REVISTA FACTO
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Jul-Ago 2007 • ANO II • ISSN 2623-1177
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//Artigo

O sistema de patentes e o imperativo do desenvolvimento

Palco de intensas discussões sobre as diretrizes que devem orientar o sistema nacional de patentes – segurança jurídica para as empresas ou desenvolvimento nacional e interesse público – o II SIPID reuniu especialistas de diversos países, entre eles Austrália, China, Índia, Argentina, EUA e Inglaterra.

O II Seminário Internacional de Patentes, Inovação e Desenvolvimento (SIPID), realizado pela ABIFINA nos dias 5 e 6 de julho, começou de forma descontraída, com um pequeno equívoco cometido pelo mestre-de-cerimônias, que, referindo-se ao INPI, agradeceu a presença do Instituto Nacional de “Prosperidade” Industrial. O deslize não passou em branco e foi alvo de um bem-humorado comentário de Fernando Sandroni, presidente do Conselho Empresarial de Tecnologia da Firjan: “Realmente, quando imaginamos que o instituto se dedica à prosperidade, mais do que à propriedade, estamos na direção certa. É com extrema satisfação que vemos hoje o tema ‘Propriedade Intelectual-Prosperidade Intelectual’ colocado com tanta ênfase” – afirmou.

A abertura contou também com o presidente da ABIFINA, Luiz Guedes, que destacou a estreita ligação das questões envolvendo propriedade intelectual com a qualidade do desenvolvimento nacional. “As patentes são um assunto da maior relevância para a agenda de um país que quer se desenvolver e crescer de forma sustentável. A ABIFINA sempre discutiu essas questões com fatos concretos, dando suporte ao governo brasileiro no que diz respeito aos acordos internacionais e oferecendo seu conhecimento.”

Ampliando as flexibilidades do TRIPS

A primeira sessão, que teve como tema as flexibilidades existentes no acordo ADIPC e o impacto dos acordos bilaterais de comércio e investimento, foi moderada pela desembargadora federal da 2ª Região, Liliane Roriz. Ela revelou que a 2ª Região, composta pelos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, e mais precisamente a seção judiciária do Rio, é a única do Brasil com quatro varas especializadas em propriedade industrial, o que possibilita um rápido julgamento dos processos. “Todos nós sabemos da lentidão do Poder Judiciário brasileiro. Porém, a 2ª Região tem processos de propriedade industrial que entram e são julgados em segundo grau em menos de um ano, graças à especialização das varas” – disse. Essa agilidade é muito importante levando-se em conta que o Rio de Janeiro, sede do INPI, é a região que tem mais processos de propriedade industrial em julgamento.

O primeiro palestrante foi o professor de Direito Internacional Frederick Abbott, da Universidade da Flórida (EUA). Ele alertou para o fato de que as tradicionais patentes de processo estão dando origem a outras modalidades. Hoje há um novo conceito – o de uso, ou seja, patentes que cobrem o método de utilização de um produto – que evoluiu em alguns países, com particular importância no setor farmacêutico. Segundo Abbott, esses usos para os quais se solicita proteção patentária estão se estreitando cada vez mais e constantemente. “Atualmente, nos EUA ou na União Européia, os tribunais reconhecem patentes relativas a dosagens. Se, por exemplo, pensava-se que o ideal seria um paciente ingerir 100mg de um medicamento duas vezes ao dia, e hoje se descobriu que melhor seriam 50mg seis vezes ao dia, deposita-se uma patente para essa dosagem” – explica. “Da mesma forma, tínhamos uma patente para um pó que vira comprimido, mas hoje descobrimos uma formulação líquida eficaz que requer uma patente separada. Ou ainda, acreditava-se que um medicamento era mais útil para adultos mas agora se descobriu que também trata crianças. Pede-se então um depósito de patente para a faixa etária abaixo de 12 anos.” Por isso, um mesmo remédio pode chegar a ser coberto por até 50 patentes – as chamadas patentes múltiplas.

