O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), recentemente lançado pela Presidência da República, traz como um de seus objetivos fundamentais a remoção de obstáculos (burocráticos, administrativos, normativos, jurídicos e legislativos) ao crescimento. Nada mais atual e premente do que o trato direto e efetivo dessa matéria.
Uma das características das administrações governamentais brasileiras mais recentes, em seus três níveis, tem sido a perda de capacidade de “fazer acontecer”, isto é, de transformar diagnósticos em projetos, projetos em ações e ações em resultados. Diagnósticos não faltam, temos para tudo e para todos os gostos, calhamaços enormes que apontam para todos os males, todas as mazelas, todas as fraquezas, todas as necessidades de nosso País e mais, que estão repletos de objetivos e estratégias gerais para superá-los. A dificuldade tem sido traduzir tais objetivos e estratégias em projetos concretos e, mais que isto, executá-los, que a velha e boa teoria ensina que o planejamento só se concretiza na ação. Se não houver a ação, o planejamento não passa de uma manifestação de intenções, retórica só, incapaz de transformar a realidade.
É claro que a dificuldade gerencial no setor público não é nova, ela tem raízes estruturais, antigas e profundas. O administrador de uma empresa privada pode fazer o que achar mais conveniente para o alcance de seus objetivos desde que a lei não o proíba e, portanto, resguardados os limites legais pode exercer plenamente sua capacidade de inovar, aproveitar ao máximo o seu talento pessoal na busca de seus objetivos. O administrador público, ao contrário, só pode fazer o que a lei expressamente o autoriza e por lei se entenda leis, decretos, portarias, instruções normativas, avisos etc. Uma parafernália regulatória que, infelizmente, não pára de crescer, engessando a gestão.
A regulação legal constitui para o administrador privado limites extremos para sua ação, o que não lhe é vedado e o que ele é obrigado a fazer – base sobre a qual vai assentar sua capacitação. A avaliação de seu desempenho é sempre feita a posteriori, à luz dos resultados que alcançou. Para o administrador público a regulação é o limite máximo para sua ação, ele não pode excedê-la, contornála. Mesmo que tenha uma idéia melhor, uma maneira mais eficiente de atuar para alcançar seus objetivos ele se vê cerceado em suas ações se não tiver cobertura legal fixada a priori.
A eficácia e a eficiência da administração pública brasileira vêm sendo, pois, determinadas por quem escreve as regras. O administrador público receberá uma avaliação favorável de seu desempenho se cumpri-las estritamente, mesmo que, seguindo-as, não venha a alcançar os objetivos desejados. Para iniciar qualquer ação deverá obter, de antemão, a aprovação dos procuradores que atestarão o compromisso com as regras – na hipótese de qualquer desvio, ao final, ele terá de enfrentar a ira das auditorias, qualquer que seja o resultado alcançado em sua atividade. O resultado dessa rotina não pode ser outro senão a mesmice, a mediocridade, a estagnação.
O formalismo legal, e não o alcance dos objetivos fixados, constitui o padrão de julgamento do administrador público fenômeno que, diga-se a bem da verdade, não afeta apenas a administração pública direta, mas também grandes organizações, públicas ou privadas, que tendem a se burocratizar e passam, em maior ou menor grau, a sofrer do mesmo mal.
O que aconteceu de inovador nesse cenário é que na empresa privada ocorreu uma grande reação, expressa pela administração por resultados, divisão das companhias por unidades de negócios etc. e tal. A teoria da administração renovou-se para contornar o problema da perda de eficiência trazido pela organização burocrática e a avaliação da atuação do gerente tornou-se um foco essencial neste processo: o objetivo da administração passou a ser não manter imutável a regra burocrática existente, mas sim continuamente renová-la a partir das novas idéias geradas pela atuação de gerentes eficazes.
A questão das compras governamentais é bem ilustrativa da burocracia que asfixia o gestor público. Na esteira dos escândalos da era Collor, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Licitações Públicas (nº 8.666) com vistas a padronizar o processo de aquisições, evitar a corrupção e obter melhores preços. Embora a intenção fosse boa, a falta de flexibilidade gerencial embutida nesse novo texto legal comprometeu severamente os resultados perseguidos pela medida. Os procedimentos passaram a ser os mesmos para se comprar materiais de escritório, insumos bioquímicos para pesquisa, aparelhos científicos e assim por diante, como se exatamente os mesmos métodos e critérios gerenciais pudessem pautar a administração de uma repartição burocrática, de uma universidade, de um laboratório produtor de medicamentos ou de um centro de pesquisa. Em decorrência dessa impropriedade conceitual interpretada na lei, até mesmo o objetivo de se alcançar melhores preços resultou em fracasso administrativo, fato que levou o governo a editar lei dos Pregões (nº 10.520) que, sem sombra de dúvida, trouxe algum progresso nos processos visando a aquisição de insumos e materiais padronizados – que permitem uma comparação essencialmente focada em preços, mas essa nova medida legal não alcançou a questão da diversidade de objetivos em todo o espectro da administração pública.
