O abandono de critérios de qualidade nas licitações públicas tem resultado em prejuízos para setores socialmente sensíveis como a saúde. Está cada vez mais claro – e o próprio governo federal reconheceu isso no recente lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – que a Lei de Licitações precisa ser adaptada para melhor atender o interesse público e as necessidades de desenvolvimento econômico do País.
No início dos anos 90, o Brasil viveu uma crise política decorrente dos escândalos de corrupção que estouraram no governo Collor. Entre as irregularidades expostas estava a prática do governo de resolver negócios públicos à base de comissões. A máfia que havia então se instalado acabou gerando reação no Congresso e acarretando um movimento saneador, que veio, através da Lei de Licitações (no 8.666 de 1993), instituir normas para licitações e contratos de bens e serviços destinados à administração pública.
Surgiu assim um arcabouço legal que visava moralizar o processo de aquisições, evitar a corrupção e obter melhores preços. Entretanto, a prática das licitações desde então – assim como a burocracia associada a ela – vem distorcendo o objetivo da lei e fazendo-a funcionar, em alguns setores, contra os interesses nacionais. Em grande parte, isso pôde ocorrer porque a rigidez excessiva da 8.666 na parte metodológica acabou inviabilizando, na prática, o uso de critérios qualitativos nas licitações. Assim, abriu-se espaço para que se instalasse a chamada “política do menor preço”, largamente priorizada até hoje por constituir uma forma de evitar suspeição por favorecimentos.
Quem faz por menos?
Em decorrência das dificuldades geradas pela inflexibilidade da lei, até mesmo o objetivo de conseguir melhores preços resultou em fracasso administrativo, fato que levou o governo a editar, em 2002, a Lei dos Pregões (nº 10.520). Sem dúvida, tal lei trouxe algum benefício nos processos visando a aquisição de insumos e materiais padronizados. Mas, por reduzir a análise de propostas à comparação de preços, tem sido desastrosa para alguns setores, na medida em que nivela por baixo o critério da qualidade nas compras públicas. Segundo o médico Eduardo Costa, diretor do laboratório público Farmanguinhos, “o problema em valorizar o fundamento isolado do menor preço é que se acaba deixando sem garantias até o objetivo da eficiência, introduzido aditivamente na Constituição de 1988, e abandonando-se ou descaracterizando-se o conceito de isonomia”.
A conseqüência direta da interpretação corrente de que o mais barato é sempre o mais vantajoso, consolidada ao longo da última década, foi o surgimento de uma forte tendência da indústria brasileira de também adquirir matérias-primas em leilões internacionais, muitas vezes com prejuízos de qualidade e conseqüentes danos à imagem dos seus produtos. Para manter padrões de qualidade mais elevados, muitas indústrias precisam renunciar à idéia de vender para o governo, voltando-se exclusivamente para o setor privado e o mercado externo.
O caso de Farmanguinhos, laboratório vinculado à Fundação Osvaldo Cruz, é emblemático nesse sentido. Condicionado à aquisição de fármacos por pregões eletrônicos, que invariavelmente são vencidos por brokers ligados a fornecedores chineses e indianos, Farmanguinhos afastouse dos fabricantes locais e passou a contratá- los apenas para o reprocessamento industrial dos lotes de má qualidade que costumam vir misturados em seus pacotes de importações. A constante necessidade de efetuar esse reprocessamento em caráter emergencial, ou mesmo de devolver os lotes, tem gerado sistematicamente despesas extras e atrasos nos programas do Ministério da Saúde, que em 2005 chegou a ser multado pelo Ministério Público em função do custo social desses atrasos. Exemplo: um soropositivo que interrompe a ingestão do seu coquetel pode sofrer aumento de carga viral e da resistência do vírus HIV.
Os esforços de Farmanguinhos em penalizar os maus fornecedores foram inúteis, o que levou a direção do laboratório, com o apoio do Ministério da Saúde, a buscar alternativas mais seguras de fornecimento. Nos dois últimos pregões de 2006 relativos à adquisição de anti-retrovirais, foi estabelecida como uma exigência, com o aval da Advocacia Geral da União, que os candidatos tenham unidade produtiva em território nacional e certificação da Anvisa, a fim de possibilitar o controle de qualidade dos fármacos.