Outra questão levantada por Abbott foi a do mau aproveitamento pelos países da América Latina da ampla faixa de flexibilidade prevista no TRIPS. O melhor exemplo disso foi o Brasil, que introduziu precocemente a proteção de patentes para produtos farmacêuticos em 1996, embora pudesse esperar até 2005. E além disso o Brasil aderiu à modalidade pipeline, beneficiando empresas multinacionais que, pelos critérios do TRIPS, não conseguiriam registrar certas patentes. “O Brasil fez uma adaptação negativa, com enorme prejuízo para o setor farmacêutico nacional. Por outro lado, a Índia aproveitou o período transição de dez anos concedido por TRIPS e hoje possui uma das indústrias mais vibrantes do mundo” – comentou o professor.

Abbott destacou o caso “Novartis versus governo indiano” como um grande desafio em relação às flexibilidades do TRIPS. Em processo judicial, a Novartis denunciou que a cláusula 3-D da legislação indiana, que afirma que só as “inovações autênticas’ podem ser patenteadas, vai contra os acordos firmados na Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre o TRIPs. Amparadas nessa cláusula, as autoridades indianas se negaram em 2006 a conceder patente ao Glivec, um medicamento da Novartis contra leucemia, por considerá-lo apenas uma nova composição de substâncias já conhecidas. “A reivindicação da Novartis é questionável” – afirma o professor.

A palestrante Maristela Basso, professora de Direito Internacional da USP e pesquisadora-visitante em diversas universidades européias e norte-americanas, analisou a fundo as diretrizes do INPI para exame de patentes e nelas identificou o germe da tendência apontada pelo prof. Frederick Abbott com relação à ampliação do escopo das patentes. Basso focalizou especialmente a diretriz 1.4, que define dois tipos básicos de reivindicações de patentes: aquelas que se relacionam aos objetos (compostos, produtos, aparelhos, dispositivos etc.) e as que se relacionam às atividades (processos, usos, aplicações, métodos etc.) Ela alertou para o fato de que uma possível expansão da definição de reivindicação de processo pode gerar um problema. “Se examinarmos o artigos 42, incisos 1 e 2 da LPI, veremos que ele é mais restrito no seu escopo do que a diretriz 1.4, pois determina que a proteção investe o seu titular do poder de explorar industrial e comercialmente o produto ou o processo objeto da patente” – explica.

Para a professora, as diretrizes do INPI tendem a uma interpretação ampliativa da definição de processo, e “quando nós vamos um pouquinho além, estendemos o direito individual privado e limitamos o interesse público”. Ela conclui que as diretrizes estabelecem uma terceira categoria de reivindicação – as chamadas reivindicações de uso – e problematiza o critério brasileiro de conceder proteção patentária para os “novos usos” quando por isto se entende um “segundo uso médico” ou “novo uso subseqüente” de produto já conhecido como medicamento. “Como poderíamos lidar com o tema do segundo uso, que é tão dramático para a indústria farmacêutica internacional, e para nós também, de forma a não violar os acordos que temos no plano internacional? De que forma o examinador ou o juiz poderá examinar as patentes de segundo uso, no sentido de que, ao decidir, não estará violando nem a LPI nem o TRIPS?”

A própria palestrante responde: “Em primeiro lugar, ele (o examinador ou juiz) pode ter certeza de que o segundo uso ou novo uso médico de determinada invenção farmacêutica é uma mera descoberta; não é invenção, e portanto não seria patenteável.” Ela citou como exemplo que poderia respaldar o poder judiciário brasileiro nesta questão a decisão do Tribunal de Justiça Andino entendendo que a proteção de invenções relacionadas a novos usos é uma nova categoria de reivindicação e, portanto, está além do escopo obrigatório de proteção estabelecido por TRIPS.

Peter Drahos, diretor do Centro para Governança do Conhecimento e Desenvolvimento da Australian National University, sugere que os governos devem começar a pensar em novas abordagens e adotar uma perspectiva de gestão de riscos para conter os abusos de patentes. Ele acredita que o recurso a auditorias externas realizadas por cientistas, que têm uma compreensão mais clara do que é inovação, seria de extrema importância nesse sentido. “Existe um número enorme de patentes que não é examinado. Essas auditorias poderiam escolher um certo campo da tecnologia, por exemplo a nanotecnologia, selecionar algumas patentes naquela área e avaliar o seu nível de qualidade” – afirma.

