Newton Silveira*

 

1)        Pela Resolução nº 3.428, de 12 de maio de 1988, o então reitor José Goldenberg editou normas acerca de patentes de invenção resultantes de pesquisas realizadas na Universidade de São Paulo e sobre a participação do inventor em direitos e obrigações nessas patentes de invenção. 

O art. 1º determinou que as invenções resultantes de pesquisas realizadas na USP serão objeto de pedido de privilégio de invenção e, no art. 2º, que, no pedido de privilégio, figurará sempre como requerente a Universidade de São Paulo e como inventor o autor ou autores da invenção, assegurando-se, pelo art. 3º, a divisão entre a Universidade e o inventor, em partes iguais, dos proventos que advenham da utilização e cessão da patente. 

Na ocasião em que o Magnífico Reitor cogitou dessa normativa, fui consultado a respeito através do então diretor da Faculdade de Direito da USP, Prof. Dalmo Dalari. 

Aparentemente, a norma daquela Resolução contrariava a Lei de Propriedade Industrial, que estabelecia a copropriedade dos inventos realizados por empregado ou prestador de serviços, no caso de a invenção ter resultado da contribuição pessoal do empregado e de recursos, dados, meios materiais, instalações ou equipamentos do empregador. No entanto, essa norma ressalvava expressa disposição contratual em contrário. Assim, pela Resolução em comento, aplicou-se a regra geral no sentido de que a invenção e o modelo de utilidade pertencem exclusivamente ao empregador, quando decorrerem de contrato de trabalho e que tenham por objeto a pesquisa ou atividade inventiva. 

A resolução nº 3.428 foi substituída pelas Resoluções nº 3.454, de agosto de 1988, e nº 3727, de agosto de 1990. Finalmente, a vigente Resolução nº 7.035, de 17 de dezembro de 2014, veio a regular a matéria, incluindo os programas de computador e excluindo os direitos autorais, embora o software seja objeto da Lei da Direitos Autorais, mas consiste em criação técnica. 

O art. 3º, I, engloba as invenções, modelos de utilidade, desenhos industriais, marcas, programas de computador, topografias de circuitos integrados, cultivares e qualquer outro desenvolvimento tecnológico, ou seja, toda propriedade intelectual, exceto os direitos autorais sobre obra artística. O nº II do mesmo art. 3º define como criação da Universidade a que resulta de sua atividade regular ou de projeto de pesquisa ou extensão tecnológica ou realizada com a  utilização de equipamentos, recursos, instalações, dados, meios ou materiais da Universidade ou ainda com a participação de pessoal a ela ligado, com ou sem vínculo funcional ou relação de emprego, com docentes, pesquisadores, estudantes, bolsistas, pesquisadores de pós-doutorado, especialistas externos e aposentados, estes com termo de adesão. 

Dessa forma, o art. 4º estabelece que os direitos patrimoniais sobre as criações referidas no art. 3º pertencem à Universidade em caráter exclusivo. No entanto, o parágrafo único admite a partilha em caso de parceria da Universidade com empresas ou entes externos. 

O art. 6º se refere à Agência USP de Inovação, sucessora do GADI – Grupo de Apoio ao Desenvolvimento de Invenções da USP, do qual fui membro inicial por nomeação do Reitor Goldenberg. A agência USP é responsável pela gestão da Política de Inovação e pela proteção dos direitos patrimoniais sobre criações a Universidade. 

Pelo art. 11, compete ao coordenador da Agência USP de Inovação providenciar o registro junto aos órgãos competentes nacionais e internacionais. 

Na conformidade do art. 28, os ganhos econômicos da Universidade advindos da exploração de criações deverão ser divididos entre os criadores (30%), os departamentos (45%), as unidades dos criadores (10%), a Reitoria (5%) e a Agência USP de Inovação (10%). 

Uma pesquisa perante o INPI em nome do inventor Adib Domingos Jatene localizou 16 pedidos de patentes entre 1982 e 2013, constando como requerentes ou titulares em alguns a Universidade de São Paulo, a Fundação Zerbini e Macchi Engenharia e Biomédica Ltda., bem como o próprio ex-ministro da Saúde particularmente. Perquirido o Dr. Adib Jatene a respeito, afirmou ele que a maioria dessas invenções foram por ele realizados particularmente em sua própria residência. 

2)        Como é geralmente conhecido, a partir da Lei de Propriedade Industrial nº 9.279 de 1996 passaram a ser patenteáveis os produtos farmacêuticos e seus processos de fabricação. Não obstante, permanecem como não patenteáveis as técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico (art. 10, VIII), bem como todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza (art. 10, IX e art. 18, III). 

