REVISTA FACTO
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Jul-Ago 2006 • ANO I • ISSN 2623-1177
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A Frustração na Rodada de Doha
//Editorial

A Frustração na Rodada de Doha

Desde 2001, coincidentemente dois meses após os ataques terroristas de 11 de setembro nos Estados Unidos, os 149 países que formam a Organização Mundial do Comércio (OMC) vêm tentando, sem sucesso, no âmbito da Rodada de Doha, definir “fórmulas mágicas” que levem à redução das barreiras impeditivas ao livre- comércio internacional de bens agrícolas e industriais. De lá para cá já ocorreram quatro encontros internacionais, realizados nas cidades de Seattle, Cancún, Hong Kong e, recentemente, Genebra. Todos os prazos foram perdidos e se aproxima, inexoravelmente, o final do ano fiscal de 2006 – quando deixa de valer a permissão dada pelo Congresso norte-americano aos seus diplomatas para negociarem na Rodada de Doha.

Nesse cenário, os países desenvolvidos buscavam, essencialmente, reduzir as tarifas de importação que protegem os bens industrializados nos países em desenvolvimento. Seu foco central era ocupar tais espaços de mercado com suas manufaturas, obviamente sem abrir mão dos enormes subsídios e da proteção tarifária sem limites concedidos à sua pouco competitiva agricultura doméstica.

Em processo de desgravação tarifária conhecido como “Fórmula Suíça”, países avançados pretendiam que os menos desenvolvidos reduzissem, de forma automática e substancial, suas tarifas de importação de bens industriais em relação àquelas hoje praticadas, mediante a aplicação do coeficiente 15 a uma fórmula de desgravação não-linear. O Brasil propôs o uso do coeficiente 30, que implicaria um corte de 50% nas nossas atuais tarifas consolidadas na OMC, entendendo-se por tarifa consolidada a alíquota máxima que o país pode aplicar para cada produto. Era razoável imaginar um corte da ordem de 60% nas tarifas consolidadas, com o uso do coeficiente 20 nessa Fórmula Suíça, o que resultaria em uma redução média de cerca de 2% nas tarifas efetivamente aplicadas pelo Brasil.

Em contrapartida, os países em desenvolvimento desejavam que os países de primeiro mundo reduzissem as barreiras – tarifárias e não-tarifárias – e os subsídios que incidem sobre a produção e a exportação de produtos agrícolas. Em busca desse objetivo ofereciam como moeda de troca uma palatável redução de suas tarifas de importação para bens manufaturados no exterior, aceitando um coeficiente em torno de 20 a ser aplicado na Fórmula Suíça.

O importante fator complicador das negociações internacionais é a enorme assimetria estrutural existente entre as economias do mundo desenvolvido e dos países em desenvolvimento. Se não forem estabelecidas previamente algumas regras básicas para orientar o processo de abertura comercial ao livre mercado, como resultado certamente ocorrerá um forte aumento no fluxo de comércio, mas à custa de uma grave desindustrialização dos países menos avançados.

Recente estudo sobre desempenho econômico de 50 países em desenvolvimento que liberalizaram substancialmente o comércio entre 1980 e 2000 indica que apenas dez, a maioria localizados na franja asiática e que contaram com forte presença do Estado nesse processo, apresentaram um expressivo crescimento em suas exportações e na produção de mercadorias com algum valor agregado. Por outro lado, metade deles passou por um efetivo processo de desindustrialização.

O livre mercado, numa situação de grande assimetria entre economias, pode impedir ou dificultar a industrialização dos países menos desenvolvidos – ou até mesmo desindustrializá-los. É imperativo evitar essa situação, pois somente através da industrialização pode ser encurtada a enorme distância que separa os países em desenvolvimento daqueles do primeiro mundo.
É conveniente lembrar que nenhum país avançado do mundo atual se industrializou e se transformou em nação desenvolvida sem ter adotado, ainda que por algum tempo, uma forte proteção às indústrias estratégicas para o seu desenvolvimento autônomo (para produtos sensíveis isso é permanente). Em contrapartida, as colônias mantidas pelos países do primeiro mundo até meados do século passado, levadas a uma rápida liberalização sob o cântico da modernidade e desprovidas de Estados fortes que resguardassem seus interesses nacionais, não escaparam ao processo de desindustrialização, o que explica sua estagnação ou atraso até os dias atuais.

Diante disso, podemos afirmar que somente serão do interesse dos países menos desenvolvidos os acordos de livre- comércio que efetivamente lhes permitam manter, por um tempo razoável, proteção aos seus setores produtivos mais sensíveis, bem como assegurem espaços para o surgimento de novas indústrias no futuro. Isso é absolutamente indispensável, visto que o desenvolvimento econômico de uma nação depende da agregação de valor e da diversificação de sua produção, algo que é impossível atingir sem o recurso a políticas públicas nacionais que promovam a industrialização.

No contexto da OMC cabem ser destacadas certas disciplinas que compõem um arsenal complementar ao grande acordo internacional de comércio: investimentos, compras governamentais, barreiras técnicas e de propriedade intelectual. Os acordos específicos negociados nessas matérias, especialmente no âmbito bilateral, podem dificultar seriamente, ou até mesmo inibir totalmente, o crescimento industrial das nações menos desenvolvidas.
Nas áreas de investimentos e compras governamentais, é absolutamente indispensável alguma flexibilização desses acordos internacionais para permitir que os países menos desenvolvidos ofereçam alguma preferência ao produtor local, sob pena de completa asfixia de qualquer política industrial consistente. Os Estados Unidos se dispensaram de fazer as concessões que exigem de seus parceiros nessa área, tanto que mantêm bem vivo seu Buy American Act, que permite o exercício de preferência ao produto nacional em licitações públicas mesmo quando adquirido a preço superior àquele ofertado pelo licitante externo. Por oportuno deve ser mencionado que, infelizmente, com a nobre exceção do setor de petróleo, no Brasil o poder de compra do Estado não vem sendo utilizado como instrumento para a modernização e a industrialização do País, menos em decorrência de impeditivos externos e mais pela ausência de motivação política para uma correta aplicação da atual política industrial, tecnológica e de comércio exterior.

Na área de propriedade intelectual, os países desenvolvidos sempre buscam reforçar suas posições de mercado através da ampliação dos prazos e da abrangência de suas patentes relacionadas às novas tecnologias. Muitas vezes essas posições são alcançadas de forma ilegítima, pela dominação econômica e ameaça de retaliação comercial. É preciso um cuidado extremo no trato dessa matéria, que é tão ou mais relevante que as negociações tarifárias, pois uma má construção de acordos em tais disciplinas irá dificultar muito, senão impossibilitar, aos países em desenvolvimento o acesso às tecnologias avançadas nas mesmas bases em que ocorreu com os países hoje desenvolvidos. Dessa forma se estará condenando os países mais frágeis definitivamente à estagnação e ao subdesenvolvimento econômico e social.

Num ambiente multilateral seria mais fácil a adoção de cuidados nessa área, já que em acordos bilaterais o poder de barganha dos países menos desenvolvidos é muito menor. Por isso é preocupante a frustração de um amplo acordo envolvendo tais disciplinas no âmbito da OMC. Será que somente outra catástrofe semelhante ao 11 de setembro reduziria ambições e colocaria mais solidariedade na pauta das negociações internacionais?

Nelson Brasil de Oliveira
Nelson Brasil de Oliveira
Vice-presidente de Planejamento Estratégico da ABIFINA.
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