Outra sugestão de Drahos é a criação de registros de transparência, a exemplo do que já existe na Austrália, para analisar a situação de patentes em cada área de tecnologia. As empresas seriam obrigadas a declarar que patentes detêm relativamente a certas áreas, e o conjunto dessas informações daria maior clareza ao cenário e uma noção do risco para a sociedade. Ele acrescentou, ainda, que é necessário melhorar os padrões de busca de patentes mundiais: “Deveria haver um ‘Google’ de patentes onde fosse possível acessar os textos completos junto com o mapa das patentes. No século 21, os escritórios de patentes terão que instituir sistemas de governança em rede aberta, pois somente assim conseguirão a informação que precisam para gerir o conhecimento” – finalizou.

A advogada Barbara Rosenberg, ex-diretora do Departamento de Proteção e Defesa Econômica da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, iniciou os debates comentando que, estranhamente, não há registro nos anais do Congresso Nacional de nenhum debate sobre as flexibilidades do TRIPS que expliquem o porquê da decisão do Brasil de abrir mão do prazo de transição. Ela indagou ao professor Abbott até que ponto as discussões sobre flexibilidade nos EUA influenciam as posições externas do país. Ele explicou que há um tratamento para a economia interna e outro, bem diferente, no plano internacional. “Quando lidamos com o Brasil, nosso objetivo seria maximizar a entrada de recursos para nosso país. Queremos captar dinheiro. Não temos interesse na saúde pública brasileira, nem no seu nível de desenvolvimento. O objetivo é mais comercial, mercantil. Já internamente, estamos estudando as reivindicações relacionadas a flexibilidades, pois não temos interesse em favorecer um setor industrial em detrimento de outro, ou a indústria acima dos consumidores, porque internamente tentamos dividir o bolo econômico.”

Peter Drahos comentou que, como os EUA têm uma economia de escala que outros países não têm, é possível moderar a influência dos direitos de propriedade intelectual de uma forma que outros países não conseguiriam. “O que vale para os EUA certamente não valerá para nenhum outro país do mundo. Portanto, os demais países terão que gerir a propriedade intelectual de forma diferente.”

O professor João Assafim, diretor do programa de Mestrado em Direito da Universidade Cândido Mendes, questionou se a flexibilidade pode ser um caminho efetivo para a inovação ou se dá origem apenas a empreendedorismos. Ele ressaltou que a flexibilização não pode comprometer a segurança jurídica do titular da patente, o que, em sua opinião, é fundamental tanto para os grandes quanto para os pequenos empreendedores. Já a intervenção de Marlon Weichert, procurador regional da República no estado de São Paulo, privilegiou o interesse público e o do consumidor. Em sintonia com o pensamento de Peter Drahos, ele levantou o tema da falta de transparência nas informações divulgadas pela indústria farmacêutica, em oposição à garantia do direito à saúde, especialmente num país em desenvolvimento como o Brasil.

Segundo Weichert, as políticas de medicamentos e de propriedade industrial devem receber os influxos de uma política de direitos humanos. Ele ponderou se não seria o caso de realizar auditorias que esclareçam ao público os riscos, os resultados e as despesas que a indústria farmacêutica tem com o desenvolvimento de seus produtos. “Há muitas formas de forçar a empresa a ser mais transparente e, se houver vontade política, isto é possível” – comentou. “Uma idéia com a qual eu concordo é que se uma empresa farmacêutica pede uma extensão de uma patente, ela deve divulgar números e explicar por que não teve lucro suficiente.” Maristela Basso complementou informando que não há nada em propriedade intelectual – incluindo legislação, políticas e diretrizes de exame – que possa ser interpretado de forma contrária à garantia dos direitos humanos. “Temos que encontrar uma solução conciliatória. Quem tem que defender a saúde pública, quem tem que garantir a vida das pessoas, é o Estado. Nós não vamos esperar isso da indústria farmacêutica, porque indústria farmacêutica é negócio”- afirmou.

