Pedro Marcos Nunes Barbosa e Newton Silveira
Com relação à causa (i) da sanção, o Código de Defesa do Consumidor rege a proscrição de que publicidades sejam emanadas de forma escamoteada.
Em recente reportagem noticiada pela Folha¹ foi destacado: o CONAR² advertiu (a) famosa multinacional do setor de alimentos³ e (b) um “influenciador” digital (Sr. Enaldo Lopes) em virtude de um ilícito de teor publicitário. Tal conduta sancionada dizia respeito a determinado concurso quantitativo para o consumo de KitKats captado por peça audiovisual. Nesta esteira, a advertência do CONAR teve duas diferentes causas: (i) a exposição de mensagem sem que se informasse tratar de publicidade; e (ii) o próprio endosso ao consumo exacerbado de chocolate44.
Com relação à causa (i) da sanção, o Código de Defesa do Consumidor5 rege a proscrição de que publicidades sejam emanadas de forma escamoteada6. Tal fundamento legislativo é mesmo oportuno, pois além de coibir formas embusteiras de influenciar o padrão de compra pelo destinatário, também ajuda o consumidor a entabular o grau de confiabilidade da mensagem, tendo em vista tratar-se de conteúdo parcial. Ou seja, estando cônscio de que o recado emana de vetores pagos, o consumidor pode melhor exercer seu senso crítico sobre os comuns exageros7 ou verve tendenciosa8 do emissor. Por fim, neste aspecto, ainda há uma questão afeita à sindicabilidade9 do anunciante. Ciente de que não se aceita clandestinidade quanto à origem da indicação de seus bens, o emissor tende a se preocupar com o grau da qualidade informacional e a planejar qual será o risco assumido por hipérboles comunicativas.
Voltando ao caso em tela, a Folha divulgou o posicionamento da companhia no sentido de que não teria atuado comissivamente junto ao Sr. Lopes na confecção do teor audiovisual. Presumindo-se a veracidade do relato feito pela sociedade empresária, trata-se de fato delicado apto a atrair algumas reflexões. Como um direito de propriedade contextual10, o registro de marca faculta o seu titular a excluir terceiros da utência do teor simbólico em alguns contextos. Assim, por exemplo, o proprietário pode fazer uso de pretensão para precatar ou reprimir utilizações que seus concorrentes façam com seu signo, dentro da especialidade¹¹ para o qual ele está protegido.*
A especialidade é mesmo a medida da proteção outorgada pelo sistema jurídico, já que a Ordenação constitucional vigente não outorga, como regra¹², proteção extra classe. Nesta toada, o saudoso Prof. Denis Borges Barbosa ao abordar a malfadada tese do aproveitamento parasitário fora do eixo concorrencial explicita que: “A prudência impõe exame muito cuidadoso dessa pretensão. Punir o enriquecimento sem causa, em todos casos, corresponderia a premiar a uma causa sem empobrecimento, impedindo a livre iniciativa. Tese difícil, esta, quando se nota que os sistemas constitucionais enfatizam a liberdade da concorrência, ou seja, que só em defesa desta mesma concorrência, ou do interesse geral, se pode empatar a livre iniciativa alheia. A teoria do parasitismo em estado puro, assim, é uma tese comunista, ou imponderada, ou intelectualmente desonesta”¹³.
Todavia, mesmo alheios à autonomia privada do proprietário, um concorrente não seria proibido de utilizar o símbolo alheio para fazer uma publicidade comparativa14, tal como um canal de televisão não poderia ser atravancado de divulgar uma pesquisa de opinião15 sobre aquele produto. Muitas vezes a divulgação de uma marca alheia se dá em um contexto crítico áspero16, como a exteriorização de fiscalizações de ANVISA que informem o contraste entre a bula (descrição formal) e o que foi encontrado (realidade) no exercício do Poder de Polícia. Nenhum direito de propriedade intelectual serve à censura, ao estorvo do livre fluxo das ideias ou mesmo à cultura17. **
Coteje-se a hipótese de (b) ter exibido o produto e a marca de (a) sem o consentimento da última. Fizera ele uma utência elogiosa ou crítica, poderia a proprietária censurar o seu discurso? A resposta tenderia a ser negativa. Seja pelo princípio da especialidade (Sr. Lopes não é concorrente), pela lógica da exaustão18 dos direitos (Sr. Lopes comprou o chocolate e fará com o bem de consumo o que lhe aprouver) ou pela liberdade de expressão; apenas uma atitude abusiva do emissor poderia ser circunscrita.
