Editorial da publicado na edição nº 42 da Revista Facto no qual Nelson Brasil e Marcos Oliveira falam sobre um planejamento de Estado para o Desenvolvimento Nacional.
Até 1930, o Brasil era um país essencialmente agrícola, sendo praticamente inexistente uma indústria local. Com Getúlio Vargas no poder durante a II Guerra Mundial, essa situação começou a ser revertida, tendo em vista suprir às necessidades nacionais, fato que levou Getúlio a forçar Roosevelt a ceder tecnologia e apoiar a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda em 1942.
Entre 1944 e 1945, realizou-se um forte debate entre o economista liberal Eugenio Gudin – que postulava que o Brasil deveria se manter como país essencialmente agrícola – e o líder empresarial Roberto Simonsen – que advogava um papel decisivo do Estado em prol da industrialização doméstica. São dignas de registro as seguintes palavras de Gudin, que até hoje norteiam o pensamento de nossos economistas neoliberais: “O que o Dr. Simonsen não quer é concorrência. O que ele quer é que o Estado, por um empréstimo obtido de governo a governo, proporcione aos industriais existentes a aquisição de novo aparelhamento e não permita a entrada de novos concorrentes”.
Após a Segunda Guerra Mundial, com mais da metade do mundo desenvolvido destruído, um numeroso grupo de países liderados pelos Estados Unidos sentou-se à mesa para discutir o estabelecimento de uma ordem mundial que propiciasse a reconstrução e evitasse novos conflitos. Nascia o chamado sistema de Bretton Woods, que criou um banco para financiar a reconstrução – o Banco Mundial –, um fundo para regular e auxiliar a estabilidade das moedas – o Fundo Monetário Internacional –, e um acordo para incentivar o aumento do comércio internacional e limitar o protecionismo – o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês).
Com todos os seus discutidos defeitos, o sistema de Bretton Woods foi eficaz em promover a reconstrução. Com a ajuda de um intenso de fluxo de capitais e a recomposição das linhas de comércio internacional, os países afetados mais diretamente pelo conflito, na Europa e na Ásia, conseguiram em pouco mais de uma década recuperar seu ritmo de atividade econômica. Apesar de seus protestos em razão da camisa de força imposta pelo GATT, os países em desenvolvimento eram felizes e não sabiam. As regras do GATT impunham aos seus membros a redução progressiva das tarifas sobre o comércio internacional e o tratamento igual a todos os seus parceiros comerciais. Mas, ainda assim, o acordo mantinha uma razoável margem de manobra para os países praticarem políticas proativas de desenvolvimento.
Diversos países da América Latina tiveram um desenvolvimento industrial importante nas décadas de 60 e 70 do século passado – Argentina, Brasil, México – na esteira de uma política de substituição de importações defendida pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), que envolvia uma ativa participação do Estado, proteção tarifária a indústrias nascentes, conteúdo nacional mínimo, financiamento a juros subsidiados, administração cambial etc. Mais que isso, para viabilizar os setores industriais nascentes, o Estado participou como acionista, não poucas vezes majoritário, em inúmeros empreendimentos industriais cujo risco ou aporte de capitais não poderia ser bancado apenas pelo setor privado.
No Brasil, o marco inicial desse novo posicionamento desenvolvimentista foi lançado pela Comissão de Desenvolvimento Industrial (CDI-51), criada em meados de 1951, com o objetivo de estabelecer um plano de desenvolvimento industrial. Em decorrência desse plano, entre 1952 e 1954 o governo criou o BNDE, o Conselho Nacional de Petróleo e a Petrobras.
Durante o governo de Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1960, foi implantado um plano nacional de desenvolvimento econômico visando à industrialização – inicialmente de veículos –, ao tempo em que foram criados Grupos Executivos para cuidar de Marinha Mercante, de Indústria de Construção Naval, de Mecânica Pesada e de Assistência à Média e Pequena Empresa, entre outros.
Ao longo dos anos 70, foram adotados dois planos nacionais de desenvolvimento, propiciando uma diversificação do parque industrial voltada para a infraestrutura e a produção de bens de consumo duráveis e insumos básicos, bem como foram definidas as salvaguardas para setores estratégicos – como aeroespacial e de telecomunicações. Com a denúncia unilateral dos acordos de cooperação de militar com os EUA havida na segunda metade dos anos 70, foi criada a indústria bélica e aeroespacial. Disso decorreu que, no final dessa década, o mercado brasileiro já era atendido predominantemente pela produção interna, liderada pelos bens intermediários e de capital. No decorrer da década de 70, ao amparo destas políticas de forte interação entre o Estado e o setor privado, falava-se do “milagre brasileiro”.