Não poderia deixar de trazer à colação a discutida questão das patentes de segundo uso, objeto da 6ª edição de meu Propriedade Intelectual, pag. 131 e ss., do qual transcrevo:

PATENTES DE SEGUNDO USO

As patentes de uso se incluem ao lado dos processos de fabricação de novos produtos ou de obter resultados industriais. Os usos privados não são privilegiáveis, por expressa exclusão legal. Os novos usos de produtos farmacêuticos conhecidos se incluem nessa categoria de invenções não privilegiáveis. Isso não significa que produtos da biotecnologia não sejam patenteáveis na medida em que se prestem à fabricação de novos produtos úteis.

Atividade inventiva

Muito se tem discutido a matéria de patentes de 2º uso na área farmacêutica.

Alegam os requerentes desse tipo de patente que o 2º uso se refere ao mesmo medicamento (a mesma formulação) usado para o tratamento de outra enfermidade.

Onde estaria a diferença?

Na indicação terapêutica, ou seja, na bula. Sem bula, o medicamento é o mesmo.

Daí a discussão surgir na área farmacêutica, já que o medicamento não pode ser vendido sem bula.

Seria o caso de direito autoral sobre a bula?

Evidentemente, quem compra um martelo pode usá-lo para bater bife, em lugar de usá-lo para bater pregos. Isso é possível porque o 2º uso não está escrito na bula do martelo. Esse utensílio não tem indicação terapêutica.

Exemplo recente e menos fantasioso pode ser retirado da Apelação cível n. 9070658-28.2002.8.26.0000 do TJSP, em acórdão da lavra do eminente Des. Enio Zuliani (relator).

A ementa do Acórdão proferido em 22.09.2011 pela 4ª Câmara de Direito Privado do TJSP tem o seguinte teor:

Autores que pretendem proteção de exclusividade de invento (spray de tinta que árbitros de futebol utilizam para sinalizar, na grama, as penalidades de jogo). INPI que negou a patente requerida por falta do requisito criatividade ou novidade (art. 13, da Lei n. 9.279/96). Apetrecho que não constitui invento, mas, sim, ideia de utilização prática de dispositivo comum. Improcedência mantida. Não provimento.

É importante assinalar o seguinte trecho do voto do Des. Zuliani:

O spray é ferramenta comum para o serviço de pintura e desenho e não há invento algum em aproveitar a sua função para demarcar território das arenas futebolísticas com o propósito de fixar o local exato para colocar a bola a ser chutada ou para estabelecer a linha de barreira dos jogadores que protegem o gol. A ideia de utilizar isso no campo de grama foi brilhante e serviu para corrigir um problema crônico da arbitragem, o que não significa invento digno de patente ou de privilégio, como pretenderam os autores.

Diferente seria se uma indústria de spray o colocasse no mercado com bula, expressamente indicando o novo uso do spray. Caso contrário, os titulares dessa esdrúxula patente deveriam estar presentes em todos os jogos de futebol, munidos de competente mandado judicial para apreender o spray tão logo o árbitro o utilizasse para o novo uso.

Patentes de uso

O art. 42 da Lei de Propriedade Industrial dispõe:

“A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos:

I – produto objeto de patente;

II – processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado”.

Assim, o titular de uma patente de 2º uso não pode impedir terceiros de produzir o medicamento, pois ele é idêntico ao de 1º uso (que se acha em domínio público). Também não pode impedir terceiro de colocar à venda, vender ou importar o medicamento, pela mesma razão: a formulação se acha em domínio público.

Resta do caput do art. 42 o verbo usar. Mas quem usa o produto não é quem fabrica ou comercializa. Quem usa o produto em 2º uso é o consumidor. Este se acha coberto pela exceção do inciso I do art. 43, que isenta os atos praticados por terceiros não autorizados em caráter privado e sem finalidade comercial.

O que resta então?

Anunciar, na embalagem ou na bula, a nova destinação do medicamento. Anunciar, então, seria o verbo que se aplicaria. No entanto, esse verbo não se acha nas previsões do caput do art. 42, redigido em obediência ao Acordo TRIPs.

Além do mais, tal proibição significaria violação ao direito constitucional de livre expressão.

Não se vislumbra, assim, enquadramento algum nos verbos previstos no art. 42: produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar.

Vejam-se os dois incisos do art. 42: produto objeto de patente – não é o caso, como exposto; processo patenteado – também não é o caso, pois não se trata de processo; portanto, também não se trata de produto obtido por processo patenteado.

Qual poderia ser o teor de uma sentença proferida num processo de contrafação de patente de 2º uso? Proibir o réu de praticar 2º uso, ou sugerir ao consumidor tal 2º uso?

Como se vê, não se trata de falta de atividade inventiva, mas de falta de previsão legal. Ou falta de lógica.

Imaginemos um caso real de 2º uso.

