NELSON BRASIL DE OLIVEIRA


Um produto farmacêutico vastamente empregado no combate à Aids, conhecido comercialmente pelo nome Kaletra, constituído pelos princípios ativos Ritonavir e Lopinavir, com alto valor unitário e elevada demanda internacional de mercado (acima de US$ 1 bilhão/ano, representando no orçamento público brasileiro cerca de US$ 60 milhões/ano), acaba de ter a patente de um de seus princípios ativos – o Lopinavir – colocada em domínio público. E um fato marcante que resultará em expressiva queda no preço desse medicamento de fundamental importância para o atendimento feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) a pacientes que sofrem com esse mal no país.
Em sentença publicada no dia 7 de março, a 9 Vara Federal do Rio de Janeiro julgou nula a patente do Lopinavir. Em decorrência dessa sentença, foram anulados todos os atos administrativos concessórios do privilégio de invenção relacionados a esse processo no Brasil, tornando-se de conhecimento público a matéria para fins de seu aproveitamento em aplicações industriais e para uso pelo SUS. Com isso, o governo deixa de despender elevados recursos orçamentários requeridos para as aquisições desse medicamento nos produtores nacionais já capacitados a produzi-lo.
Essa sentença, reafirmada no dia 20 de março quando não foi aceita uma medida cautelar proposta pela titular da patente, se encontra em plena sintonia com os mais relevantes interesses nacionais, em especial com a política de desenvolvimento econômico e social do país. E, mais importante, a Justiça Federal, entre outros fundamentos postos contra a patente na ação judicial, reconheceu mais uma vez que as patentes pipelines são inconstitucionais por permitirem o monopólio de mercado para fármacos e para medicamentos que já estavam em domínio público ao ser aprovada a Lei de Patentes brasileira, sem que atendessem, assim, ao requisito da novidade exigido pela lei nacional.
Além da inconstitucionalidade das pipelines, a ação judicial levou em conta a falta de anuência prévia pela Anvisa no processo de concessão da patente pelo INPI, argumento corroborado pela própria Anvisa, que também se colocou a favor da nulidade. Portanto, a Anvisa reconheceu a ilegalidade da conduta do INPI, pois, na data da concessão da patente, já estava em vigor a medida provisória que outorgou a obrigatoriedade da consulta à Anvisa como precondição ao registro.
Nesse cenário, deve ser ressaltado que, antes dessa relevante decisão da Justiça brasileira, o laboratório multinacional titular da patente desse composto já havia depositado outros pedidos de patente com as mesmas substâncias ativas, sem qualquer atividade inventiva relevante, visando simplesmente a prorrogar seu monopólio mercadológico de comercialização do produto.
O Kaletra é o segundo antirretroviral mais consumido no país, segundo o Ministério da Saúde. Está apenas atrás do Efavirenz, que foi submetido ao licenciamento compulsório pelo governo Lula, em processo que marcou a posição segura e soberana de seu governo.
Em 2004, o Ministério da Saúde tentou obter do laboratório multinacional detentor da patente do Kaletra uma redução no preço do medicamento, na ordem de 42%, mas não obteve êxito nessa tratativa. Com o aumento nos custos desse medicamento, no ano seguinte o Ministério da Saúde fez uma ameaça final: licenciar compulsoriamente a patente desse produto, na forma permitida pela Organização Mundial do Comércio (OMC) – em casos de emergências sérias à saúde pública, prática posteriormente adotada pelo governo federal ao licenciar compulsoriamente o antirretroviral Efavirenz.
Antes, porém, de se concretizar o referido licenciamento compulsório da patente do medicamento, o laboratório titular desse privilégio concordou em reduzir o preço desse medicamento e mantê-lo estável durante seis anos. Esse acordo, que terminou em 2011, rendeu ao governo uma economia total de US$ 340 milhões, de acordo com o Ministério da Saúde. Com essa medida o Kaletra escapou do licenciamento compulsório, mas ainda continuou a ter expressivo retorno financeiro além do razoável para a empresa multinacional em suas vendas ao governo brasileiro.
Ao impedir agora a extensão dos benefícios da patente pretendida via sua revalidação (instituto do pipeline), a decisão da 9 Vara da Justiça Federal do Rio de Janeiro se fundamenta, também, no fato de que não faz sentido adquirir tal fármaco com preços não concorrenciais, o que lesa o erário público, a sociedade e a concorrência.
O tema é importante. Não é por outra razão que o próprio Ministério Público está movendo uma ação civil pública requerendo o licenciamento compulsório do Kaletra. A decisão certamente servirá para sinalizar aos titulares de patentes que o exercício abusivo de tais direitos, na área estratégica da saúde pública, em especial nos casos embasados no instituto do pipeline, está fadado a ser banido para sempre pela Justiça brasileira.


NELSON BRASIL DE OLIVEIRA é vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina).


Fonte: O Globo

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