Entretanto, como era de se esperar, Farmanguinhos está enfrentando forte resistência por parte dos brokers de matériaprima. Logo após esses últimos pregões, uma dessas empresas entrou na Justiça com pedido de impugnação dos editais, alegando que atentariam contra “o superior interesse público e o postulado da moralidade administrativa”. A Justiça ainda não emitiu sentença, mas vem agindo com equilíbrio. Ao invés de conceder a liminar reclamada solicitou, e obteve, um posicionamento de Farmanguinhos no qual o laboratório aponta impropriedades e informações falsas no pedido de impugnação. O fato é que esses recentes pregões criarão um precedente importante para Farmanguinhos viabilizar o controle de qualidade em suas compras – e mais, poderão se tornar uma referência para outros laboratórios públicos seguirem o mesmo caminho.
Protecionismo invertido
A idéia de que o Estado deve-se abster de proteger a indústria nacional vem sendo impingida aos países emergentes há cerca de quinze anos por meio dos mais diversos expedientes: desde pressões diretas de países do primeiro mundo até protocolos e convenções “multilaterais” formulados por esses mesmos países, que, no entanto, utilizam habitualmente e em larga escala o poder de compra do Estado como um instrumento de política industrial para beneficiar seus fabricantes domésticos. O recurso a barreiras técnicas e sanitárias, por exemplo, é freqüente nas compras públicas de países europeus para alijar concorrentes estrangeiros.
No Brasil, as compras governamentais realizadas pelo poder público, a despeito do caráter estratégico de determinados produtos, como os fármacos, ainda privilegiam sistematicamente o importado em detrimento do nacional. Nos processos licitatórios realizados pelo governo brasileiro, o controle sanitário de fármacos tem normas rígidas apenas para o produto nacional – do qual são exigidos registro e certificação da Anvisa que, embora necessários, oneram os custos. Por outro lado o produto estrangeiro é aceito facilmente: basta que venha acompanhado de uma declaração de entidade externa congênere da Anvisa. Ou seja, o conceito da barreira sanitária é usado às avessas, privilegiando o produto estrangeiro.
Os resultados desse conjunto de equívocos para a indústria nacional de medicamentos têm sido desastrosos: drástica redução do número de unidades farmoquímicas instaladas no País; déficit crescente na balança comercial do setor (de US$ 500 milhões, o “rombo” aumentou para US$ 3 bilhões em cerca de uma década); e conseqüente quadruplicação do gasto público com medicamentos (nas compras diretas do Ministério da Saúde cerca de 70% dos gastos se referem a produtos importados, com destaque para os fármacos destinados a coquetéis anti-Aids). A indústria nacional, que no passado chegou a fornecer 50% dos anti-retrovirais demandados pelos programas públicos, hoje não participa de 4% desse mercado, embora se saiba que possui capacidade instalada para atender inteiramente as necessidades do programa governamental de DST-Aids, além de tecnologia própria para fabricar a maioria dos princípios ativos necessários.
É preciso deixar de interpretar de forma ingênua e inconseqüente o fim da proteção à indústria brasileira de capital nacional determinado pela revogação do artigo 171 da antiga Constituição Federal. Primeiro porque, se o princípio de proteção à indústria nacional deixou de constar da Carta Magna, isto não significa que lançar mão dele tenha se tornado inconstitucional. O governo pode e deve criar instrumentos com esse objetivo, no mínimo para instaurar a reciprocidade e a isonomia perante os parceiros comerciais do Brasil. A economia globalizada exige, sim, grandes adaptações nas estruturas de produção e comercialização, mas a postura de aceitar cegamente quaisquer pressões exógenas movidas claramente por interesses de mercado não nos traz nenhum benefício a longo prazo. Ao contrário, só destrói nossa base industrial.
Repensando conceitos
Durante 2006, a partir de eventos como o I Seminário Internacional sobre Propriedade Intelectual e Desenvolvimento, o V Encontro Nacional da Inovação Tecnológica e o Encontro Empresarial para Avaliação do Ano 2006 e Perspectivas para 2007, abriu-se uma nova e promissora perspectiva para a indústria nacional de fármacos. As dificuldades de suprimento que vinham ameaçando o programa de DST-Aids, que já vinham formando massa crítica dentro do Ministério da Saúde em favor do licenciamento compulsório de anti-retrovirais sob patente, criaram condições favoráveis a uma reaproximação entre autoridades públicas da área da saúde e a indústria farmoquímica nacional.
