Os contratos de parcerias preveem que a tecnologia de produção do princípio ativo e/ou medicamento seja incorporada pelos parceiros brasileiros – a formulação final do medicamento pelo laboratório público e a produção do farmoquímico pelo laboratório privado nacional. Em relação às detentoras das tecnologias, em sua maioria estrangeiras, é oferecida pelo governo a garantia de aquisição, através de compras públicas, durante a vigência da PDP1. Isso significa que, até a incorporação completa da tecnologia de produção, os medicamentos continuam sendo fornecidos pela empresa detentora da tecnologia, atuando os laboratórios nacionais apenas como intermediários de venda.
O sucesso da PDP, permitindo que os laboratórios nacionais possam atuar em um patamar mais elevado de complexidade tecnológica, portanto, irá depender de suas capacitações tecnológicas para absorver a tecnologia transferida. O baixo perfil inovador e a experiência centrada em atividades de menor complexidade tecnológica na produção (formulação de genéricos) impõem grandes desafios aos laboratórios nacionais e exigem importantes investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para incorporar a tecnologia de produção, principalmente dos medicamentos biológicos, baseados na tecnologia de DNA recombinante, e inovar a partir dela.
Este artigo procurou avaliar a capacidade tecnológica dos laboratórios nacionais para absorver a tecnologia externa dos produtos biotecnológicos. A metodologia destacou a diferença entre os conceitos de capacidades tecnológicas operacionais, associado à produção e à comercialização de produtos, e o de capacidades tecnológicas inovativas, associado à mudança tecnológica2. A intensidade da capacitação tecnológica de cada empresa, por sua vez, é determinada pela ação combinada dos incentivos oriundos do ambiente externo e do comportamento das empresas. Supôs-se que os incentivos ambientais são positivos devido à política de PDP. Entretanto, as empresas podem adotar estratégias mais passivas ou mais ativas com relação à mudança tecnológica3. Esta decisão irá depender de como elas percebem o ambiente competitivo, percepção que é afetada pelo nível dos investimentos pretéritos em P&D para criar uma base de conhecimento que as capacite a identificar, assimilar e explorar o conhecimento externo4. Assim, aquelas que mais investem em P&D têm melhor percepção das oportunidades tecnológicas oriundas do ambiente e são as mais propensas a responder ativamente a esses incentivos.
A análise da capacidade de absorção da biotecnologia por empresas envolvidas em PDP foi realizada através da coleta de dados primários junto a 24 empresas farmacêuticas nacionais, classificadas em três categorias: oito laboratórios farmacêuticos oficiais (LFO), sete laboratórios farmacêuticos privados (LFP) e nove pequenas empresas de base tecnológica (startups). Avaliou-se o nível de complexidade das competências (básico, intermediário e avançado) que as empresas possuem, e a diversidade de suas capacidades (inovação e operação). Sob o título de capacidades tecnológicas inovativas, as empresas foram indagadas sobre a realização da P&D, a natureza dessa atividade e o grau de novidade dos resultados em termos de inovação tecnológica. Já as capacidades tecnológicas operacionais referem-se às características da produção industrial e atividades afins, tais como o grau de integração vertical, a diversificação da linha de produção, o domínio técnico sobre a planta produtiva e as competências complementares5.
Os LFO são as empresas mais antigas e com o maior faturamento médio. O número de pessoas ocupadas nos LFO e LFP os classifica como empresas de grande porte. As startups são pequenas, mais jovens e sem receita própria. Apresenta-se, na Tabela 1, uma avaliação síntese das capacidades tecnológicas inovativas das entrevistadas, de acordo com o seu nível de complexidade e por grupo de categorias.
Tabela 1: Níveis de capacidades tecnológicas inovativas das empresas entrevistadas,% médio (% mínimo e % máximo).