Do outro lado do mundo, na Ásia do Leste, vários países se desenvolveram rapidamente, embora com uma estratégia diversa daquela preconizada pela Cepal. O Japão foi bastante ajudado pelos capitais para a reconstrução e partiu de uma sólida base industrial e mão de obra qualificada que já possuía antes da guerra. Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Malásia, entre outros, tiveram que partir de uma base industrial e de conhecimento virtualmente inexistente. Com um mercado interno incapaz de sustentar um processo de industrialização e modernização, adotaram um modelo direcionado à maximização das exportações sob a batuta do planejamento e participação estatal.
O modelo coreano é emblemático: na esteira de sucessivos planos quinquenais e sob a forte direção do Estado, a Coreia, em cerca de 30 anos, passou de uma economia agrária quase primitiva para uma potência industrial. O caso da China, embora seu desenvolvimento tenha ocorrido um pouco mais tarde – a partir da década de 80 com as reformas introduzidas por Deng Xiaoping –, não é menos ilustrativo da importância da mão visível do Estado. A China foi, e continua sendo, extremamente criativa para participar do sistema mundial baseado nos mercados, enquanto mantém, internamente, um sistema de economia planejada. Sua estratégia de participar do comércio internacional através de Zonas de Processamento de Exportações (ZPEs), com livre intercâmbio com o exterior mas isoladas do mercado interno, funcionou bastante bem para permitir a evolução quali-quantitativa do seu parque industrial.
O traço comum entre as duas experiências de desenvolvimento, a da América Latina e a asiática, foi seguramente o papel desempenhado pelo Estado, seja participando ativamente do processo, seja criando as condições para o arranque das forças produtivas do setor privado. A industrialização sempre acontece na esteira de políticas governamentais proativas, uma velha lição dada por Alexander Hamilton, que os EUA aproveitaram muito bem, mas que por vezes é esquecida.
Todo este processo de evolução dos países menos desenvolvidos ocorreu em meio a fortes crises no sistema capitalista mundial, a começar com o abandono do padrão-ouro pelos EUA – que praticamente liquidou o sistema cambial criado por Bretton Woods –, a crise do petróleo dos anos 70, a crise americana do início dos anos 80, para citar as mais severas. A súbita elevação das taxas de juros pelo Federal Reserve americano no início dos anos 80 drenou a maior parte dos capitais circulando no mundo e teve um impacto devastador para os países que se endividaram para financiar seu desenvolvimento. Caíram progressivamente o México, a Argentina e o Brasil. Não foi menor o impacto nos países asiáticos. Para equilibrar seus déficits, uma longa fila de países se formou diante do FMI em busca de auxílio. Para enfrentar crises semelhantes, o FMI elaborou um receituário de ajustes fiscais ortodoxos que limitaram os investimentos públicos e paralisaram a economia dos países emergentes. O Brasil foi severamente atingido. As décadas de 80 e 90 foram perdidas do ponto de vista do desenvolvimento industrial.
Concomitantemente às diretrizes do FMI, os EUA e o Reino Unido lançaram os fundamentos de uma nova política econômica centrada na austeridade fiscal, na livre movimentação de capitais, na remoção do Estado como ente produtivo e motor do desenvolvimento. As palavras de ordem passaram a ser estabilidade, privatização irrestrita, liberdade de comércio absoluta e livre fluxo para o capital. O Banco Mundial elaborou esta receita com um ideário que ficou conhecido como o “Consenso de Washington”. Estas ideias permearam e influenciaram os debates na Rodada Uruguai do GATT, da qual resultou a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC) em 1995.
A relativa liberdade que os países em desenvolvimento tinham para adotar políticas industriais foi severamente cerceada a partir das novas normas que surgiram com a criação da OMC. Ao contrário do GATT em seu início, as regras estabelecidas pela OMC vão muito além de tarifas, englobando questões como compras governamentais, conteúdo mínimo, transações de serviços, propriedade intelectual, uma parafernália de regulações que, em tese, objetiva reduzir os tão falados “custos de transação” e, assim, aumentar a eficiência da economia como um todo. Na prática, resultam numa severa limitação à adoção de políticas industriais pelos países em desenvolvimento.
