A Dra. Karin Grau-Kuntz, doutora e mestre em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha, e coordenadora acadêmica do IBPI – Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual, enviou seus comentários a respeito da entrevista dada pelo Professor Canotilho, na semana passada, ao site Consultor Jurídico. A entrevista era relacionada à Propriedade Intelectual e foi encaminhada aos membros do Comitê de PI no último Resumo Semanal de PI (Leia a entrevista do Prof. Canotilho no link: http://www.conjur.com.br/2011-out-23/entrevistagomes-canotilho-constitucionalista-portugues ). Em seus comentários, a Dra. Karin explica os equívocos proferidos pelo Prof. Canotilho, principalmente em relação aos medicamentos genéricos. Leia a resposta da Dra. Karin Grau-Kuntz no link http://www.conjur.com.br/2011-nov-03/algumas-palavras-medicamentos-genericos-professor-canotilho
 
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Por Karin Grau-Kuntz


A opinião dos professores, especialmente daqueles que logram alcançar vasto reconhecimento acadêmico, é geralmente recebida por pares, alunos e público em geral como manifestação dotada de autoridade. Aquilo que os professores dizem, opinam e defendem pressupõe-se em princípio correto porque dito, opinado e defendido por alguém com autoridade acadêmica.


A seu turno, o valor acadêmico é como a moeda em suas duas faces. Se uma face concentra e irradia para o exterior todo o esforço e dedicação do estudioso, que culmina na disposição dos receptores em aceitarem o que ele prega, na outra exige dele compromisso ético com o domínio técnico profundo e responsável de tudo que defende em público.


O comentário que aqui me proponho a fazer versa sobre uma entrevista do conhecido professor José Joaquim Gomes Canotilho, publicada na revista Consultor Jurídico, na qual infelizmente, ao enveredar pela seara da chamada “propriedade intelectual”, encontro equívocos básicos e sérios de compreensão da matéria. Se tais equívocos não tivessem sido proferidos pelo acadêmico renomado, por certo não mereceriam comentário algum. Se porém os comento é porque, apesar de equívocos, serão tomados como manifestação de autoridade. O que afronto aqui, que reste então bem claro ao leitor, é em primeira linha a autoridade que se há de vincular às declarações: porque os equívocos estão contidos em manifestação de uma figura conhecida no meio acadêmico brasileiro, haverá, sem dúvida, aqueles que os repetirão sem tomar por necessário refletirem sobre o acerto técnico e ético de seu conteúdo, bastando o reporte à autoria do conhecido professor. O risco aqui é evidente.


Ao comentário que a seguir desenvolverei interessa especialmente o trecho final da entrevista, quando o entrevistador traz à baila a questão da “flexibilização” das patentes, assim enfrentada por José Gomes Canotilho:


“A flexibilização é muito perigosa porque pode significar a quebra de patente. As empresas têm direito de exploração econômica, por certo período, por ter inventado um produto. É uma garantia constitucional que não deve ser violada a não ser em casos de extremo interesse público, como no caso dos genéricos, e não nos moldes que ocorre no Brasil.”


Aproveitando a menção aos medicamentos genéricos, o entrevistador pergunta ao professor qual o problema com a política brasileira referente a este tipo de produto farmacêutico e o entrevistado responde:


“No meu ponto de vista esta é uma questão que o Brasil deveria ter superado. O que é um genérico? Um medicamento com o mesmo princípio ativo que um de mercado. Ou seja, de um que foi desenvolvido pela indústria, com base em anos de pesquisa, muito dinheiro investido e que está protegido por lei por 20 anos. Como um medicamento genérico pode confeccionar uma bula dizendo que em 2% dos casos pode ocorrer tal reação adversa? Ele não fez nenhum teste, como pode afirmar? O genérico é um grande plágio.”


Medicamento genérico, seja no Brasil ou em Portugal, é definido como aquele comprovadamente composto pela mesma substância ativa, fórmula farmacêutica, dosagem e indicação do medicamento de referência, isto é, de um medicamento anterior comercializado sob uma marca. Em outras palavras, ser genérico o medicamento, isso pressupõe necessariamente a existência de um medicamento anterior, o chamado medicamento de referência e a comprovação sanitária – isto é, pelo órgão sanitário competente – de suas identidades ou, de outra forma, da bioequivalência do genérico em relação ao medicamento de referência.


Onde anteriormente não há medicamento de referência não haverá medicamento genérico. Onde não há comprovação de bioequivalência não haverá medicamento genérico[2].


Ser de referência, por sua vez, pressupõe um medicamento a) inovador, b) com qualidade, eficácia terapêutica e segurança comprovados cientificamente e c) devidamente registrado pelo órgão de vigilância sanitária.


Também aqui, onde anteriormente não é possível encontrar um medicamento que necessariamente satisfaça os mencionados requisitos a), b) e c), não poderemos falar em medicamento genérico.


Mais ainda, o medicamento genérico, porque pressupõe a existência anterior do medicamento de referência e, porque este último é (ou foi, em um momento determinado) necessariamente inovador, pressupõe a proteção por direito de patente.