O sufixo da matéria da Folha, entretanto, enuncia um detalhe relevante. Mesmo que (a) não tenha colaborado com a peça “influenciador” (b), ela se manteve inerte após sua divulgação e popularidade19. Seria a conduta omissiva da multinacional incompatível com a ética publicitária de que trata o CONAR? Novamente a questão é sofisticada. Uma resposta a este debate sútil resta na segunda causa que gerou a advertência pelo ente regulatório.*
O Brasil é um país de muitos contrastes. Ao mesmo tempo em que há forte regulação restritiva da utilização publicitária e do empenho de marcas nas searas tabagistas e de bebidas alcóolicas, há em curso funtor de descriminalização20 de outras tantas drogas. Se existe uma tendência à obesidade pelos hábitos de alimentação e de exercício por parte da população, também é complexa a elaboração de uma pauta informacional/educativa que seja emancipadora sem recair nos males paternalistas21.
Competições sobre quem come mais cachorros-quentes²², pizzas²³ e outras iguarias (de baixo teor nutricional e alto teor calórico) são bastante corriqueiras e, quiçá, tradicionais24. Aliás, há até mesmo um programa de televisão no Food Network – nesta toada de alimentação histriônica – denominado “Man v. Food”. Fato é que entre os pecados capitais, apenas aquele pertinente à gula é exibido em canais de televisão sem maiores restrições quanto à classificação etária. Ao menos para estes escribas, desconhece-se festival ou concurso de consumo quantitativo de saladas orgânicas. Hábitos virtuosos não costumam ser publicitariamente apetitosos25.
In casu, o cuidado regulatório do CONAR cotejou a indução – por um influenciador (com predominante apelo ao público juvenil) – sobre o consumo imoderado26 de uma guloseima calórica. Se não há restrições ao comércio do produto em si, a própria interlocução que exalte a deglutição do doce tende à ilegitimidade.
Quando se concebe que a titularidade sobre uma propriedade de marca engendra um vínculo, simultâneo e potente, entre: (i) o originador (em geral o publicitário que concebeu o signo); (ii) o titular (o proprietário), seus licenciados e distribuidores; (iii) o Estado (que fiscaliza e constitui a propriedade da marca); (iv) os concorrentes; (v) os consumidores; e (vi) o meio-ambiente; fica mais fácil compreender o por quê de os sujeitos (ii) do plexo nem tudo poderem. A relação jurídica poliédrica27 e complexa exige que o proprietário observe os demais núcleos de interesse, para que a razão da tutela da marca (“tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”28) seja densificada.
Se a marca além da função jurídica também é vista, em sua ratio publicitária29, como técnica de aglutinação reputacional30; a maneira com a qual se avia determinado discurso poderá ser eficiente para reduzir os custos de transação. Ao invés de perder tempo descrevendo as características do produto/serviço, o comunicólogo cita ou mostra o produto marcado, e entabula atalho informacional ao destinatário final. Ou seja, pode-se utilizar a reputação do produto marcado como gatilho consumerista para um público hipossuficiente, tal qual o caso dos telespectadores juvenis do “influenciador”. Ademais, o próprio discurso do profissional de redes sociais (b), no contexto dirimido pelo CONAR, era emotivista³¹ e instigante.
Portanto, o CONAR agiu bem ao pontuar que a leniência da titular (a) em exercer sua faculdade proprietária em desfavor de (b) seria causa legítima à sua advertência. Afinal de contas, a Propriedade Intelectual também deve bem servir aos não-proprietários, de modo que a função social da titularidade das marcas engendre consequências aos beneficiários pelos focos de “espontânea” publicidade. Dentro da ratio de um antigo adágio – que acabou sendo mimetizado pela cultura “pop” do tio (Ben Parker) do “Homem-Aranha”: “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.