A partir de 1996, concomitantemente à internalização dos acordos da OMC, o Brasil passou a adotar uma política de forte cunho liberal, privatizando empresas públicas, liberando os fluxos de capitais, removendo barreiras à importação e limitando drasticamente a ação do Estado como agente do desenvolvimento. Por um largo período de tempo manteve o Real extremamente valorizado em relação ao dólar, o que provocou um crescimento desordenado de importações de produtos industriais, com impacto negativo em diversos segmentos industriais, especialmente naqueles de maior conteúdo tecnológico. Em 1999, o Brasil teve que voltar a recorrer a empréstimos do FMI e desvalorizar fortemente sua moeda para tentar reequilibrar suas contas externas. O dano ao parque industrial não foi revertido até hoje.
A tentativa de limitar a importância do Estado como agente do desenvolvimento não se esgotou com as regras da OMC. Os países desenvolvidos não se satisfizeram com as regras de 1995 e, liderados pelos EUA, passaram a acelerar o estabelecimento de tratados bilaterais ou regionais de comércio, nos quais inserem condições bem mais restritivas aos países menos desenvolvidos do que aquelas contidas nos acordos da OMC. Há hoje milhares destes acordos bilaterais em vigor no mundo e a pressão por sua ampliação é muito forte.
Somente a partir de 2004, o planejamento central voltou a ser definido pelo Poder Executivo através da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) – com vigência em 2004-2008 –, sendo posteriormente complementada pela Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) – vigendo no período 2008-2010 – e, finalmente, pelo Plano Brasil Maior (PBM) – cobrindo o período 2011-2014.
Embora esse planejamento de Estado venha sendo mantido ao longo de dez anos, sua repercussão em termos de estímulo à indústria nacional em realidade verificou-se reduzida em número de setores. Inúmeros estudos e análises recentes indicam que o País já sofre um processo de desindustrialização, com sua pauta de exportações calcada em commodities agrícolas e matérias-primas minerais e a de importações envolvendo pesadamente produtos industriais – com elevado valor agregado.
Há várias causas para esse baixo retorno havido em tais políticas, as quais são tratadas em sequência:
1. Planos de desenvolvimento econômico e social necessariamente, além de possuírem um caráter plurianual robusto – algo em torno de 20 anos como ocorre na China, Japão e Coreia –, devem ser aprovados pelo Congresso Nacional para alcançar estabilidade jurídica e conferir segurança na manutenção de regras em longos períodos. As alternâncias que se fazem a cada novo mandato governamental – e às vezes até mesmo dentro de um mesmo mandato – são desastrosas em planos de investimento por conferirem insegurança aos investidores quanto ao retorno a ser previsto.
2. Um plano de desenvolvimento econômico e social expressamente deve incorporar um projeto de desenvolvimento industrial, pois sem uma forte indústria fabricando localmente produtos com maior valor agregado jamais teremos soberania e crescimento assegurado ao longo do tempo. A participação da indústria no PIB nacional no final dos anos 80 era 25%. Hoje, caiu à metade, como resultado do processo desindustrializante iniciado nos anos 90 e que parece não ter fim.
3. Desenvolvimento econômico requer investimento na produção local, que se alcança com o expressivo aporte de recursos privados. Os recursos públicos para tais investimentos podem ocorrer em áreas estratégicas – inclusive em parcerias com o setor privado. Mas uma grande aposta do setor privado em tais parcerias com o setor público em projetos de longo prazo de maturação – como é requerido pelo Brasil – necessita de clareza e manutenção (estabilidade) de regras públicas, para que os retornos sejam previsíveis pelos empresários.
4. O Brasil possui um enorme mercado interno e abundância de recursos naturais. No entanto, para a produção local ser competitiva interna e externamente é imprescindível que haja uma isonomia nessa competição, para o que se faz necessário atentar para variáveis macroeconômicas, em especial câmbio e taxas de juros para investimentos, além de uma indispensável reforma fiscal.
5. A eficácia dos planos de desenvolvimento requer fundamentalmente a plena adesão de toda a máquina pública aos objetivos do planejamento, sem que ocorra uma divergência de entendimento entre agentes e agências governamentais, como ocorre atualmente. Nesse particular, também é requerida a compreensão e adesão do Ministério Público, pois ações inapropriadas podem inibir importantes iniciativas de agentes públicos nessa área do desenvolvimento econômico.
As diretrizes acima apresentadas, em nosso entendimento, deveriam nortear a elaboração e a condução do planejamento econômico e social a ser implantado neste segundo mandato presidencial, a se iniciar em janeiro de 2015.