Assim sendo, grandes empresas estatais como a Petrobras e a Eletrobras, devido ao seu significado econômico e político, através de contratos de gestão especialmente desenhados para elas, passaram a utilizar a Lei de Licitações numa leitura adequada às suas necessidades específicas, desta forma somente adquirindo produtos ou serviços oferecidos por fornecedores credenciados, que têm suas instalações por elas auditadas e periodicamente fiscalizadas, em muitos casos até mesmo sendo exigido que tais fornecedores tenham suas unidades produtivas localizadas no Brasil, para tornar efetiva a rastreabilidade dos processos produtivos por parte da empresa estatal brasileira. Infelizmente tal prática não se disseminou para os laboratórios públicos da administração direta ou fundações que fabricam medicamentos para atender programas sociais no País. Tais órgãos encontram enormes dificuldades para utilizar efetivos critérios de qualidade e eficiência, do que decorre na prática serem forçados a se valer apenas do critério de preços como julgamento de valor em seus processos de aquisição de matériasprimas. Esse fato tem direcionado as compras públicas de fármacos e medicamentos para produtos de qualidade inferior à
desejada, freqüentemente necessitando de purificações para sua utilização, com perda de tempo na produção e requerendo gastos não previstos orçamentariamente que superam os ganhos financeiros auferidos pelos leilões.
Nesses pregões eletrônicos os laboratórios oficiais simplesmente cotejam preços de fármacos ou medicamentos que são ofertados por fornecedores – fabricantes ou revendedores, sem qualquer cuidado com a isonomia das propostas recebidas e que, supostamente, deveriam atender uma determinada especificação. Na prática geralmente ocorre que o menor preço oferecido refere-se a um produto asiático – normalmente de origem chinesa obtido através de um catado realizado por algum broker internacional entre vários fabricantes asiáticos, do que resulta partidas de produtos com as mais distintas qualidades possíveis numa mesma entrega. Em decorrência desse fato, uma amostra aleatória apresentada desse produto poderá ser aprovada num teste laboratorial atendendo aquela especificação técnica requerida, mas devido às diferentes origens das matérias-primas usadas em sua fabricação, não ocorre uma repetitibilidade de suas características, o que se comprova pela rejeição, em média, de 30% de tudo o que é adquirido em tais leilões. Esse valor, acrescido das perdas de produtividade no laboratório público que manipula tais produtos, normalmente atinge um patamar que supera em muito a diferença de preços entre os primeiros colocados no leilão. Tratam-se de fatos reconhecidos pelos dirigentes de tais laboratórios oficiais os quais, no entanto, consideram-se impossibilitados de gerir a coisa pública com racionalidade, de uma forma mais eficaz e competente, devido à inflexibilidade na interpretação da Lei de Licitações por parte dos Tribunais de Contas e do Ministério Público. O setor público ainda está à espera de soluções criativas, de um sopro de modernização que recupere sua eficiência. Tentativas com sucesso já ocorreram no passado: o presidente Juscelino, para realizar os seus cinqüenta anos em cinco, tratou de contornar a inércia burocrática da organização estatal que encontrou através da criação dos famosos, e em grande parte eficientes, Grupos Executivos – Geiquim, Geipot, Geicam etc. Os governos militares foram pródigos em criar programas especiais, dotados de orçamentos próprios e forte autoridade executiva para solucionar problemas específicos. Mesmo recentemente, após o acirramento dos controles burocráticos da era Bresser, houve tentativas de melhorar a eficiência da gestão pública, como o programa “Avança Brasil” instituído na gestão FHC que, infelizmente, não teve força suficiente para vencer a associação perversa da burocracia acomodada com a ortodoxia financeira, prevalente a partir de 1994.
Em seu discurso de posse do segundo mandato, o presidente Lula lançou um raio de esperança sobre esta questão ao falar na necessidade de ousadia e criatividade para governar. Se não é tudo, é certamente boa parte do que o Brasil precisa – um pouco menos de diagnóstico e um pouco mais de ação, um pouco menos de formalismo e um pouco mais de iniciativa inovadora, um pouco menos de burocracia e um pouco mais de gestão criativa.