Desses encontros surgiu a proposta, apresentada por Farmanguinhos, de estabelecer parcerias público-privadas com fornecedores nacionais, mudando o conceito das aquisições: em vez de matéria-prima Farmanguinhos passaria a comprar serviços de produção de princípios ativos. Ao adotar essa outra forma de contratação de serviços, o laboratório ganha condições de acompanhar o processo produtivo de perto para garantir a qualidade dos insumos e, conseqüentemente, estabilizar a cadeia de suprimentos que termina em suas máquinas. Ainda que a atitude de abandonar o sistema de pregões internacionais possa redundar em alguns custos iniciais mais elevados, a expectativa é de que, a médio prazo, haverá redução, sem contar com outros benefícios indiretos como o desenvolvimento tecnológico sustentável e a geração de empregos qualificados.
Embora em ritmo mais lento, os primeiros escalões do governo federal também vêm se conscientizando das distorções geradas pela Lei de Licitações. Após dois anos de discussões, que foram mais intensas no Fórum de Competitividade da Cadeia Farmacêutica, chegou-se ao consenso de que o instrumento mais adequado para estimular a reativação do segmento de fármacos no País seria a utilização do poder de compra do Estado. Formulou-se então um projeto de reestruturação do sistema de licitações nesse setor, com participação de vários ministérios, que se encontra atualmente no Ministério do Planejamento para encaminhamento à Casa Civil da Presidência da República.
Esse projeto avança em alguns aspectos mas deixa a desejar em outros. Ao atribuir um amplo papel à Anvisa na certificação de qualidade do processo produtivo e na pré-qualificação dos licitantes, parece acenar com a adoção de barreiras sanitárias que poderiam privilegiar o fornecedor nacional. Porém, a atuação da Anvisa não tem se pautado pelo mesmo viés protecionista que caracteriza as entidades congêneres européias, e sim por uma cultura burocratizante que acaba penalizando quem está por perto, ou seja, a empresa nacional. Se essa mentalidade não mudar, mais uma vez um instrumento concebido para incentivar a indústria local poderá funcionar às avessas.
Na questão do tratamento tributário o projeto é bastante tímido, uma vez que restringe a isonomia aos tributos incidentes sobre a importação, deixando de fora a enorme carga tributária que incide sobre a produção nacional. Uma novidade positiva é a instituição, no novo sistema de licitação, de margens percentuais de incentivo à nacionalização de componentes. Assim, princípios ativos e outros insumos produzidos no Brasil, com tecnologia desenvolvida no País e definidos como produtos estratégicos para a área de saúde, teriam prioridade sobre os demais – bem como os medicamentos que os utilizem.
Experimentada no assunto, a direção de Farmanguinhos considera excessivamente modestas as propostas do governo e prevê pífios resultados com sua aplicação. Segundo Eduardo Costa, um “Buy American Act” brasileiro seria imperativo no setor farmacêutico, pois fatores importantes não estão sendo contemplados. Um deles é a desburocratização dos instrumentos comprobatórios para a realização das licitações, e outro se refere à adequação de IFAs (Ingredientes Farmacêuticos Ativos). “Se o IFA é compatível com o parque produtivo, seu preço de aquisição deveria poder ser até 30% maior do que a média paga, pois o custo final do produto ainda seria menor.”
Farmanguinhos propõe que o governo incorpore ao seu projeto não exatamente um critério absoluto de qualidade, mas um conceito de “customização” dos IFAs ao parque industrial do produtor. Isto incluiria o acompanhamento do processo produtivo dos fármacos e sua adaptação gradual ao processo do adquirente. Isto não dependeria da certificação de um órgão regulatório, mas de uma “disciplina produtiva competitiva de qualidade”. E, mais importante, significaria mais estabilidade na cadeia produtiva e rastreabilidade da origem dos insumos, o que asseguraria qualidade não só para os usuários dos programas públicos de saúde nacionais como também para programas internacionais, que, seguindo padrões da Organização Mundial de Saúde (OMS), impõem tais condições aos seus fornecedores de medicamentos.
