovador programa de recuperação e desenvolvimento da indústria nacional ligada à saúde, criando o conceito de Complexo Industrial e Produtivo da Saúde como um modelo de política pública. Segundo o Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Reinaldo Guimarães, essa nova visão irá demandar uma mudança de cultura no Ministério e uma mudança de tratamento por parte dos órgãos de governo responsáveis pela política de tecnologia e inovação.
O PAC da Saúde institui um conjunto de medidas que, por um lado, atribuem à saúde o estatuto de política social e, por outro, estabelecem uma política industrial setorial baseada na tecnologia, inovação, geração de empregos e de renda. “O Brasil precisa fortalecer a capacidade produtiva e tecnológica de sua indústria de saúde e o MS não deve ser o único ator dessa ação”, afirma Guimarães. “Este é um programa de ordem transversal, onde estão envolvidos os Ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ciência e Tecnologia. O MS deve ter um papel de coordenação estratégica, por ser o gestor federal da política de saúde, mas a articulação interministerial é fundamental”.
O MDIC e o MCT deverão tratar a indústria da saúde como fomentadores de uma atividade econômica. Já o MS deverá olhar não só as questões de mercado como também definir prioridades de produção e de acesso da população a medicamentos e outros produtos do complexo. “O fortalecimento da indústria de saúde será importante para diminuir as vulnerabilidades do Sistema Único de Saúde. Para conseguir isso estamos propondo utilizar de forma mais inteligente o poder de compra do Estado para orientar e regular o mercado, além de melhorar o sistema de regulação sanitária” – explica o Secretário.
O Ministério da Saúde deverá estabelecer quais são os produtos estratégicos para o SUS, uma vez que cada um deles tem importância específica. Todas as medidas tomadas para fortalecer a empresa nacional serão orientadas para esta cesta de medicamentos e de outros produtos do complexo, como equipamentos. Nesse processo, a mediação do BNDES e da Finep será de extrema importância no relacionamento do MS com o setor privado. “Embora o BNDES seja um banco de investimento, que tem por missão tratar o mercado e as empresas como entes de produção, unido ao MS ele terá condições de melhor compreender e assimilar o valor social da produção em saúde”, avalia Guimarães.
Trata-se de reverter perdas decorrentes de políticas desastrosas. Até os anos 80, lembra o Secretário, “o Brasil tinha uma cadeia produtiva instalada na área da saúde que, a partir da década de 90, teve vários de seus elos erodidos ou rompidos”. Com a indiscriminada abertura comercial do país, as importações cresceram vertiginosamente e provocaram a degradação e a desindustrialização em segmentos estratégicos da cadeia, como o farmoquímico. “Hoje, restam apenas sobreviventes heróicos nesta área que já teve um porte expressivo. O PAC da Saúde vem contemplar a necessidade de se recuperar esses elos. Está prevista, por exemplo, a criação de um regime de pré-qualificação de empresas e produtos para participação nas licitações do MS, evitando-se que produtos de baixa qualidade sejam vencedores. Outra medida diz respeito à incidência de tributos sobre produtos importados e nacionais. Atualmente, toma-se por base somente o produto final na comparação de preços para efeito de isonomia tributária, quando o correto seria levar em consideração toda a cadeia produtiva”.
No Profarma 2, programa do BNDES criado para substituir o Profarma compatibilizando suas diretrizes com as do PAC da Saúde, haverá uma modalidade de financiamento com participação total do Estado no risco, direcionada a projetos de empresas nacionais considerados inovadores e prioritários para o MS. Ela prevê que o BNDES faça aportes de recursos para financiar os projetos pré-selecionados e seja reembolsado somente se o produto chegar ao mercado. Reinaldo Guimarães observa que esta modalidade de financiamento provoca o acionamento de um outro mecanismo de apoio: a eferência nas compras governamentais, já prevista no decreto que autoriza e facilita as Parcerias Público-Privadas na aquisição de serviços de produção na área da saúde. “Esse conjunto de instrumentos garante a qualidade e fomenta a indústria nacional” – afirma. “Acredito que estamos vivendo um momento muito promissor”.