As armadilhas da “harmonização” internacional

A segunda sessão do SIPID teve como tema “Harmonização Internacional: o Futuro do Tratado Substantivo da Lei de Patentes e suas implicações para os países em desenvolvimento”. O moderador Carlos Geyer, presidente da Alanac, deu início ao ciclo de palestras comentando que, se dez anos atrás fosse possível reunir um público tão expressivo e interessado, “certamente nós teríamos, hoje, uma legislação patentária muito mais favorável ao nosso desenvolvimento”. Ele reiterou o que diversos palestrantes comentaram antes: que o Brasil cometeu um erro, ao contrário de países como Argentina e Índia, não aproveitando as prerrogativas que a legislação internacional permitia. E acrescentou que esse erro não foi motivado apenas pela falta de informação, mas também por pressões políticas: “A indústria farmacêutica nacional jamais esteve omissa na luta por uma legislação mais adequada, mas setores como o coureiro-calçadista, extremamente forte no Brasil, ameaçados pelo governo norte-americano de retaliações comerciais, renderam-se e exerceram uma pressão brutal no Congresso contra as nossas reivindicações” – declarou.

Uma questão extremamente delicada foi abordada por Henrique Moraes, diplomata da Divisão de Propriedade Intelectual (Dipi) do Itamaraty: a harmonização internacional de patentes. De acordo com Moraes, a OMPI tem favorecido os interesses do primeiro mundo e a adoção do SPLT teria como conseqüências diminuir a margem de autonomia dos países para definir o que é novo, onde há atividade inventiva e os critérios de aplicação industrial. “A idéia seria diminuir ainda mais a margem de flexibilidade que os países em desenvolvimento gozavam com o TRIPS, mas com a aparente vantagem de tornar o sistema mais parecido em todo o mundo. A harmonização patentária é, na verdade, um tema de grande interesse dos países desenvolvidos” – disse. Em seus posicionamentos externos nas questões de propriedade intelectual o governo brasileiro tem sido cauteloso, mantendo um grupo interministerial – o Gipi – como coordenador e, de certa forma, legitimador dessas posições a partir das discussões e negociações que se processam internamente. A orientação atual do Gipi, segundo Henrique Moraes, é considerar o TRIPS como um teto de obrigações.

Uma voz dissonante durante o seminário foi a do presidente do INPI, Jorge Ávila, que declarou não fazer uma leitura negativa da evolução institucional do Brasil na área da propriedade intelectual e defendeu a harmonização de patentes. “Nós não devemos nos furtar a negociar os principais pontos da agenda da harmonização, porque, se temos a possibilidade de influir de alguma maneira no resultado, devemos usar essa oportunidade; sofrer as conseqüências, nós vamos sofrer de qualquer maneira” – declarou. Segundo ele, o Brasil só tem a perder com o atual sistema não-unificado. “Não tenho dúvida de que um sistema com patentes fracas, seja intencional ou não, produz um efeito de fechamento do mercado de tecnologia nos países desenvolvidos que adotam tal sistema, impedindo que concorrentes brasileiros participem com os seus produtos em mercados importantes” – afirmou.

Já a professora Margaret Chon, da Escola de Direito da Universidade de Seattle (EUA), acredita na possibilidade de se negociar um pacote reduzido que funcione para todos os países, mas conjugado a muita flexibilidade para dar espaço às necessidades e peculiaridades locais. Ela declarou ser necessária uma revisão crítica do conceito de desenvolvimento, sujeito a uma forte manipulação. “Não podemos confiar que a OMPI faça todo o trabalho, da mesma forma que não podemos confiar o galinheiro às raposas. Esse trabalho tem que ser feito por cada país e cada um de vocês também” – disse. Chon reforçou a idéia de que a propriedade intelectual deve ser vista como um instrumento, um meio para o desenvolvimento, e não um fim em si mesma. “O desenvolvimento humano, ou o desenvolvimento como liberdade, reconhece que as pessoas representam tanto o meio quanto o fim do desenvolvimento. O TRIPS é dinâmico, leva à ligação entre justiça social e comércio justo. Isso deve provocar debates sobre agricultura, educação e todos os outros aspectos importantes para o desenvolvimento” – concluiu.