Eficiência dá lucro
Não é só a OMS que desqualifica medicamentos produzidos com fármacos sem origem controlada. Por norma da própria Anvisa, medicamentos genéricos, por exemplo, devem ter no máximo três fontes de IFAs. Para cumprir tal regra, praticamente todas as grandes empresas farmacêuticas mantêm suas próprias unidades farmoquímicas ou estabelecem contratos de longa duração. É no mínimo estranho que os laboratórios farmacêuticos públicos não tenham que obedecer a mesma regra. Por isso é que Farmanguinhos reivindica uma política para fármacos de mais longo alcance: além de isonomia para empresas nacionais em relação às estrangeiras e da preferência para os produtos nacionais nas licitações públicas, o laboratório propõe a adequação da legislação sobre compras governamentais aos objetivos da Política Industrial para o setor de medicamentos e fármacos e da Lei de Inovação Tecnológica do País. Segundo Eduardo Costa, falta “valorizar o aumento da eficiência dos entes públicos, que assim poderão produzir a menor custo”. Ele sugere ainda que seja dispensada de processo licitatório a aquisição de produto desenvolvido no Brasil em parceria entre o ente público adquirente e o ente privado produtor.
Porém, tendo em vista que qualquer alteração de lei requer um longo tempo de trâmite, e levando-se em conta as indefinições que ainda persistem no governo acerca da política de compras governamentais, é necessário recorrer a instrumentos institucionais mais imediatos para validar um novo modelo de licitação na área da saúde. Isto não é novidade no Brasil. Quando entrou em vigor a Lei no 8.666, empresas públicas como a Petrobras e a Eletrobras, constatando que os complicados procedimentos exigidos para as licitações baseadas em técnica e preço estavam retardando e burocratizando excessivamente suas aquisições, para conquistar certa autonomia firmaram com o governo federal contratos de gestão, por meio dos quais conseguiram preservar seus sistemas de pré-qualificação de fornecedores comprometendo-se, em contrapartida, com metas de eficiência e produtividade traduzidas em resultados mensuráveis.
A Petrobras e a Eletrobras só adquirem produtos e serviços de fornecedores credenciados, com instalações por elas auditadas. Em muitos casos, exigem que tais fornecedores tenham suas fábricas localizadas no Brasil, para que possam fiscalizar o processo produtivo e assim garantir a qualidade. O antigo Sermat (Serviço de Materiais) da Petrobras – hoje pulverizado numa rede descentralizada de unidades e programas específicos – foi o ícone de uma sólida cultura formada dentro da empresa que valoriza cada vez mais a relação de parceria e a excelência tecnológica. Por exemplo, em se tratando de peças e equipamentos sobre os quais, a critério da Petrobras, o País deve ter domínio tecnológico, não apenas se restringem as licitações a empresas instaladas no País como se estabelecem margens de preferência nos preços para incentivar a nacionalização de componentes.
Mesmo considerando que um laboratório farmacêutico público não tem o “cacife” de uma Petrobras ou uma Eletrobras no que tange à performance econômica, o instrumento do contrato de gestão seria de grande valia para elevar a qualidade dos medicamentos produzidos para os programas públicos. Embora os dirigentes desses laboratórios admitam a baixa eficiência do sistema atual de compras por leilões internacionais, sentem-se geralmente impossibilitados de gerir esses processos de forma mais eficaz, devido à inflexibilidade na interpretação da Lei de Licitações por parte dos Tribunais de Contas e do Ministério Público.
Farmanguinhos, por meio de sua iniciativa louvável no sentido de buscar a viabilização de parcerias de longo prazo com o setor produtivo nacional de fármacos, vem tentando escapar dessa “vala comum” e buscar soluções criativas para o problema. Talvez por estar vinculado a uma fundação – a Fiocruz – tenha mais liberdade que os demais laboratórios públicos para buscar alternativas próximas a um contrato de gestão, alcançando maior autonomia em relação à Lei no 8.666 até que ela sofra as mudanças necessárias.
Por outro lado, é imprescindível não abrir mão da batalha no front legislativo. Há um projeto interministerial concebido para fazer do poder de compra do Estado um instrumento a favor, e não contra, a indústria de fármacos; e há diretrizes recém-estabelecidas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nessa mesma direção. Agora, é preciso unir forças e articular agentes públicos e privados para que o Congresso faça as melhorias necessárias nesses projetos e dê força de lei a políticas mais duradouras de apoio à produção local. Só assim será possível criar uma base estável para a indústria farmacêutica nacional, promovendo no País, através dela, o desenvolvimento tecnológico e a geração de empregos que caracterizam um Estado soberano.