Poucos acordos internacionais têm gerado tanta polêmica e dado lugar a uma tão extensa literatura analítica, mais crítica do que apologética reconheça-se, como o Acordo de Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, ou TRIPS, como é mais conhecido. Não sem razão. A adoção deste acordo na Rodada Uruguay, que extinguiu o GATT e criou a OMC, modificou radicalmente a arquitetura mundial do comércio internacional. Até meados do século passado, as grandes linhas do comércio internacional eram ditadas pelas relações entre países, sobretudo pelas relações entre os países coloniais, do Norte, e suas colônias do Sul, especialmente da África e da Ásia. Com o fim das relações coloniais, o comércio internacional passou a ser marcadamente influenciado pela atividade de empresas, amparadas é claro no poder de seus Estados nacionais de origem, mas com atuação multinacional. A partir deste momento histórico o papel do privilégio concedido pelo instituto da patente passou a ser crucial para a conquista e a preservação de mercados e para a fixação da margem de ganhos que deles poderia ser extraída.
Com a extensão obrigatória da legislação de propriedade intelectual a todos os países do mundo que quisessem participar do comércio internacional, coisa que não acontecia uniformemente até a adoção do TRIPS, os países desenvolvidos, detentores da esmagadora maioria dos direitos patentários, aumentaram significativamente a renda que obtinham de seu comércio de bens e serviços com os países menos desenvolvidos. Como a maioria dos custos de desenvolvimento dos produtos paten-
teados já era coberta pelo comércio entre os países desenvolvidos do Norte, os ganhos auferidos a partir dos preços de monopólio que passaram a vigir nos mercados dos países do Sul foram ganhos líquidos, e longe de triviais. Desde a adoção do TRIPS, há 12 anos atrás, o aumento da transferência de renda Sul-Norte foi significativo, como atestam estudos do Banco Mundial, que estimou em 40 bilhões de dólares por ano o acréscimo de renda obtido por apenas seis países – EUA, Suíça, Inglaterra, Alemanha, França e Japão.
Curiosamente um acordo de tamanha importância começou a ser discutido quase por acaso. Quando começaram as conversas sobre PI no âmbito do GATT, no início dos anos 80, o objetivo era aprimorar as regras daquele acordo para combater a pirataria. Deu no que deu por iniciativa do governo americano, pressionado por um fortíssimo lobby organizado pelas suas empresas. Recorde-se que nos anos 50 a 70 houve um acelerado desenvolvimento de países como o Japão, a Coréia do Sul e Taiwan, baseado na cópia criativa de tecnologias forâneas que inundou o mundo de produtos de baixo preço, alterando significativamente as correntes mundiais de comércio. Os EUA conseguiram convencer a União Européia, a Suíça e o Japão a adotarem uma posição mais ambiciosa com relação aos direitos de PI e assim dificultar o aparecimento de novos “Tigres” no seleto clube dos países exportadores de manufaturas.
A princípio, os países menos desenvolvidos rechaçaram inteiramente a idéia, mas, a partir de 1989, pressionados pelas ameaças de sanções americanas no âmbito da Super 301 e seduzidos pelas promessas da redução do protecionismo dos países do Norte em relação à produção agrícola, a resistência diminuiu, embora controvérsias e divergências tenham se prolongado até o último minuto da Rodada Uruguay. Na verdade, o texto final do Acordo parece não ter agradado a nenhum dos dois grandes blocos: os países do Norte, liderados pelos EUA, querem termos de proteção ainda mais duros, enquanto os países do Sul, especialmente os menos desenvolvidos, continuam a achar injusto terem que sujeitar o seu processo de desenvolvimento a condições que os outros, hoje desenvolvidos, não tiveram que atender em estágios semelhantes de desenvolvimento.
O acordo final sobre o texto do TRIPS só foi alcançado por incorporar uma série de ambigüidades, o que permitiu que cada membro ou cada facção o interpretasse à sua maneira. Outro ponto importante foi a adoção de um cronograma diferenciado de entrada em vigor das medidas, em função do grau de desenvolvimento dos países-membros. Países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos ganharam prazo adicional para se adaptarem às novidades. Esses prazos adicionais foram fundamentais para que o Acordo fosse finalmente aceito pelos países menos desenvolvidos e geraram uma série de datas que ainda hoje causam certa confusão. São as seguintes as diferentes datas citadas no TRIPS:
• Data de assinatura da Ata Final em
Marrakesh – 14 de abril de 1994
• Data de entrada em vigor do Acordo
Constitutivo da OMC – 1º de janeiro de 1995
Referida nos itens 70.8 e 70.9. Nesta data, os países que ainda não reconheciam patentes nas áreas químico-farmacêuticas e de produtos para a agricultura, deveriam: a) estabelecer um procedimento para o depósito de pedidos de patentes relativos àquelas áreas; b) definir os critérios de patenteabilidade a serem futuramente aplicados e c) estabelecer um mecanismo legal para concessão de Direitos Exclusivos de Comercialização.
