REVISTA FACTO
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Mar-Abr 2007 • ANO I • ISSN 2623-1177
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//Setorial Saúde

A Biodiversidade e a indústria nacional

Relatórios oficiais recentes denunciando a perda de controle do governo brasileiro sobre a ocupação da Amazônia chocaram a opinião pública e desencadearam uma onda de protestos, acirrada pelo novo projeto de lei do Ministério do Meio Ambiente que prevê a privatização da gestão de florestas públicas. O interesse internacional explícito pela biodiversidade amazônica nunca foi tão temido. Mas o estamos fazendo para proteger de forma séria e efetiva não só a Amazônia como toda a nossa biodiversidade?

O Brasil tem sido festejado como um detentor de “megabiodiversidade”, integrando o reduzido grupo de países que concentram nada menos que 70% das reservas biológicas do planeta, ao lado da China, Índia, Indonésia, Malásia, Austrália, México, Colômbia, Equador, Peru, Zaire e Madagascar. E dentro desse grupo nossa posição é destacada, estimando-se que aqui se concentra aproximadamente 20% da biodiversidade conhecida. Na era do conhecimento isto representa uma imensa riqueza, que no entanto está gradualmente escapando das nossas mãos, e não só em conseqüência da “cobiça internacional”, mas principalmente pela passividade, ingenuidade ou romantismo que têm caracterizado as ações governamentais brasileiras nessa área.

O conceito de biodiversidade é relativamente recente – data da década de 80 do século 20 – e inclui não apenas a diversidade de material genético disponível num dado território, mas também a variedade de ecossistemas. Ou seja, contempla, além dos microorganismos e espécies vegetais e animais, toda a complexidade das interações entre eles. As florestas tropicais constituem ecossistemas geralmente ricos em biodiversidade, e esta é a principal razão pela qual o Brasil está entre os países mais destacados nessa área. Temos cerca de 200 mil espécies de plantas, animais e microorganismos já registrados, e estima-se que esse número possa chegar a um milhão e oitocentas mil espécies, distribuídas principalmente por seis biomas: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa.

Uma questão política e econômica

Hoje, biodiversidade é um tema estratégico do ponto de vista político e econômico. No âmbito geopolítico, o viés ambientalista comumente utilizado para se abordar o assunto constitui uma espécie de fachada ética para interesses econômicos de grande magnitude. Não é à toa que os clamores mais recentes pela internacionalização da Amazônia têm sido puxados pelos novos “profetas” do ambientalismo Al Gore, nos Estados Unidos, e Lamy Pascal, na Europa. O que está em jogo, por trás desses discursos “ecologicamente corretos”, é o enorme potencial da biodiversidade amazônica de gerar patentes, e conseqüentemente royalties.

A mais recente investida de Al Gore – o lançamento, com estardalhaço na mídia, do livro “Uma verdade inconveniente” e filme do mesmo nome sobre o efeito estufa e suas conseqüências danosas sobre a biodiversidade – tem sido ironizada até mesmo no meio acadêmico. Segundo artigo de Susana Dias publicado na revista eletrônica da SBPC, trata-se de “um filme-palestra repleto de clichês, tais como a idéia de que o aquecimento global é um problema moral e não político; a apresentação da ciência como conhecimento superior a outras formas de conhecimento, que nos oferecerá sempre as alternativas certas; o mito da natureza intocada; e a noção de consenso sobre o problema”. Segundo a autora, até os ambientalistas “atacaram a visão reducionista que o filme apresenta da complexidade sociopolítica da questão”.

O ex-comissário de comércio da União Européia e atual diretor-geral da OMC Pascal Lamy, é outro que tem demonstrado grande preocupação com os problemas da Amazônia. Dez dias após o assassinato da missionária Dorothy Stang, que lutava junto a comunidades da região por projetos de assentamento, Lamy propôs que as florestas tropicais fossem submetidas a “critérios de governança global”. Independentemente de quão dramáticas são as questões agrárias na Amazônia e da notória ineficácia do poder público na proteção das comunidades desfavorecidas contra o poder econômico predatório, o uso político do episódio foi flagrante. Lamy lançou mão, na verdade, de um mito muito apreciado no Primeiro Mundo, segundo o qual os países menos desenvolvidos necessitam de tutela por não saberem cuidar da sua gente nem dos seus recursos naturais.