A economista-chefe do South Centre (organização internacional sediada em Genebra), Xuan Li, elaborou uma interessante análise de como se deve buscar um nível ótimo de proteção à propriedade intelectual, que ao mesmo tempo promova o equilíbrio entre o nacional e o global, entre as empresas e os consumidores e entre o custo e o benefício para o país. Ela defende regimes flexíveis de proteção patentária. “Quando falamos sobre bem estar-social, temos que diferenciar entre o bem-estar nacional e o bem-estar global. Em termos de arcabouço institucional, nós não podemos transferir o bem- estar de um país para o outro. Cada governo é que vai determinar este limite de bem-estar social em seu país” – ponderou. A economista destacou que apesar de a Europa ser “especialista” em harmonização de leis de patentes, a União Européia não obteve êxito nesse processo, e que o SPLT é inconsistente com a teoria do nível ótimo de proteção à propriedade intelectual. Xuan Li citou a Suíça como exemplo de não-harmonização para determinar as suas políticas relativas à inovação. “A Suíça é um país muito dinâmico em termos de inovação biotecnológica. Mas o que é interessante é que em vez de aumentar o escopo da patente, ela estreitou o escopo de proteção. Em vez de ter uma proteção baseada em função, efetivou uma proteção baseada em produção local” – disse Li.

A segunda rodada de debates foi iniciada pela advogada da União em exercício na Anvisa, Ana Paula Jucá, que defendeu maior participação da sociedade nas questões de propriedade intelectual e exaltou a importância estratégica do Gipi. “É muito importante o acompanhamento, por parte de todos os setores envolvidos e interessados, das negociações internacionais que cercam o tema de propriedade intelectual. O que se vê é que, uma vez formado o arcabouço internacional, determinando as obrigações que o país assume, muitas vezes não nos resta espaço político de manobra para reverter perdas” – alerta, afirmando ainda que “é necessário reconhecer os diferentes níveis de desenvolvimento dos países e fugir das negociações one size fits all”.

Em seguida, o professor de Direito e pesquisador do Núcleo de Estudos em Propriedade Intelectual da UERJ, Denis Barbosa, criticou a postura “rentista” dos EUA e de outros países desenvolvidos em suas políticas externas de propriedade intelectual. Acompanhando o pensamento da maioria dos participantges, frisou que “a propriedade intelectual deve servir ao progresso”, e lembrou que até a Suprema Corte dos EUA, várias vezes declarou que “propriedade intelectual não é para enriquecer ninguém, é para servir a comunidade”. Barbosa lamentou o fato de o Brasil ter seguido o caminho inverso ao dos países emergentes que hoje se encontram em melhor situação econômica e tecnológica,”entregando TRIPS Plus antes de o TRIPS Plus existir”, e acrescentou, numa alusão à posição defendida pelo presidente interino do INPI, que nem todos os órgãos do governo parecem ter uma postura desenvolvimentista. O professor também chamou atenção para o tema da defesa da concorrência e os abusos anticompetitivos. “Se houvesse um CADE que reconhecesse o abuso de preços como abuso de poder econômico, o que ele nunca fez, nós não precisaríamos nem de licença compulsória. Está na hora de fazer o Cade participar desse debate” – completou.

O desembargador federal André Fontes, do TRF da 2ª Região, declarou que o problema fundamental da propriedade intelectual no Brasil é o fato de que as leis aplicadas hoje no Brasil não passam pelo Congresso antes de uma aferição fora do País. “Não há um debate normal, claro, legítimo, constitucional” – lamentou. “Por isso a patente, que deveria ser uma questão especulativa envolvendo aspectos técnicos, acaba sendo um problema normativo, uma extensão de interpretação de texto de outros países. Nós não temos no Brasil um exame crítico das patentes em relação à nossa Constituição. Aqui, a patente é protegida simplesmente por ser patente” – afirma o desembargador.

Encerrando o debate da segunda sessão do SIPID, e também claramente reagindo à posição assumida pelo presidente interino do INPI, o diplomata Henrique Moraes frisou que o Brasil não se nega a discutir os termos do pacote reduzido do SPLT, desde que os debates não se restrinjam a ele. “O que acontece com o que já existe no sistema internacional, que são as flexibilidades, as normas que protegem a concessão de patentes ou uso de patentes contra as práticas anticoncorrenciais? Isto deve ser incorporado também à pauta de negociações” – argumentou. Ele declarou, novamente respondendo a Jorge Ávila, que “discutir os rumos da propriedade intelectual não significa adotar uma posição ideológica, mas sim ampliar o debate para arejar e defender o País contra as ideologias que apontam para o one size fits all”.

