Por Stella Fontes | De São Paulo
Telma Salles, da PróGenericos: “Isso tem permitido que empresas estendam o prazo de patentes de maneira ilegítima”
As farmacêuticas que atuam no segmento de genéricos estão batalhando para alterar o parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Intelectual, sob a alegação de que o texto cria distorções e, na prática, amplia o prazo de vigência da patente de medicamentos para além dos 20 anos previstos na legislação, a partir do depósito do pedido. A PróGenéricos, entidade que reúne esses laboratórios, calcula que o mercado de fármacos protegidos por esse dispositivo gire em torno de R$ 4 bilhões ao ano.
Para efeito de comparação, esse valor corresponde a quase 9% das vendas de medicamentos no varejo, considerando-se os descontos concedidos ao longo da cadeia, que se aproximaram de R$ 45 bilhões no ano passado. Em 2012, levantamento realizado pela indústria farmacêutica indicava que esse mercado “reservado” era menor, da ordem de R$ 1,6 bilhão por ano.
São remédios cuja patente já teria expirado ou estaria perto de se encerrar e poderiam chegar ao consumidor como genéricos. Mas que, diante do texto do parágrafo único do artigo 40 – que determina que o prazo de vigência não será inferior a dez anos para a patente de invenção e a sete anos para a de modelo de atividade, contados a partir da data de concessão pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) – e da demora de anos para análise do pedido, acabam protegidos por mais tempo.
“Isso tem permitido que empresas estendam o prazo de patentes de uma maneira ilegítima para a população, com atraso no lançamento de genéricos”, afirma a presidente-executiva da PróGenéricos, Telma Salles. Atualmente, mais de 130 patentes de medicamentos têm extensões enquadradas nesse dispositivo, entre os quais medicamentos considerados fundamentais para o tratamento de determinadas doenças.
No grupo, há princípios ativos que estão na lista de prioridades do Sistema Único de Saúde (SUS) e de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), que foram constituídas justamente para garantir a transferência de tecnologia e produção local de medicamentos cujas compras têm onerado os cofres públicos.
A PróGenéricos cita como exemplo o Intelence (Etravirina), de uso crônico por portadores do HIV, que perderia a patente em 2019 mas, em razão da demora na análise do pedido no INPI, está protegido até 2023. Outros tratamentos, destinados a doenças como aterosclerose (acúmulo de gordura nas artérias) ou distúrbio de déficit de atenção, estão sob a mesma condição e tiveram as patentes expandidas entre quatro e seis anos. “Isso onera o governo e o consumidor, lembrando que, de saída, o genérico é 35% mais barato que o medicamento de referência”, diz Telma.
Mais de 130 patentes de medicamentos têm extensões enquadradas em dispositivo da Lei de Propriedade Intelectual
De acordo com a presidente da PróGenéricos, no mundo, a concessão da patente de remédios leva em média cinco anos. No país, por causa de ineficiências no sistema, esse prazo sobe para 13 anos – na média, considerando-se todas patentes concedidas, o prazo do INPI foi de 10,9 anos em 2015. Além disso, o artigo 229 da lei de patentes estabelece a necessidade de anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que agrava esse quadro.
O pleito da indústria, que poderia ser resolvido pelo Poder Executivo – com maior dotação orçamentária para o INPI, por exemplo -, foi parar na Justiça e é objeto de duas ações diretas de inconstitucionalidade (Adins). Uma proposta pela Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), com colaboração da PróGenéricos. A outra, mais recente, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). A argumentação das Adins é que o parágrafo único do artigo 40 “fere o princípio da segurança jurídica, da isonomia, da livre concorrência e da defesa ao consumidor, promovendo impactos nocivos ao direito à saúde ao impedir o desenvolvimento da oferta de mais medicamentos de um determinado ativo”.
De acordo com o professor Roberto Nicolsky, diretor da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec), um dos gargalos no processo de concessão de patentes no país é a falta de autonomia administrativa do INPI. “Há carência de recursos, a receita não é repassada integralmente pela União, falta estrutura com permanente carência de pessoal”, diz Nicolsky. Diante disso, acrescenta, o parágrafo único cria uma “figura exótica, que permite ao Estado transferir sua ineficácia para o mercado, para a concorrência”.
O professor lembra que o artigo 40 da lei é bastante simples, aprovado pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, na sigla em inglês), de 1994. O texto do parágrafo único, porém, não está contemplado nesse acordo. “O problema é o parágrafo único”, reitera.
O INPI, por sua vez, reconhece a demora para exame dos pedidos de patente. Segundo o vice-presidente do instituto, Mauro Maia, o problema decorre da estrutura inadequada para isso INPI e também da necessidade de anuência prévia da Anvisa (no caso de medicamentos). “Esses fatores, combinados ao texto do parágrafo único do artigo 40, são a base para que os prazos não estejam sendo cumpridos adequadamente”, afirma.
Conforme Maia, algumas providências já foram tomadas, com a contratação de novos examinadores – 70 neste ano, que estão em fase de preparação, e ao menos outros 30 em 2017, que se somarão aos 200 profissionais já em atividade. Além disso, há um pedido para aproveitamento do cadastro reserva do último concurso, com 170 nomes. Ao mesmo tempo, o INPI já iniciou conversas com a Anvisa relacionadas à anuência prévia. “Podemos anunciar em breve uma solução efetiva”, afirma Maia. O vice-presidente do INPI diz entender que há entendimento quanto à situação fiscal do país e às consequências do prazo estendido das patentes na saúde pública. “Mas isso tem que ser sobrepassado”.
Fonte: Valor Econômico de 19/10/2016