• Data de aplicação das disposições do Acordo – 1º de janeiro de 1996
É a data em que disposições do TRIPS devem começar a ser observadas por um membro. Para todos os países esta data é um ano após a data de entrada em vigor do Acordo, ou seja, 1º de janeiro de 1996.
Para os países em desenvolvimento, como o Brasil, ou para os países que estiverem em transição para uma economia de mercado, esta data será automaticamente postergada por quatro anos, ou seja, 1º de janeiro de 2000, com exceção das disposições contidas nos artigos 3, 4 e 5 que devem ser respeitadas a partir da data de aplicação das disposições do Acordo. Este dispositivo consta do artigo 65.2
Caso um pais-membro em desenvolvimento se obrigue, ao aderir a TRIPS, a estender proteção a setores que não protegia até então, a data de aplicação das disposições contidas na Seção 5 da Parte II do Acordo, para aqueles setores, pode ser postergada por mais cinco anos, ou seja, 1º de janeiro de 2005. Este dispositivo consta do artigo 70.4
• Data de aceitação do Acordo Constitutivo da OMC por aquele membro
Para os países que eram membros da OMC esta data é 1º de janeiro de 1995, como é o caso do Brasil. Para os países que aderirem à OMC após esta data, a data de aceitação será a data de sua adesão.
• Data em que este Acordo tornou-se conhecido
A interpretação mais aceita é de esta data seja 15 de abril de 1994, data em que os ministros dos países-membros assinaram o texto final do Acordo, em Marrakesh. Esta data é mencionada no artigo 14.4 e no artigo 70.6
• Data de Revisão dos critérios de Patenteabilidade para Plantas e Animais
É 1º de janeiro de 1999, definida no artigo 27.3(b).
• Data de Revisão do Acordo
Na verdade esta não é uma data fixa, mas um cronograma de possíveis revisões. Tal como disposto no artigo 71.1, a partir de 1º de janeiro de 2000 o Conselho para TRIPS avaliará os resultados da aplicação do Acordo e, depois de dois anos, promoverá as revisões necessárias, repetindo o processo a cada dois anos.
O Brasil, como país em desenvolvimento, beneficiou-se automaticamente da extensão da data de aplicabilidade por quatro anos, ou seja, 1º de janeiro de 2000. Apesar de não estar obrigado fez, em nome do princípio da transparência, artigo 63, a comunicação oficial de que estaria se valendo desta postergação. A comunicação oficial do Brasil está registrada na Ata da Reunião do Conselho de TRIPS realizada de 17 a 21 de novembro de 1997, documento IP/C/M/16, de 5 de dezembro de 1997.
Apesar disso, o Brasil não se valeu integralmente da oportunidade oferecida pelo TRIPS. Em 14 de maio de 1996, o governo brasileiro sancionou a Lei 9.279/96 em que passou a admitir o patenteamento de produtos químicos-farmacêuticos e produtos para a agricultura além de ajustar o restante de legislação aos dispositivos exigidos pelo TRIPS. A adoção acelerada do TRIPS decretou a falência da indústria químico-farmacêutica em nosso País, já ferida de morte pelo processo de abertura comercial desabrida, do início dos anos 90. Diferentemente de nós, Índia e China assumiram sua condição de países em desenvolvimento e aproveitaram, até o limite, as flexibilidades oferecidas pelo TRIPS. No bojo de uma bem articulada política de inovação tecnológica e desenvolvimento industrial aqueles países são hoje grandes exportadores de produtos químico-farmacêuticos, medicamentos e defensivos agrícolas.
A adoção pelo Brasil de uma legislação nacional obediente ao TRIPS muito antes da data exigida para isto foi feita sob intensa pressão internacional e forte lobby de empresas multinacionais, especialmente do setor farmacêutico. A lei saiu do Congresso com dispositivos absolutamente esdrúxulos, como os contidos nos artigos 230 e 231, conhecidos como pipeline. Estes artigos, ao ferirem direitos adquiridos, são inconstitucionais. O que já era divulgado no exterior era de domínio público no Brasil e não poderia voltar ao domínio privado. O parágrafo terceiro do artigo 230 chega ao absurdo de negar ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) o direito de analisar e eventualmente negar o privilégio a um pedido de patente depositado no Brasil ao amparo do disposto no caput se uma patente referente ao mesmo pedido já tiver sido concedida no país do primeiro pedido. A aceitação do artigo 230 da Lei 9.279/96 pelo Congresso e pelo Executivo arranhou definitivamente a soberania brasileira na concessão de privilégios no seu território. A partir do momento da promulgação de uma lei com tal dispositivo, a judicatura passou a ser a última linha de defesa dos interesses nacionais nesta matéria.