Acesso a medicamentos na Agenda do Desenvolvimento

A terceira sessão do seminário abordou o tema “Desafio do desenvolvimento e do acesso a medicamentos essenciais – o futuro da agenda da OMPI”. O médico da Fiocruz, Carlos Morel, na qualidade de moderador, fez uma pequena introdução dividindo as doenças em globais e negligenciadas. Ele apontou três falhas que prejudicam o desenvolvimento e o acesso a medicamentos pelo mundo: falha de ciência (quando não se sabe fazer um medicamento), falha de mercado (quando os medicamentos existem, mas são de difícil acesso devido ao alto preço) e falha de saúde pública (quando a responsabilidade pela dificuldade de acesso da população ao medicamento é dos governos).

A falta de transparência dos custos de pesquisa farmacêuticos, antes abordada por Peter Drahos, foi novamente tema de discussão. O empresário Dilip Shah, secretário Geral da Indian Pharmaceutical Alliance, afirmou que nos anos 90, em cada dez pessoas envolvidas com pesquisas e desenvolvimento duas eram de apoio e oito eram cientistas. Hoje a situação seria inversa, com oito pessoas de suporte e dois cientistas, o que, segundo ele, gerou queda de produtividade das pesquisas e conseqüente aumento dos custos. Mostrando que a Índia, após alcançar o status de um grande player da indústria farmacêutica mundial, já assimilou o discurso dos laboratórios transnacionais, Shah atribuiu o problema ao impasse atual envolvendo a propriedade intelectual e afirmou: “Sem a proteção da propriedade intelectual, os investidores não farão seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento. E sem uma proteção nos países em desenvolvimento, as empresas não vão investir em novos medicamentos.”

Os principais mercados para medicamentos no mundo são o Japão, América do Norte e Europa, que, embora concentrem não mais que 18% da população do planeta, consomem 89% dos remédios. A partir dessa constatação, o governo indiano decidiu desenvolver sua indústria visando a exportação. “Atualmente a Índia possui uma indústria farmacêutica extremamente forte. No período de transição do TRIPS, empreendemos uma transformação agressiva na indústria farmacêutica, realizando fusões e aquisições, tornando-a mais ágil e desenvolvendo intensamente o parque de genéricos” – comentou Shah. O sucesso inovativo da indústria farmacêutica indiana foi resultado de um posicionamento ousado frente ao mercado externo, principal origem dos recursos para financiar a pesquisa: segundo o empresário, 90% dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento da indústria farmacêutica indiana vêm das exportações.

Dilip Shah ressaltou a importância da decisão do governo indiano, por meio de uma legislação inteligente, de proibir em 2005 – início do TRIPS – a entrada de patentes estrangeiras para os produtos que o país produzia, protegendo assim a sua indústria de genéricos. “Uma outra característica da lei de patentes indiana é não aceitar mudanças triviais nos produtos. Para se ter uma nova patente, só com a comprovação de que se trata de algo realmente novo e eficaz” – explicou.

Graham Dutfield, professor de Governança Internacional na Universidade de Leeds (Inglaterra), alinhando-se com as teses desenvolvimentistas e o interesse público, postulou que a concessão do privilégio da patente pelo Estado brasileiro deve ser limitada, de acordo com a lei e os compromissos internacionalmente assumidos, sempre que estiver afetando negativamente a capacidade do Estado de garantir o atendimento de necessidades públicas fundamentais como a saúde, a educação, a proteção do meio ambiente e a segurança nacional interna e externa.

Nessa mesma linha de raciocínio, o professor assinalou que o processo de harmonização de patentes está relacionado a interesses de determinadas nações, e não, como se  apregoa, ao fato de que o inventor deve ser recompensado com justiça pela sua invenção. “Se você for um país líder, vai querer uma harmonização com base na globalização ou na exportação de suas próprias normas. Os sistemas patentários bem projetados podem beneficiar as economias nacionais, assim como os de má qualidade podem prejudicar” – afirmou. Para ele, é muito fácil afirmar que foi feita uma avaliação de impacto e que a harmonização não vai afetar os países mais pobres. “A harmonização é perigosa para países em desenvolvimento. É como chutar o balde. E também poderia prejudicar a credibilidade do sistema de patentes como uma forma de motivar a inovação e o desenvolvimento industrial.”

