REVISTA FACTO
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Jan-Fev 2007 • ANO I • ISSN 2623-1177
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//Setorial Saúde

Medicamentos essenciais: uma questão de saúde pública

“… são aqueles que servem para satisfazer às necessidades de atenção à saúde da maioria da população. São selecionados de acordo com a sua relevância na saúde pública, evidência sobre a eficácia e a segurança e os estudos comparativos de custo-efetividade. Devem estar disponíveis em todo momento, nas quantidades adequadas, nas formas farmacêuticas requeridas e a preços que os indivíduos e a comunidade possam pagar” (definição de medicamentos essenciais, OMS, 2004).

Em dezembro de 1997, o então presidente da África do Sul, Nelson Mandela, diante da enormidade da tragédia social enfrentada por seu país – assolado pela Aids e incapaz financeiramente de prover medicamentos para todos -, promulgou uma legislação que autorizava o Ministério da Saúde a emitir licenças compulsórias para a fabricação de versões genéricas dos medicamentos anti-retrovirais, além de permitir a importação paralela dos mesmos. Imediatamente, as grandes companhias farmacêuticas, através da PhRMA (Pharmaceutical Research and Manufacturers of America), encetaram uma violenta campanha contra as medidas tomadas pelo governo sul-africano. Respondendo aos apelos da associação, o governo dos EUA impôs fortes sanções comerciais contra o país, excluindo-o de seu sistema de preferências tarifárias.

Em todo o mundo, porém, a posição da África do Sul veio a suscitar um amplo movimento de apoio – não só com manifestações e protestos, mas também com ações efetivas para a produção de anti-retrovirais a preços mais razoáveis -, e o país acabou vencendo aquela batalha contra o privilégio absoluto das patentes, pavimentando o caminho que conduziu à Declaração de Doha. Nesta declaração – um manifesto em favor do direito à vida -, sustenta-se o compromisso de que TRIPs deve ser interpretado e implementado dentro de limites suportáveis pelos membros da OMC, de maneira a proteger a saúde pública e promover o acesso aos medicamentos para todos. Entretanto, a questão de como disponibilizar medicamentos para a população mundial, que constitui, afinal de contas, um dos objetivos básicos dos ministérios da saúde, não foi ainda solucionada, e até hoje permanece como um desafio.

Construindo a saúde pública

Na década de 70 a OMS criou o conceito de “medicamentos essenciais” – aqueles referentes a doenças que atinjam parcelas significativas de uma população, como Aids, malária, esquistossomose e tuberculose, entre outras – e desenvolveu uma metodologia para a formulação de políticas nacionais de saúde. O Brasil foi um dos primeiros a adotar essas diretrizes, criando um programa ainda nos anos 70 que incluía rotinas de prevenção e cura. Na Constituição de 88, inserimos o conceito de que saúde é um direito de todos e um dever do Estado, dando origem ao SUS e garantindo, ao menos teoricamente, o acesso universal e gratuito a serviços públicos e a medicamentos essenciais. Fomos pioneiros em vacina obrigatória e chegamos a ter uma política de produção nacional de medicamentos, mas esta foi extinta nos anos 90 quando da abertura inconseqüente do mercado brasileiro às importações. Ao longo das últimas décadas, angariamos o respeito da OMS pelo conhecimento em doenças tropicais (temos centros de excelência e alguns dos melhores programas de saúde do mundo) e prestamos consultoria nessa área para outros países em desenvolvimento.

Apesar de o Brasil ter boa compreensão da questão da saúde pública do ponto de vista do aparato conceitual (o papel da vigilância epidemiológica, da prevenção etc.), há questões práticas ainda bastante problemáticas: é preciso que haja disponibilidade de medicamentos em quantidade e preço para que o sistema possa atender a população, e isto não está garantido. Segundo um estudo do Ministério da Saúde orientado pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a área de medicamentos no Brasil tem sofrido substanciais modificações nos últimos anos. A PNM (Política Nacional de Medicamentos) e a PNAF (Política Nacional de Assistência Farmacêutica) representam importantes referenciais para a reorientação do setor, destacando-se por uma maior regulação da área de medicamentos e uma reorientação da assistência farmacêutica.

