Nelson Brasil de Oliveira*
Embalado pelo sucesso da política industrial que promoveu a implantação da petroquímica nos anos 70, o Conselho de Desenvolvimento Industrial vigente no Brasil nos anos 80 editou a Portaria Interministerial 04/84 destinada a promover fabricações locais na área da química fina, iniciativa também exitosa até o final dessa década.
Encantado pelo Consenso de Washington surgido em 1989, no início dos anos 90 o imaginário dos economistas tupiniquins passou a ver na promoção da produção interna que vinha ocorrendo no país como o objetivo de uma indústria local com baixa eficiência, que apenas buscava valer-se de barreiras não tarifárias para fazer lucros à custa da sociedade, numa estreita visão que levou o país a uma inepta abertura comercial realizada nos anos 90. Essa inconsequente reforma política, posto que levou de roldão tudo o que de bom fora construído, anulou o esforço desenvolvido na década anterior por agentes públicos e privados, resultando na cessação da produção em mais de mil unidades industriais e no encerramento de cerca de quinhentos projetos de desenvolvimento na área da química fina que estavam sendo implantados.
O ano de 2002 trouxe ao poder novas lideranças políticas que se opunham ao inconsequente liberalismo econômico ortodoxo praticado ao longo dos anos 90. Entre 2002 e 2006 o governo federal elaborou diagnósticos setoriais bastante detalhados, sinalizando para medidas que deveriam ser executadas no contexto de uma política industrial que definiu áreas prioritárias, dentre elas fármacos e medicamentos. No segundo mandato presidencial – período 2006 a 2010 – foi reforçada essa política industrial, ocasião em que começaram a ser definidas medidas práticas destinadas a apoiar o desenvolvimento de segmentos produtivos com o caráter prioritário já estabelecido – como fármacos e medicamentos, neste caso de produtos que representavam um déficit do balanço comercial da ordem de US$ 3,6 bilhões por ano (R$ 6,1 bilhões por ano).
O uso do poder de compra do Estado para o desenvolvimento socioeconômico do país é a melhor solução
Algumas iniciativas pioneiras, como a contratação da fabricação dos produtos antirretrovirais lamivudina e zidovudina, ocorrida em novembro de 2006 por Farmanguinhos/Fiocruz, e o licenciamento compulsório de Efavirenz, corajosa iniciativa do ministro da Saúde em maio de 2007, vieram a balizar o marco regulatório que veio a ser criado ao longo de 2008 por meio de portarias do Ministério da Saúde que regulamentaram a contratação da fabricação local de insumos estratégicos utilizados pelos laboratórios oficiais para atender as demandas do Sistema Único de Saúde (SUS).
Nesse cenário, entre 2009 e 2010, foram criadas até hoje vinte parcerias de desenvolvimento produtivo (PDP) nessa área, envolvendo 9 laboratórios públicos e dezessete empresas privadas, das quais 10 são nacionais e 7 são multinacionais, numa clara demonstração de que o que se busca é a fabricação local, com a consequente geração de emprego e renda no país, sem qualquer ranço xenófobo. Deve ser destacado que as vinte PDP criadas que se encontram em implantação já representam compras no valor de R$ 1,25 bilhão por ano, ou cerca de 20% do déficit nominal do balanço comercial brasileiro nessa área, com uma economia inicial do orçamento público de R$ 250 milhões por ano que, mais à frente, deverão atingir R$ 500 milhões por ano.
A despeito das dificuldades que vêm sendo verificadas na sua implantação, a criação de tais parcerias público-privadas para o complexo industrial da saúde constituiu o grande diferencial de política pública concebida pelo ministro, vis-à-vis ocupantes anteriores desse estratégico ministério.
O uso do poder de compra do Estado para o desenvolvimento socioeconômico do país é o grande caminho para a redenção de nossa dependência em áreas estratégicas, fato que tem sido desconhecido pelo gestor público e que põe em risco a própria soberania nacional. Esse magnífico instrumento de política pública vem sendo usado para o desenvolvimento de áreas estratégicas nos Estados Unidos desde 1932 por meio das preferências dadas nas compras públicas ao produto fabricado localmente, como determinado pelo Buy American Act.
A Petrobras sabiamente já vem utilizando seu poder de compra para desenvolver fornecedores próprios, com nítida preferência ao produto nacional. Agora o governo federal, ao editar a MP 495, alterou a Lei de Licitações para permitir um uso mais abrangente desse instrumento.
Embora no Brasil seja muito comum que novos dirigentes ao assumirem o poder, apresentem novas ideias para carimbar suas obras e “se esqueçam” de dar sequência ao que vinha sendo realizado a despeito de seu valor para a sociedade, na situação atual isso não deverá ocorrer, já que o o novo governo que acaba de se instalar traz a marca da continuidade administrativa.
Na área da saúde, o ministro Temporão marcou sua gestão pela sua pioneira ideia de articular o complexo industrial da saúde (CIS), para nele encaixar todos os atores que podem viabilizar um sustentado acesso da população aos estratégicos fármacos e medicamentos. E nesse ambiente incentivou a formação de parcerias público-privadas destinadas a fabricar localmente os produtos essenciais para a saúde da população brasileira que vinham sendo na sua quase totalidade importados – dessa forma anulando a capacidade produtiva nacional e fragilizando um sustentado acesso da população aos mesmos. O significado econômico e social dessa política tem que ser enaltecido e manter continuidade, balizando os caminhos a serem perseguidos nas novas administrações nessa estratégica área da saúde pública no Brasil.
* Nelson Brasil de Oliveira é vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina)
Artigo publicado no Valor Econômico em 03/01/2011 | Opinião