Isto posto, retomo a definição proposta pelo Professor José Gomes Canotilho na entrevista em comentário, quando define o medicamento genérico como um “grande plágio”.


O conceito jurídico de plágio está relacionado às criações originais protegidas pelo direito de autor. Plagiar implica na dissimulação do aproveitamento da expressão criativa alheia. Vale dizer, o plágio não se deixa simplesmente definir no aproveitamento descarado da criação intelectual de terceiro em nome próprio, mas pressupõe um algo mais, isto é, o “maquiar” a usurpação da obra alheia. Quem comete plágio “copia” a obra de terceiro criando, concomitantemente, a ilusão de que não está a “copiar”. Onde falta o elemento da dissimulação não se pode falar em plágio, mas antes apenas em cópia.


Um medicamento, como acima expliquei, só poderá ser qualificado como genérico se em evidente e comprovada vinculação a um outro medicamento de referência anterior. Daí, porque a vinculação ao medicamento de referência é pressuposto de definição do ser medicamento genérico, a alusão à figura jurídica do plágio não tem sentido. Insisto em que a qualificação de um medicamento como genérico exclui necessariamente o elemento da dissimulação de cópia. Na verdade, o professor lusitano faz uso na entrevista em tela da figura jurídica do plágio equivocadamente, como sinônimo de mera cópia[3]. E também porque por via indireta refere-se ao medicamento genérico como simples cópia, equivoca-se, posto o medicamento genérico não ser mera cópia, mas antes cópia certificada pelo órgão sanitário competente, isto é, comprovadamente bioequivalente ao medicamento de referência.


Além do equívoco de natureza técnica apontado, a menção ao plágio induz ainda o leitor a erro, posto ser exatamente a possibilidade de, findo o prazo de proteção exclusiva, o medicamento poder vir a ser livremente copiado, o que legitima a exclusividade temporária garantida ao medicamento de referência. Aqui uma noção elementar do direito de patente. Enquanto o uso do termo “plágio” reporta um conteúdo negativo – isto é, de usurpação de trabalho alheio – a identidade entre o medicamento genérico e o de referência é positiva, é jurídica e socialmente desejada e quanto a ela é inadmissível cogitar-se da noção de usurpação.


Sugerir que medicamento genérico seja um “grande plágio” é, se o caso não for de falta de conhecimento quanto ao sentido técnico da expressão, um artifício malicioso, pois sugere que o medicamento genérico seja usurpação (o que ele absolutamente não é), enquanto quer fazer parecer legítimo estender no tempo o domínio de um mercado altamente lucrativo por um único agente econômico, o produtor do medicamento de referência (o que absolutamente não é legítimo).


Ainda a seguinte declaração do professor entrevistado reclama reparo: “É uma garantia constitucional [a exclusividade garantida ao inventor] que não deve ser violada a não ser em casos de extremo interesse público, como no caso dos genéricos, e não nos moldes que ocorre no Brasil.”


Licença compulsória por interesse público (a tal “quebra de patente”) e medicamento genérico são termos referidos a conteúdos completamente distintos. O medicamento genérico não pressupõe “quebra de patente” alguma, posto que sua comercialização só é possível findo o prazo de proteção exclusiva.


Cumprida em parte a desagradável tarefa a que me propus neste comentário, resta ainda – o que causará desconforto maior – comentar a declaração do constitucionalista no sentido de que o produtor de um medicamento genérico não poderia relacionar sua bula a reações adversas determinadas, posto não ter ele próprio realizado nenhum teste que comprovasse o que afirma. O problema é que essa afirmação expõe – infelizmente – muito mais do que mero desconhecimento no que toca noções elementares de uma matéria jurídica sem dúvida complexa, a propriedade intelectual,[4].


Do ponto de vista jurídico, isto é, de sua valoração legal, o teste farmacológico relativo a um medicamento não se deixa apenas e simplesmente definir como esforço de natureza econômica, é também um pressuposto (condição) para a comercialização do medicamento. Esta faceta, que passa despercebida quando a postura de análise adotada é limitada apenas a uma preocupação centrada em interesses econômicos individuais, desponta evidente quando, em ilustração, imaginamos o que aconteceria com o produtor de um medicamento que decidisse não proceder aos tais testes farmacológicos. A resposta é simples: o medicamento não poderia ser introduzido no mercado e, consequentemente, não resultaria em vantagem econômica qualquer.


Em outros termos, se por um lado, para a elaboração dos mencionados testes é necessário proceder a investimentos, por outro lado, porque condição de comercialização, tais investimentos não traduzem um “favor” do produtor do medicamento à sociedade. Muito pelo contrário, testes farmacológicos expressam uma obrigação porque o consumo de medicamentos afeta de maneira direta e imediata a integridade física dos pacientes.