Há cerca de dois anos, os países-membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) resolveram juntar forças para harmonizar suas legislações sobre propriedade intelectual, proteger recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais a eles associados, além de combater a biopirataria. Representantes do Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela definiram ações conjuntas, entre elas a de cooperar para impedir o registro indevido de nomes e expressões utilizadas por comunidades locais, muitos deles relacionados à biodiversidade da região e seus usos.

Seguindo o exemplo do Peru, que montou um banco de dados da sua biodiversidade e criou uma comissão para investigar registros indevidos nos escritórios de marcas e patentes do Primeiro Mundo, o ministério brasileiro do Meio Ambiente levantou denominações e usos conhecidos de cerca de 9 mil espécies animais e vegetais da Amazônia para compor um banco de dados semelhante, a ser disponibilizado pelo INPI para escritórios de propriedade intelectual de todo o mundo. Isto irá contribuir para evitar ocorrências como as do registro, recentemente anulado, da marca cupuaçu (árvore da mesma família do cacau e cuja semente é fonte de alimento na região amazônica) pelas empresas transnacionais Asahi Foods e Cupuaçu International. A mesma Asahi Foods perdeu há pouco tempo o registro do Cupulate, uma espécie de chocolate feito a partir de sementes do cupuaçu com tecnologia patenteada pela Embrapa.

Propriedade intelectual e biodiversidade

A Convenção sobre Diversidade Biológica, fruto da Cúpula realizada durante a Eco-92 no Rio de Janeiro, estabeleceu o princípio de que os benefícios da exploração econômica da biodiversidade devem ser compartilhados pelas comunidades locais, sobretudo no que tange ao uso dos seus conhecimentos tradicionais. Tal conceito, extremamente positivo do ponto de vista do desenvolvimento social, é de difícil implementação prática e ainda mais difícil articulação com os sistemas institucionalizados de propriedade intelectual. Países frágeis do ponto de vista da integração social e defasados em questões relacionadas à gestão da informação tendem a perder com ele.

A ministra Marina Silva tem afirmado que irá se empenhar na mudança da Lei de Patentes para “garantir retorno econômico às comunidades locais” dos lucros obtidos com as patentes que são registradas a partir de princípios ativos encontrados em nossa biodiversidade. Trata-se de um grande equívoco. Em primeiro lugar, “nossa biodiversidade” é nossa pela exuberância que manifesta naquela área, mas inúmeras variedades não são nativas – foram trazidas do Oriente e outras terras distantes. Como saber que o princípio ativo que deu origem à patente foi descoberto em planta oriunda da Amazônia?

O que tem valor indiscutível nessa questão é a informação sobre o uso, terapêutico ou de outra natureza, proporcionado pelas plantas e outras matérias vivas. Estima-se que 75% das drogas derivadas de plantas em utilização no mundo, movimentando algo em torno de US$ 40 bilhões, foram descobertas a partir de informações das comunidades leigas. Isto se chama “conhecimento tradicional associado ao material genético”, que pode e deve contar com mecanismos de proteção, mas não, certamente, como patente industrial.

A conexão entre biodiversidade e patentes é complexa, porque remete a diferenças radicais entre países quanto à concepção da propriedade intelectual. O Brasil pertence ao grupo daqueles que consideram ilegítimo patentear a vida. Enquanto nos EUA, por exemplo, um cientista pode extrair substância de uma planta, submetê-la a processo químico, isolar um componente e patenteá-lo, a legislação brasileira não permite patentear micro-organismos que ocorram livremente na natureza. Por outro lado, existe uma forte e permanente pressão do Primeiro Mundo por um sistema de patentes globais, o que nos colocaria em situação extremamente vulnerável na área da biodiversidade.

Segundo o embaixador e ex-presidente do INPI Roberto Jaguaribe, o Brasil não se furta a discutir harmonização internacional de patentes, mas é importante impormos condições para um engajamento nesse processo. “Os Estados Unidos querem trabalhar em temas muito técnicos, como critérios de novidade e hiato inventivo, enquanto o Brasil quer tratar de favorecer a capacitação de sua indústria e o acesso do seu povo a medicamentos, além de incluir na discussão a biodiversidade e o conhecimento tradicional”. Na sua opinião, patentes não podem constituir um fator impeditivo a políticas públicas, sobretudo em setores socialmente sensíveis como a saúde.