Pedro Moniz de Paranaguá, professor de Direito da FGV, abordou as pressões, principalmente dos EUA, no sentido de obrigar os países em desenvolvimento a adequarem suas leis e políticas de propriedade intelectual para coincidir com os interesses industriais norte-americanos. Por outro lado, mostrou-se otimista quanto à reação da OMPI à evolução da Agenda do Desenvolvimento, vislumbrando como tendências que, na questão da propriedade intelectual, os bens educacionais e de saúde passem a ter tratamento diferenciado, o domínio público seja mais valorizado e as flexibilidades previstas no TRIPS constem efetivamente de qualquer futura negociação no âmbito multilateral. “A OMPI deve facilitar o acesso ao conhecimento. Deve haver consultas públicas antes de qualquer normatização e as questões de limitações e exceções, ou seja, o equilíbrio na propriedade intelectual, também deverão estar presentes nas negociações. A OMPI deve estar aberta a modelos colaborativos como software livre, projeto genoma humano etc.”

Mirta Levis, diretora executiva da Asociación Latinoamericana de Industrias Farmacéuticas (Alifar), levantou o tema da baixa qualidade de patentes. Segundo ela, esse é um fator que produz impacto negativo na sociedade por reforçar o monopólio sobre os produtos. “É necessário melhorar o sistema de patentes o mais rápido possível, concedendo licença apenas às inovações genuínas” – argumentou, afirmando que a baixa qualidade das patentes é um problema grave para a indústria farmacêutica latino-americana, na medida em que possibilitou nos últimos anos um aumento dramático no número de registros. “A melhoria da qualidade está ligada a definições de política industrial e política sanitária, e conseqüentemente é um trabalho que cada país em desenvolvimento deve fazer em seus respectivos escritórios.” Levis considera que seria produtivo tentar harmonizar os padrões patentários dentro da região e sugere que o Mercosul seria um bom canal para iniciar esse processo no setor farmacêutico.

Para a diretora da Alifar, o cenário da baixa qualidade de patentes fomenta o litígio, bloqueando a competição de empresas mais fracas e eliminando produtos competidores do mercado. Ela lembra que o custo dos litígios é um fardo pesado para as indústrias de países em desenvolvimento. “Esses recursos deveriam ser destinados ao desenvolvimento, à inovação, à transferência de tecnologia, e não ao litígio judicial, mas muitas vezes não resta nenhuma outra solução para defender o direito das indústrias menores de comercializar” – lamenta Levis. Por outro lado, ela afirma que, nesse cenário pouco promissor, as licenças compulsórias concedidas pelo Brasil e Argentina representam um sinal positivo do uso das flexibilidades do TRIPS.

A consultora de DST/AIDS do Ministério da Saúde, Juliana Vallini, analisou o conceito de patente sob a ótica do impacto no preço e no acesso aos medicamentos. Temas como a qualidade das patentes e o uso das flexibilidades do TRIPS devem ser tratados, segundo ela, com muita cautela. A mudança do conceito de novidade absoluta para novidade relativa, em discussão na OMPI, não é, na sua opinião, um aspecto interessante para os países em desenvolvimento. A questão do segundo uso, igualmente, “deve ser avaliada de uma maneira criteriosa, dentro dos limites legais, vislumbrando as necessidades de um país em desenvolvimento”. Ela citou o caso da licença compulsória do Efavirenz como exemplo do impacto que o recurso a um dispositivo de flexibilidade do TRIPS pode ter no acesso a um medicamento. “O Ministério da Saúde comprava o Efavirenz por US$ 1,15 na melhor das estimativas, e hoje ele sai por US$ 0,44. Isto gera uma economia anual de US$ 30 milhões e garante a viabilidade do programa DST/AIDS. Acho que é uma boa justificativa, até para os mais céticos, de como as flexibilidades são importantes para o sistema patentário nacional.”

O advogado e procurador do Distrito Federal ,Cícero Gontijo, completou salientando que ao assinar o acordo de patentes, em 1996, o Brasil prejudicou a sua indústria farmoquímica e perdeu a oportunidade de fabricar inúmeros genéricos. “A comparação entre o setor farmacêutico brasileiro e o indiano é um belo exemplo de como o monopólio das patentes tem impacto negativo nas empresas nacionais e nos consumidores” – concluiu.

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