REVISTA FACTO
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Jul-Ago 2007 • ANO II • ISSN 2623-1177
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Seremos a África do Sul amanhã?
//Entrevista André Fontes

Seremos a África do Sul amanhã?

Em diversos momentos foi comentado neste encontro que o Brasil concedeu, na sua lei de patentes, mais do que devia. De que forma o Judiciário poderia contribuir para um retorno ao TRIPS?

A atual Constituição da República não permite que fujamos de três bases: o interesse social, o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento técnico. Porém, o que nós vimos com a lei de patentes foi o legislador brasileiro oferecer ao sistema de proteção patentário algo que já era de conhecimento da técnica no Brasil, e que nunca fora objeto de patenteamento. E não tomamos a atitude de reverter esse quadro. O que poderia ser uma orientação nacional resultante da vontade do povo, não aconteceu. Ao contrário, o que prevaleceu foram motivações de ordem exterior ao nosso próprio interesse, que nos países desenvolvidos soariam como atentado à segurança do país. Numa visão estritamente jurídica, penso que houve um desvio dos objetivos constitucionais na edição de leis que são nitidamente contrárias à disseminação do conhecimento protegido.

O Poder Judiciário teria hoje condições de minimizar os estragos decorrentes desse desvio?

A magistratura toma como paradigma uma decisão e as decisões são lastreadas, em um país como o nosso, basicamente em leis. Essas leis, mesmo viciadas, teriam que ser submetidas pelos juízes a um contraste com a Constituição. Esse contraste ocorre em todas as leis penais, civis, comerciais, mas não na propriedade intelectual. Há uma caracterização quase sacramental em torno da propriedade intelectual, que a tornou algo mais precioso que a saúde pública e que produz decisões contrárias ao governo, mas não decisões contrárias a essas leis. Há discussões, debates, mas não há número de votos suficiente nos tribunais superiores para mudar esse quadro.

O senhor diria que no Judiciário ainda falta massa crítica?

O Judiciário não usa esta expressão. Ela talvez possa ser substituída por controvérsia. Os advogados mais brilhantes em propriedade intelectual no Brasil migram normalmente para os laboratórios, e acabam convencendo os juízes de que no pavão o que vale é só o pé. As plumas, que seriam a principal vocação do pavão – dar ao mundo beleza e graça – não são reconhecidas. É como se nós tivéssemos uma visão segmentada da propriedade intelectual, que deixa de lado a visão econômica e social, as quais o juiz não poderia deixar de observar. A propriedade intelectual torna-se mais um fim em si mesma do que um meio de disseminação de conhecimento protegido.

Que mentalidade, hoje, preside as decisões judiciais brasileiras na área da propriedade intelectual?

O juiz, na sua preocupação de tratar do processo, ignora o mundo. Às vezes são 30, 40 decisões por dia e milhões de dólares em patentes que já estão em domínio público sendo revalidadas. A forma de fixar e condenar é muito mais simplificada, e com isso dificulta de toda maneira a possibilidade de acesso aos medicamentos.

A Escola de Magistratura pode contribuir para mudar a mentalidade desses juízes?

A Constituição da República obriga que a escola fique provocando esse debate acadêmico com o juiz, mas juiz é um agente público vocacionado para decidir. O que a escola tem a fazer é discutir em tese esses assuntos, mas não como uma universidade. Interessa não o teórico, mas sim o que seria a arte-ofício, o ensinar a fazer.

E a escola tem feito isso?

Não só na minha gestão, mas nas gestões anteriores. Porém, a escola é convidada também para participar de eventos promovidos pelos laboratórios, justamente aqueles que seriam para nós os destinatários desse exame criterioso de análise de conhecimento que tanto debate tem gerado. Eles têm levado à escola a preocupação em torno da remuneração das pesquisas e da preservação de direitos que estariam na Constituição. Por outro lado, nós também temos mostrado que o tribunal nunca deixou de proteger a propriedade intelectual no Brasil. Ao contrário, o Brasil é um país que sempre prestigiou a propriedade intelectual. Apenas deu o seu caminho, a sua versão. O que nós temos visto é que há uma fossa abissal separando esses dois mundos, dos laboratórios e dos críticos. A nossa intenção é que, de fato, o juiz não deixe de observar a realidade do País, a questão dos efeitos na saúde pública, e lembrar sempre ao juiz que um terço da população da África do Sul, um país em desenvolvimento como nós, hoje é portador do vírus HIV. O seu futuro está comprometido, com crescimento populacional negativo de 4,06% ao ano, com um milhão de órfãos. Foi um juiz que decidiu um dia que o coquetel contra o vírus HIV deveria ser entregue gratuitamente a alguém, e o governo agasalhou essa tese como política pública. Não estou pregando em hipótese alguma que o juiz faça política pública, mas por conta disso houve algum reconhecimento da vocação social do Estado brasileiro. A propriedade intelectual brasileira precisa ser protegida da própria propriedade intelectual, porque ela pode, na sua forma mais absoluta, ser abusiva e ir além do que deveria.

Qual a sua avaliação deste SIPID?

O Brasil é um país jovem, em desenvolvimento, mas acima de tudo vem se aperfeiçoando. Hoje, o estado atual dos debates é de uma grande polêmica. Na minha turma, eu sou voto vencido e as posições que venho defendendo são minoritárias. Mas, assim como um dia eu fui convencido, acredito que um dia meus pares bem saberão seguir aquela orientação que eu abracei.

André Fontes
André Fontes
Desembargador e diretor da Escola de Magistratura.
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