Jaguaribe assinalou que, para o Brasil, é importante a elaboração de uma legislação contendo mecanismos que venham a incentivar a prospecção da biodiversidade, mediante a definição de regras claras em relação à coleta dos bens da natureza e à atribuição de competência e autorização para realizá-la, como também mediante a perspectiva do uso tecnológico e industrial que está sempre no horizonte dessas pesquisas.

Políticas públicas brasileira

No Brasil, o patrimônio genético é protegido pela Medida Provisória nº 2.186, de 2001, que reconhece o direito das comunidades indígenas e locais de decidirem sobre o uso de seu conhecimento associado aos recursos genéticos e prevê a repartição de benefícios, quando houver comercialização. Para o embaixador Roberto Jaguaribe, esse instrumento é inadequado. “Medidas restritas apenas à defesa do patrimônio genético são contraproducentes e a fiscalização é complicada”, ele afirma. “O melhor mecanismo de proteção da propriedade intelectual é a capacitação científica e tecnológica do País.”

A regulamentação recente dessa matéria parece refletir a inadequação. O governo ora flexibiliza as restrições, permitindo o acesso de pesquisadores ao patrimônio genético protegido, que até então era vedado pela legislação; ora cria novas barreiras às atividades de prospecção que, a pretexto de coibir a biopirataria, apenas adensam a malha burocrática que cerca as atividades de pesquisa.

As políticas governamentais mais recentes para questões relacionadas à biodiversidade estão consubstanciadas no substitutivo ao Projeto de Lei nº 4.776/2005, que trata da gestão de florestas públicas; e nos Decretos Presidenciais nº 5.813, de 22/06/06, e nº 6.041, de 08/02/07, que instituem respectivamente a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e a Política Nacional de Desenvolvimento da Biotecnologia.

O substitutivo do governo para a Lei da Gestão de Florestas tem causado polêmica, por abrir a possibilidade da gestão privada por meio de concessões. Opositores afirmam que este é o primeiro passo para a internacionalização da Amazônia, enquanto o Ministério do Meio Ambiente argumenta que é a única maneira de preservar nossas florestas e garantir seu manejo sustentável. Alguns princípios estabelecidos por essa política são a prioridade para comunidades locais, sob forma de concessão de uso ou criação de reservas extrativistas – neste caso sem ônus para os beneficiários; a vedação da outorga aos concessionários de direitos relacionados a titularidade imobiliária, bioprospecção, exploração de recursos hídricos e minerais e comercialização de créditos de carbono; e incentivos ao beneficiamento local dos produtos florestais.

A Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, lançada em junho do ano passado, por enquanto não passa de uma declaração de intenções. Para traduzi-la num plano de ação, o Ministério da Saúde criou grupos de trabalho envolvendo dez ministérios, além da Anvisa e da Fiocruz. Em linhas gerais, a idéia é incorporar medicamentos fitoterápicos aos programas públicos de saúde através do SUS. Segundo Poliana Botelho, vice-presidente do Laboratório Simões, tradicional fabricante nacional de fitoterápicos, é positivo o governo federal demonstrar interesse no desenvolvimento desse segmento, mas se faz necessário e urgente um elenco de ações concretas, pois a atual regulamentação da Anvisa constitui uma ameaça à sobrevivência da indústria nacional de fitoterápicos, constituída principalmente por pequenas e médias empresas.

O problema maior está no critério para a realização de testes. Embora reconheça a importância do controle de qualidade dos medicamentos, Poliana pondera que os fitoterápicos mais antigos já foram suficientemente testados pelo consumidor, o que deveria ser levado em consideração pela Anvisa. “Se nosso segmento for obrigado a realizar os testes extremamente onerosos que são exigidos para medicamentos alopáticos recentes, muitos produtos consagrados pelo uso tradicional acabarão saindo do mercado porque os fabricantes não têm condições de arcar com esse custo”. Em sua opinião, a nova política deve buscar uma solução para esse problema, seja flexibilizando as exigências seja subsidiando os testes, porque “o fitoterápico é geralmente mais barato, produz menos efeitos coletarais e é tão eficiente quanto o medicamento alopático”. Na prática, as ervas medicinais mais conhecidas e seus produtos constituem uma forma de conhecimento tradicional, desvinculado de comunidades locais mas profundamente enraizado no domínio público.