Os nazistas inventaram tomar champanhe num sapato feminino. O champanhe continua sendo fabricado e vendido pelas fábricas de bebidas; os calçados pelas fábricas de sapatos.

Mas a venda de uma garrafa de champanhe ao lado de um sapato feminino em embalagem transparente seria um 2º uso de exclusividade do III Reich. Uma espécie de patente de comercialização.

Ainda um aperfeiçoamento poderia ser acrescentado: um sapato impermeável para não vazar o champanhe. Esse sapato também serviria para ser usado em dias de chuva. Terceiro uso.

Novidade

Ananda Chakrabarty, pesquisador do MIT (Massachusetts Institute of Technology), inventou uma bactéria engenheirada que digeria petróleo, colaborando com a limpeza ambiental.

O USPTO (United States Patent and Trademark Office) denegou a patente por considerar que matéria viva não é patenteável.

Chakrabarty foi à Suprema Corte, que determinou que o USPTO concedesse a patente porque tudo de novo sob o sol criado pelo homem deveria receber uma patente.

Posteriormente, tentou-se nos Estados Unidos patentear genes modificados. A matéria foi considerada não patenteável porque não basta haver novidade, há que ter também uma nova utilidade.

O Acordo TRIPs  de 1994 veio a estabelecer as regras de patenteabilidade, exceto de microrganismos e processos essencialmente biológicos.

Em consonância, a Lei de Propriedade Industrial brasileira veio a considerar não invenções o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, exceto os microrganismos transgênicos, que não sejam mera descoberta.

Tudo isso significa que aquilo que existe na natureza não pode ser patenteado, mesmo que tenha uma nova utilidade, até então desconhecida.

Ou seja, tudo que se acha sob o sol não é novo e não pode ser patenteado.

Uma raiz amazônica que cura hemorroidas não pode ser patenteada em seu estado natural, nem mesmo em forma injetável.

Ora, medicamentos que já caíram em domínio público equivalem às coisas naturais, todos já sob o sol. Da mesma forma que um microrganismo tal como encontrável na natureza não é patenteável, mesmo que se descubra para ele uma nova utilidade, medicamentos já conhecidos não poderão ser repatenteados para uma nova finalidade.

Se se descobrir que um medicamento utilizado para disfunção erétil também serve para curar enxaqueca, teríamos duas embalagens diferentes, uma para uso masculino, outra para uso feminino? Ou poderíamos ter uma embalagem unissex com duas bulas, uma azul e outra cor-de-rosa?

Conta-se que a Salvador Dali foi encomendada a elaboração do design de um frasco para um novo perfume.

No dia do lançamento do perfume, o artista se esquecera da encomenda. Levado ao palco sob o espocar dos flashes, perguntou-se: Mestre, e o projeto? Catando do chão uma lâmpada de flash e batendo-a na mesa para ficar de pé, Dali a apresentou como o novo modelo. Perguntado sobre a marca, respondeu: a marca é flash.

Mais um caso de 2º uso.

Meio industrial

Gama Cerqueira, no vol. I de seu Tratado (n. 68), afirmou:

“A invenção, de modo geral, consiste na criação de uma coisa inexistente na natureza”.

Ou, mais adiante:

A coisa inventada deve ser diferente do que já é conhecido” (n. 71).

E ainda mais:

Reconhecer que um produto natural ou fabricado possui certas propriedades e indicar o proveito que delas se pode tirar não é inventar (n. 74). 

No entanto, afirma-se que Gama Cerqueira admitia a concessão de patentes de 2º uso. Antes de mais nada, certamente não se tratava de 2º uso farmacêutico, já que é notório que o autor considerava razoável não se conceder patentes a medicamentos.

No vol. II prosseguia Gama Cerqueira: “Somente os produtos fabricados ou elaborados pelo homem podem ser objeto de patente. Mas os processos e métodos destinados à produção, tratamento e exploração industrial dos produtos naturais podem ser privilegiados, assim como a aplicação nova desses produtos para obter um outro produto ou um resultado industrial”(n.26).

Ou seja, a ideia de nova aplicação não pode se referir a produto, como exposto. Pode, no entender de Gama Cerqueira, achar-se entre os processos e métodos para produzir um resultado industrial. Será então um meio industrial para obter um produto ou outro resultado. Na indústria. 

Considerações Finais

É muito possível e provável que, passados quase setenta anos dos estudos de Gama Cerqueira, a doutrina deva se adaptar aos novos tempos, principalmente na época da biotecnologia, dos genes e da nanotecnologia.

Mas sem perder a noção dos princípios que regem a criação intelectual e sua apropriação.

 

* Palestra apresentada no Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP.

* Prof. Sênior na Pós-graduação da Faculdade de Direito da USP.

 

Anterior

Anvisa conquista vaga no Comitê Gestor do ICH

Próxima

Medicamentos: RDC dispõe sobre validade e regularização