No entanto, apesar dos recentes esforços no âmbito do Ministério da Saúde e de a atual política industrial e tecnológica (lançada no primeiro governo Lula) ter escolhido o setor de medicamentos como uma de suas quatro prioridades, alguns programas nacionais de saúde pública vêm enfrentando problemas crônicos no suprimento de medicamentos, em virtude da má qualidade ou da inadequação dos fármacos adquiridos em pregões internacionais, da prática de preços abusivos por parte de detentores de patentes em alguns casos específicos e da falta de determinados insumos (fármacos ou intermediários que, por não estarem interessando aos grandes laboratórios internacionais, deixaram de ser fabricados). Tornou-se claro, assim, que a reativação da indústria farmoquímica nacional, com o apoio do governo – ou, no mínimo, a produção local de fármacos, incluídas aí as multinacionais que queiram fixar unidades fabris no Brasil -, é indispensável para garantir a sustentabilidade dos nossos programas de saúde pública.

O desmonte da indústria

Até o início da década de 90, a maioria dos medicamentos oferecidos no mercado interno eram fabricados no País, sendo uma boa parte deles a partir de fármacos de origem também local. Com a política de abertura iniciada em 1989 e perseguida vigorosamente entre 1994 e 99, o ambiente macroeconômico para a produção local foi violentamente alterado e o setor de saúde como um todo passou rapidamente a gerar expressivos déficits na balança comercial. Passamos a importar de tudo, inclusive produtos que tradicionalmente eram fabricados localmente, o que resultou em fechamento de fábricas, paralisação de linhas inteiras de produção e perda de empregos. Resultado: nesta primeira década do terceiro milênio o déficit da balança comercial do setor farmacêutico, computados produtos acabados, princípios ativos e matérias-primas, tem beirado os 2 bilhões de dólares anuais, o que representa não só fragilidade nas contas externas como também um risco para os programas de saúde pública.

O recente encontro do Fórum Econômico Mundial em Davos mostrou que o primeiro mundo está se rendendo ao sucesso dos países asiáticos que não rezaram pela sua cartilha de política industrial. Coréia, Índia e China, nações que optaram por estratégias de desenvolvimento e globalização autônomas e firmemente conduzidas pelo Estado, foram desta vez cortejadas pelas grandes potências, porque demonstraram da maneira mais cabal e irrefutável – ou seja, com resultados concretos – que o melhor caminho para o desenvolvimento sustentado é aliar as vantagens da economia de mercado com políticas públicas realistas e consistentes. Foi essa receita que tornou a Índia e a China, nos últimos anos, grandes players da indústria mundial de fármacos e medicamentos para programas públicos.

No contexto atual das políticas industriais, como bem mostra o modelo asiático, é imprescindível para o desenvolvimento de um país que haja alocações eficientes de recursos e crédito de forma a atender prioridades estratégicas de Estado, visando acelerar o processo de industrialização e alcançar uma forte presença do país no comércio internacional. Distintamente do laissez-faire revivido e divulgado pelos neoliberais dos anos 90, no desenvolvimento econômico do Leste asiático o Estado teve uma participação decisiva. Na Coréia – país que, embora não se destaque na produção de fármacos, implementou uma das políticas industriais mais bem-sucedidas dos últimos vinte anos – o governo exerceu uma efetiva e saudável parceria com empresas locais, constituindo parte integrante do sistema produtivo interno e convivendo com o setor privado em mercado aberto e plenamente competitivo internacionalmente.

Para o sucesso de um modelo semelhante no Brasil, algumas mudanças estruturais e de atitudes seriam indispensáveis, tais como a definição de um planejamento estratégico de Estado que não se restrinja a um único governo, direcionado ao desenvolvimento de unidades produtivas locais para atender objetivos estratégicos; quadros e gerenciamento públicos tão competentes quanto os do setor privado; e sólida vontade política dos governos para sustentar os programas concebidos. São necessárias ainda algumas alterações na política tributária e uma política inteligente de compras governamentais, além da internalização da fabricação de princípios ativos e dos intermediários de síntese mais relevantes para a produção de medicamentos essenciais – isto é, um certo grau de verticalização na produção desses medicamentos.

Segundo Eduardo Costa, diretor do laboratório público Farmanguinhos, o melhor caminho para se alcançar um grau ótimo de verticalização é estabelecer parcerias público-privadas de desenvolvimento industrial e tecnológico no setor de medicamentos essenciais, envolvendo aquisições de médio prazo – quatro a cinco anos – contratadas com um consórcio de empresas nacionais. Ele diz que o caminho a seguir é claro: “é preciso selecionar os fornecedores e pensar a cadeia completa de suprimentos. Só a compra sustentada vai garantir aos programas do Ministério da Saúde estabilidade no fornecimento, qualidade e, a médio prazo, redução de preço”.