Neste momento, porque mencionei a integridade física dos pacientes (e aqui chego ao âmago da minha crítica), peço ao leitor imaginar o que significaria exigir que a eles fosse prescrito o medicamento genérico – isto é, o bioequivalente ao de referência – para que se comprovasse que a droga produz efeitos colaterais já anteriormente verificados em testes em outros pacientes. A qualidade de pessoa humana do “objeto” dos testes farmacológicos seria então completamente desconsiderada.


O simples cogitar-se da exigência de que testes farmacológicos já anteriormente procedidos com sucesso sejam repetidos em relação a um medicamento genérico – para que, à custa disso, o produtor do medicamento de referência não mais protegido por direito de patente possa estender no mercado a posição confortável de único produtor da droga – consubstancia uma aberração jurídica. O caso aqui é de evidente degeneração de valores jurídicos.


O que vale mais no Brasil? Algumas dúzias de pacientes não sofrendo desnecessariamente as reações adversas já anteriormente conhecidas e cientificamente comprovadas ou os investimentos procedidos para a realização dos testes farmacológicos referentes ao medicamento de referência, testes que consubstanciam pressuposto para a autorização de comercialização – uma obrigação legal – de um produto farmacológico que, por sua vez, por ter contido uma invenção, já foi objeto de proteção exclusiva por direito de patente por um lapso de tempo significativo? O que valeria mais em Portugal[5]?


No momento em que se cogita propor a discussão nestes termos, estamos considerando o ser humano, intencionalmente ou não, como semelhante a um objeto inanimado. E por esta razão, porque o raciocínio pressupõem ignorar a dignidade do ser humano como o valor fonte do ordenamento jurídico brasileiro, recuso-me aqui a aceitá-lo.


Termino assim este comentário recordando a lição de Kant[6]: “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, poderá ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade” (uma forma simples de explicar àqueles que desconhecem as diferenças valorativas entre um objeto inanimado, que tem um preço, e um paciente, que tem dignidade). E ainda, “aja de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua própria pessoa, como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.”  (grifo meu).


Ao leitor bom entendedor a meia palavra bastará.


Olho pela janela de meu escritório, vejo o sol já baixo de um domingo ensolarado de outono europeu e dou-me conta de que passei boa parte do dia de descanso na frente de meu computador desenvolvendo um comentário sobre uma discussão chocante, antijurídica. Não resisto então a adotar uma postura pessoal e confessar ao leitor que desejo a ele, a mim e a todos os meus semelhantes, o que inclui os advogados que patrocinam a repetição dos testes farmacológicos, os juízes que acatam tais pleitos e os professores que se manifestam publicamente apenas amparados por sua aura de autoridade, que se esvanece no presente momento[7], uma saúde de ferro



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[2] De forma simplificada, quando falamos em medicamento genérico nos referimos a uma cópia necessariamente certificada pelo órgão sanitário competente. Falar em mera cópia de medicamento não remete, assim, ao mesmo conteúdo a que respeita a expressão medicamento genérico, posto não pressupor a certificação (comprovação, pela autoridade, da bioequivalência do medicamento posterior em relação ao anterior).


[3]  Ainda na entrevista em comentário o Professor José Gomes Canotilho, discorrendo sobre a falta de tempo dos brasileiros, sejam alunos ou professores, em se dedicarem aos estudos, afirma serem, os trabalhos acadêmicos, “grandes plágios”. Sem menosprezar o valor da crítica em relação à falta de tempo para os estudos, que considero acertada, por certo os trabalhos acadêmicos brasileiros não são grandes plágios. Podem mesmo até serem trabalhos nos quais seus autores pouco dizem de novo ou original, nos quais geralmente a tendência é citar demais e pouco se posicionar pessoalmente, já que não teriam muito tempo disponível para estudar. Mas isto não faz desses trabalhos plágio. Tendo em vista o que plágio de fato é e suas sérias consequências jurídicas, as palavras de um jurista estrangeiro em uma entrevista concedida a um periódico dirigido a um público também de juristas, voltado a veicular trabalhos acadêmicos brasileiros, palavras que relacionam trabalhos acadêmicos à noção de usurpação só não serão qualificadas como temerárias porque não posso afirmar com certeza que o entrevistado de fato conheça o sentido técnico do vocábulo plágio.


[4] De forma sucinta, para o leitor que desconhece o contexto que deu ensejo a declaração em análise, os titulares de direitos sobre os dados referentes aos testes farmacológicos elaborados em relação ao medicamento de referência pretendem proibir à ANVISA a concessão de registro sanitário aos medicamentos genéricos sem que tais testes sejam repetidos.


[5] Em Portugal, aliás, um país membro da União Europeia e portanto sujeito as normas da Directiva 2010/63/EU, a repetição de testes farmacológicos já realizados com sucesso e, assim desnecessários do ponto de vista científico, é até mesmo expressamente proibida em animais.


[6] Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, in Werke, Akademie-Ausgabe, Band 4, Berlim 1903.


[7] Com estes guardo a semelhança de gênero humano, mas não de posição ética.


 


Karin Grau-Kuntz é doutora e mestre em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha, e coordenadora acadêmica do IBPI – Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual.

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