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1 CUNHA, Joana. Conar adverte Nestlé e Influencer após competição para comer 16 Chocolates. São Paulo: Folha de São Paulo, Coluna Painel S.A, 03.06.2022, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2022/06/conar-adverte-nestle-e-influencer-apos-competicao-para-comer-16-chocolates.shtml.
2 Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária.
3 Inclusive, trata-se de uma das poucas sociedades empresárias titulares de signo de alto renome no Brasil: marca registrada sob o número 811276503, com tutela extraclasse para o signo “Ninho”.
4 Além do Código Brasileiro de Autorregulamentacão Publicitária ter regras gerais sobre o tema, tendo em vista o mercado de guloseimas, há um anexo próprio “H”, que comanda: “1. Além de atender aos preceitos gerais deste Código, os anúncios de produtos submetidos a este Anexo deverão: (.) abster-se de encorajar ou relevar o consumo excessivo nem apresentar situações que incentivem o consumo exagerado ou conflitem com esta recomendação”. Disponível em http://www.conar.org.br/codigo/codigo.php.
5 Lei 8.078/90: “Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”.
6 “De outro lado, um dever de informação amplo e geral dirigido a todos os possíveis consumidores do produto ou serviço, mediante a veiculação de uma publicidade que não apenas seja honesta e verdadeira, como possa ser facilmente identificada como tal (art. 36, CDC)” STJ, 3ª Turma, Min. Pauto de Tarso Sanseverino, REsp 1.599.423/SP, DJ 28.11.2016.
7 “Demasia se tem muitas vêzes no ato publicitário, em razão do qual alguém se exceda no apregoar as virtudes de seus produtos, importando a sua vanglória na denegrição indistinta de produtos idênticos de procedências diversas. Tem-se entendido, quanto a isso, e até judicialmente decidido, não constituir ato de concorrência desleal a exaltação, ainda que exagerada, das vantagens de um produto nem a superlativa” FERREIRA, Waldemar Martins. Tratado de Direito Comercial. V.7º, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 273.
8 DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e Direito. São Paulo: Editora, Revista dos Tribunais, 2010, p. 28.
9 Na ironia do crítico literário italiano, “O que vocês nos obrigaram a fazer. De quantas culpas nossas vocês são responsáveis. Jamais perdoaremos vocês pelo que ?zemos” GIGLIOLI, Daniele. Crítica da Vítima. Traduzido por Pedro Fonseca. 3ª Edição, Belo Horizonte: Âyiné, 2020, p. 74.
10 “O registro de marcas resulta na apropriação de uma expressão ou símbolo visual, extraindo do universo das potencialidades semiológicas um determinado complexo significativo, cujo uso torna-se exclusivo ao titular para determinados contextos” BARBOSA, Denis Borges. Proteção das Marcas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, e-book, p.9
11 “Em consequência do processo de criação da marca resulta o chamado princípio da especialidade: a não ser em casos excepcionais, o direito exclusivo sobre a marca só opera em relação a produtos concorrentes, sendo lícita a utilização de marcas idênticas ou semelhantes por empresários diversos para assinalar produtos de ramos de indústria e comércio diferentes” SILVEIRA, Newton & SANTOS JÚNIOR, Walter Godoy. Sinais Distintivos. 2ª Edição, São Paulo: Quartier Latin, 2021, e-book p. 22.
12 Tal não significa inexistirem julgados em sentido diverso, a exemplo do feito do TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Claudio Godoy, AC 1113629-33.2017.8.26.0100, J. 25/06/2018. Fato é que o STJ e a melhor doutrina endossam entendimento pela proteção contra a concorrência parasitária, mas não contra o parasitismo sem concorrência afora as hipóteses de marcas de alto renome.
13 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 282.
14 “A despeito da ausência de abordagem legal específica acerca da matéria, a publicidade comparativa é aceita pelo ordenamento jurídico pátrio, desde que observadas determinadas regras e princípios concernentes ao direito do consumidor, ao direito marcário e ao direito concorrencial, sendo vedada a veiculação de propaganda comercial enganosa ou abusiva, que denigra a imagem da marca comparada, que configure concorrência desleal ou que cause confusão no consumidor. Precedentes” STJ, 3ª Turma, Min. Nancy Andrighi, REsp 1.668.550/RJ, DJ 26.05.2017.