Quanto à capacidade do Brasil de suportar uma grande indústria farmacêutica local, parece que há consenso de que a possuímos até entre os especialistas internacionais. Um relatório preparado para o Banco Mundial analisando o papel da indústria farmacêutica nos países em desenvolvimento conclui que, dadas a economia de escala e as necessidades tecnológicas requeridas para a indústria de medicamentos, optar pela produção local não faria sentido para a maioria deles. Isto porque, segundo a lógica econômica, investimentos em produção local de medicamentos só seriam eficientes se estes pudessem sair mais baratos do que os importados. Essa visão, puramente mercadológica, não leva em conta a importância social e estratégica do setor. De uma forma ou de outra, tanto no relatório do Banco Mundial como na opinião mais recente apresentada pelo consultor Kamal Saggi, em relatório para o International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD), entre os países em desenvolvimento alguns têm condições, sim, de sustentar uma produção local eficiente: aqueles com grandes mercados internos e capacidade para produzir Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), como Brasil, China, Índia, Tailândia, Egito, México e Argentina.

Analisando a cadeia de suprimentos

O Brasil já dispõe de uma rede de laboratórios oficiais que supre a demanda de medicamentos essenciais prontos para consumo. O problema é que essa produção depende do fornecimento regular e seguro de fármacos, e é justamente neste elo da cadeia que se concentram as fragilidades. Apesar de termos competência na área, por falta de incentivos a indústria farmoquímica nacional foi sucateada: no passado contou com quase 100 empresas, mas hoje não reúne mais do que meia dúzia de sobreviventes da irresponsável abertura comercial empreendida no governo Collor. Com alguns estímulos – basicamente a preferência (ou no mínimo garantia de isonomia) nas compras governamentais, já que o Estado constitui 25% do mercado – pode-se trazer de volta ao segmento farmoquímico uma parcela das indústrias que o abandonaram na década de 90.

Para assegurar o fornecimento dos fármacos necessários à fabricação de medicamentos essenciais para a saúde pública, as indústrias farmoquímicas em atividade afirmam não necessitar de nada além do básico: encomendas regulares. Para isso, é preciso libertar os laboratórios oficiais do regime de pregões internacionais decididos na base do menor preço, pois nele sempre levarão a melhor os fornecedores chineses e indianos (que contam com incentivos dos respectivos governos). Por outro lado, como em qualquer outro setor industrial, os fabricantes de fármacos só se disporão a investir na ampliação de suas instalações e a praticar preços reduzidos se puderem contar com contratos de longo prazo.

Caberia perguntar se um processo de verticalização da produção de medicamentos essenciais deveria ultrapassar o segmento de fármacos e se estender até os intermediários químicos. Há controvérsias. Como a indústria de intermediários químicos, ao contrário da farmoquímica, não é especializada, é extremamente pulverizada e fornece para diversas outras indústrias nem de longe relacionadas à produção de medicamentos, seria difícil o governo atuar sobre ela de maneira focada. Uma estratégia viável para esse segmento po deria ser concentrar a intervenção governamental em alguns insumos específicos considerados estratégicos para a cadeia de produção dos medicamentos essenciais (por exemplo, aqueles que tiverem poucos fornecedores no mundo e tenham maior risco de sumir do mercado).

O fato é que a indústria farmoquímica diagnostica uma fragilidade na sua cadeia de suprimentos. Para Ogari Pacheco, da Cristália, “há carência de uma indústria química de base para o fornecimento de intermediários na diversidade e quantidade requeridas pela indútria farmacêutica (de transformação)”. Marcus Chame, da Nortec, também assinala que “o Brasil não possui uma indústria de química fina capaz de produzir, de forma competitiva, intermediários de síntese para a produção de IFAs, o que certamente prejudica a integração dos processos em nível local”. Ele conta que, para escapar dos efeitos desse cenário, a Nortec estabeleceu, ao longo desses últimos anos, parcerias com centros de pesquisas e empresas européias e asiáticas. “Diversas etapas de síntese de intermediários foram incorporadas ao nosso processo de fabricação e variadas fontes de suprimentos foram estabelecidas, garantindo o abastecimento contínuo e seguro de intermediários de elevado padrão de qualidade.”