Os avanços ocorridos nas últimas décadas na biotecnologia e na engenharia genética abriram um novo horizonte de possibilidades para a exploração em escala industrial das substâncias, princípios ativos e, principalmente, informações genéticas contidas nos organismos vivos. Essas atividades já movimentam bilhões de dólares anualmente ao redor do mundo e podem ser de grande importância para o desenvolvimento econômico e social dos países detentores de megabiodiversidade, como o Brasil. Mas isto vai depender do que fizermos para preservar nossa biodiversidade, para gerir e ampliar o conhecimento e o acesso a ela, e para explorar de forma sustentável os seus produtos.

Para posicionar estrategicamente o Brasil nesse mercado o governo anunciou em fevereiro deste ano uma Política Nacional de Desenvolvimento da Biotecnologia. Embora seja cedo para se criticar a eficácia desse instrumento, a versão apresentada peca por um velho e conhecido equívoco: subestimar a experiência do parque industrial existente no País e sua capacidade de atualizar-se tecnologicamente, e acreditar que a comunidade acadêmica tem condições de liderar o desenvolvimento nessa área; ou pior, que ela poderá gerar um novo conjunto de empresas de base tecnológica capaz de fazer frente a este imenso desafio. Focado nos ICTs (Institutos de Ciência e Tecnologia), o decreto presidencial confere a eles uma posição de superioridade na cadeia mercadológica: “urge criar as condições e o ambiente adequado à geração de negócios a partir do conhecimento científico acumulado nas ICTs nacionais, a absorção deste conhecimento pelas indústrias destinatárias dessa tecnologia e a maior integração destes atores na comunidade biotecnológica internacional”.

A dura realidade

Enquanto os países ricos articulam inteligentemente a presença na Amazônia de suas ONGs ambientalistas e evangelizadoras, sucedem-se freqüentes episódios de biopirataria (coleta e transporte não autorizados de material biológico) geralmente protagonizados por estrangeiros. As comunidades indígenas que abrigam esses estrangeiros, em sua maioria desassistidas pelo Estado e inteiramente indiferentes a essas irregularidades, freqüentemente negociam benefícios materiais imediatos em troca facilidades relacionadas à bioprospecção. Nessas circunstâncias, é de se estranhar que o Ministério do Meio Ambiente entregue a bem-intencionados porém politicamente despreparados cientistas a tarefa de planejar o “uso do conhecimento tradicional e das reservas de nossa biodiversidade em favor das comunidades locais”.

Não se trata de uma opinião isolada. Em artigo publicado na Folha de São Paulo em 19.02.07, sob o título A perda da Amazônia, o sociólogo Hélio Jaguaribe afirma: “Enquanto a Igreja Católica atua como ingênua protetora dos indígenas, facilitando, indiretamente, indesejáveis penetrações estrangeiras, igrejas protestantes, nas quais pastores improvisados são, concomitantemente, empresários por conta própria ou a serviço de grandes companhias, atuam diretamente com finalidades mercantis e propósitos alienantes. O objetivo que se tem em vista é o de criar condições para a formação de ‘nações indígenas’ e proclamar, subseqüentemente, sua independência -com o apoio americano”.

Como se isto não bastasse, a criação de uma impenetrável malha burocrática formada pelo Ibama, Incra e Funai inviabiliza na prática o desenvolvimento de qualquer projeto sério visando o aproveitamento da biodiversidade amazônica pela indústria nacional. Trata-se do velho sistema de “criar dificuldades para vender facilidades”. Diversas empresas brasileiras enfrentaram, e ainda enfrentam, barreiras intransponíveis para realizar pesquisas com material biológico na região. Esse fato é agravado pela já referida distorção da mentalidade pública brasileira no que tange à articulação entre ciência e tecnologia. A comunidade científica continua sendo encarada pelo governo, em princípio, como um explorador mais idôneo das reservas de biodiversidade – e aquele que, por um passe de mágica, abrirá as portas para o desenvolvimento tecnológico nessa área.

Mas as coisas não acontecem assim. A descoberta científica pode ou não resultar em tecnologia – vale dizer, patentes – dependendo das demandas do mercado. Além disso, temos ainda um imenso gap de conhecimento sobre a Amazônia – e de modo geral sobre a biodiversidade brasileira – que deveria ser objeto prioritário do trabalho acadêmico. Se os caminhos da pesquisa exploratória e tecnológica não forem abertos às empresas – com todos os cuidados no sentido da preservação ambiental, obviamente – é bem possível que não possamos no futuro nos beneficiar desse conhecimento.

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