15 “Nem sempre o verdadeiro é indolor” SOFOCLES. As tranquínias. São Paulo: Editora 34, 2014, p. 45.
16 “Lições mais contundentes. Você aprendeu penas daqueles que o admiraram e foram carinhosos com você e abriram caminho para você? Você não aprendeu com aqueles que o rejeitaram ou se uniram contra você? (.) Ou que travaram disputas com você” WHITMAN, Walter. Folhas de Relva. Traduzido por Bruno Gambarotto. São Paulo: Hedra, 2011, p. 411.
17 “O direito de excluir os outros da terra pode permitir ao proprietário construir uma cerca, mas não instalar minas à volta do perímetro” VANDEVELDE, Kenneth J. Pensando Como Um Advogado. 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 43.
18 Lei 9.279/96: “Art. 132. O titular da marca não poderá: (.) III – impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 68”.
19 Em peça anterior do Sr. Enaldo Lopes de 2018, verbi gratia, o comunicador exaltava versões internacionais do KitKat e teve mais de 1.4 milhões de visualizações no canal do YouTube. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vvMxAog394w.
20 Sobre o tema, aguarda-se a continuidade do julgamento pelo Pretório Excelso no caso STF, Min. Gilmar Mendes, REx 635.659/SP, após o pedido de vista do Min. Alexandre de Moraes.
21 “Cada um é o guardião de sua própria saúde, seja ela física, mental ou espiritual. A humanidade é a grande vencedora ao permitir que cada um viva como lhe pareça melhor” MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. São Paulo: Hedra, 2010, p. 53.
22 Joey Chestnut se sagrou vencedor em 2019 com o consumo de 71 sanduiches: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/07/04/homem-come-71-cachorros-quentes-em-10-minutos-e-vence-concurso-nos-eua.ghtml.
23 O mesmo Joey Chestnut venceu a disputa sobre pizzas em 2008 comendo 45 pedaços de pizza: https://g1.globo.com/Noticias/PlanetaBizarro/0,,MUL796659-6091,00-AMERICANO+COME+PEDACOS+DE+PIZZA+EM+MINUTOS+E+LEVA+US+MIL.html
24 “Os tiranos romanos perceberam que ainda podiam lançar mão de outro expediente: festejar com frequência as decenais públicas, ludibriando a ralé que se deixa levar, mais do que por qualquer coisa, pelo prazer da comida. Nem o mais sensato e inteligente dentre eles largaria sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da república de Platão” BOÉTIE, Etienne de La. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução e apresentação: Gabriel Perissé. São Paulo: Editora Nós, 2016, p. 53.
25 “Porque ninguém pode comunicar o que não possui, nem ensinar o que ignora” PLATÃO. O banquete. São Paulo: Edipro, 2009, p. 54.
26 “E quanto à moderarão? Será que nossos jovens também a necessitarão?” PLATÃO. A República (ou da justiça). Tradução de Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2006, p. 135.
27 Na análise relacional dos direitos de propriedade intelectual seja permitida menção ao nosso BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 17.
28 Constituição da República Federativa do Brasil: art. 5º, XXIX.
29 PORTO, Patricia Carvalho da Rocha. Quando a Propriedade Industrial Representa Qualidade. Marcas coletivas, Marcas de Certificação e Denominações de Origem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 22.
30 LANDES, William M & POSNER, Richard Allen. The Economic Structure of Intellectual Property Law. EUA: Harvard University Press, 2003, p. 252.
31 “O emotivismo, tal como estritamente estipulado neste trabalho, consiste em uma estratégia argumentativa exteriorizada por meio de uma linguagem dotada de elevada carga conotativa, empregada com a finalidade de persuadir seus destinatários mediante a provocação de emoções” ÁVILA, Humberto Bergmann. Constituição, Liberdade e Interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 69.
Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.
Newton Silveira
Diretor-geral do Instituto Brasileiro De Propriedade Intelectual. Sócio do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados – Advogados.
Fonte: Migalhas