A perspectiva no meio científico é bem diferente. Adelaide Antunes, professora da Escola de Química da UFRJ e coordenadora do Sistema de Informação da Indústria Química (Siquim), afirma que o Brasil tem tecnologia e recursos humanos qualificados para produzir qualquer intermediário químico demandado pela indústria de fármacos. “Com pequenas adaptações em unidades industriais existentes e investimentos modestos – de R$ 2 a 4 milhões – num laboratório para fazer o scale-up (testes de bancada para produção em escala industrial), será possível fornecer os produtos que forem necessários para a fabricação de medicamentos essenciais.”

Na opinião da professora, isto até hoje não ocorreu pela falta de uma demanda regular de intermediários para a indústria de medicamentos. “Não há articulação entre as políticas públicas de saúde e da indústria. Como o sistema de pregões internacionais dos laboratórios públicos desfavorece a indústria nacional, os produtores de fármacos acabam se desinteressando desse seg no mercado capaz de estimular a indústria nacional de intermediários”. mento e voltando-se para o mercado privado e para a exportação.” Como estratégia de transição até que tal articulação se efetive e esteja “azeitada”, Adelaide Antunes defende que os investimentos iniciais em adaptações necessárias ao scale-up sejam direcionados para a universidade, aguardando “formação de massa crítica

Políticas em conflito

Segundo o estudo do Banco Mundial, existem várias razões para se adotar uma política industrial voltada para a produção local: a não-disponibilidade no mercado internacional da qualidade desejada; a necessidade de manter processos em sigilo ou um controle rigoroso do próprio calendário; a falta de confiabilidade dos fornecedores; o desejo de desenvolver uma base local de empregos, de aumentar a transferência de tecnologia e de adquirir autosuficiência; a necessidade de redução da dependência de importações e de aumento das exportações. Particularmente no setor de medicamentos, algumas dessas razões podem, na prática, conflitar com as razões da política de saúde para produzir medicamentos localmente – como aumentar o suprimento de boa qualidade e reduzir o custo dos medicamentos essenciais.

Se, por um lado, a universalização do acesso a medicamentos essenciais é hoje uma bandeira em todo o mundo, por outro prevalece uma tensão entre os interesses do mercado e os problemas sociais decorrentes da indisponibilidade desses medicamentos, sublinha o relatório do Banco Mundial. “Enquanto a política de saúde é direcionada no sentido de provê-los, baratos e de qualidade, a política industrial visa otimizar lucros e o crescimento; e essas duas forças podem acabar batendo de frente ao invés de se reforçar”. De fato, há três objetivos que podem ou não estar alinhados: promover acesso universal aos medicamentos, ou seja, distribuí-los a todos os pacientes que deles necessitam; criar a estrutura necessária de P&D para descobrir ou desenvolver medicamentos inovadores; e desenvolver uma base industrial para produzi-los localmente. Na verdade, os dois últimos são muito mais freqüentemente discutidos em termos de política industrial, e não de saúde.

É preciso ter claro que medicamentos não podem ser tratados como outro produto qualquer, uma vez que afetam diretamente o bem-estar da população. Produzir medicamentos essenciais é um processo de grande responsabilidade, que requer suprimento de matéria-prima e princípios ativos de alta qualidade, perícia técnica em regulação e processos farmacêuticos e desenvolvimento de recursos humanos qualificados. Segundo o relatório do BIRD, a efetividade de políticas que assegurem esses fatores é algo complexo, tornando também complexa a questão do acesso universal aos medicamentos essenciais. No caso do Brasil, considerando a qualidade do nosso sistema de saúde pública e em face dos riscos de queda da sua eficiência em função de problemas de suprimento de medicamentos essenciais, temos hoje uma rara conjunção de interesses entre a política de saúde e a política industrial. Alguns atalhos políticos nessa direção já foram construídos – basta lembrar a Declaração de Doha (2001), que enfatizou a importância da saúde pública e balizou o caminho para a universalização do acesso a medicamentos. Porém, é preciso traduzir tal conjunção em ações coerentes e sinérgicas. Se desprezarmos a oportunidade que ora se apresenta, não assistiremos apenas ao naufrágio de mais uma indústria no País, mas também ao naufrágio de alguns programas sociais de grande relevância.

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