Como se pode observar, os LFP apresentam as maiores médias de capacidades inovativas em todos os níveis. Eles alcançam 74% das capacidades básicas, 63% das intermediárias e 36% das avançadas. Na última linha, apresenta-se a média do total de níveis de capacidades avaliadas. Assim, em média, no total os LFP possuem 59% das capacidades elencadas na pesquisa. De uma maneira geral, as startups apresentam mais capacidades inovativas totais do que os LFO (40% contra 38%), com destaque para o maior percentual médio de capacidades intermediárias (38% vs. 34%) e avançadas (24% vs. 12%).
Convém ressaltar que, embora os LFP apresentem melhores resultados no nível avançado de capacidade inovativa (que permite maior capacidade de absorção), eles atendem, em média, a apenas 36% das competências avaliadas, enquanto as startups atendem a 24% e os LFO, a apenas 12%. Esses dados revelam os níveis ainda incipientes de capacidades inovativas necessárias, nas empresas farmacêuticas entrevistadas, para a absorção da tecnologia transferida. Além disso, é interessante notar a grande variabilidade nos níveis de competências conforme percentuais mínimos e máximos apresentados entre parênteses na Tabela 1. Novamente destacam-se os LFP e se pode observar que neste subconjunto se encontram empresas que atingiram até 100% das capacidades básicas, 84% das capacidades intermediárias e 63% das capacidades avançadas. Isso revela que, apesar do baixo nível médio de competências observado na pesquisa, existem algumas empresas entrevistadas com alto nível de capacidade inovativa. Por outro lado, os percentuais mínimo e máximo são ainda mais reveladores das deficiências inovativas dos LFO, observando que há laboratórios sem nenhuma capacidade inovativa avançada e que o melhor atingiu no máximo 22% das competências avançadas avaliadas.
Um panorama geral do conjunto das empresas por nível de capacidades inovativas pode ser lido a partir da última coluna da Tabela 1. Em média, o conjunto das empresas entrevistadas possui 64% das capacidades inovativas básicas, 44% das intermediárias e 23% das avançadas. Há, portanto, uma série de lacunas a serem preenchidas por estas empresas rumo às atividades inovativas de maior complexidade tecnológica envolvidas nas PDPs.
Na Tabela 2, estão os resultados para as capacidades tecnológicas operacionais. Novamente, os LFP apresentam melhores condições que os demais subconjuntos em todos os níveis de capacidades operacionais. Em média, os LFP possuem 53% das capacidades operacionais básicas, 42% das intermediárias e 30% das avançadas, enquanto os LFO têm, em média, 47% das capacidades básicas, 30% das intermediárias e apenas 10% das avançadas. As startups apresentam resultados bem abaixo da média dos outros dois grupos, com apenas 26% das capacidades operacionais básicas, 13% das intermediárias e 5% das avançadas.
Tabela 2: Níveis de capacidades tecnológicas operacionais das empresas entrevistadas,% médio (% mínimo e % máximo)
Comparando o total das capacidades operacionais, de básico a avançado, os LFP apresentam, em média, 44% das competências avaliadas, os LFO, 33%, e as startups, 17%. De maneira semelhante, podemos comparar os valores mínimos e máximos para auxiliar a avaliação dos níveis de capacidades operacionais entre as empresas entrevistadas. Novamente, se vê que é no grupo dos LFP que se encontram as empresas que mais pontuaram em todos os níveis de complexidade, em que há empresas com até 68% das capacidades operacionais básicas, 63% das capacidades intermediárias e 30% das capacidades avançadas avaliadas na pesquisa. Por outro lado, constam, na amostra, organizações com nenhuma capacidade operacional avançada nos três subconjuntos. Em resumo, há uma grande variedade de organizações no que diz respeito ao nível de capacidades operacionais, sendo que, em média, elas possuem competências limitadas (veja-se o último quadrante, cuja média geral de atendimento às capacidades operacionais avaliadas foi de apenas 30%)6.
Considerando-se de uma forma conjunta as capacidades operacionais e inovativas, os LFP estão à frente dos LFO e das startups. Embora estas últimas possuam capacidades inovativas superiores às dos LFO, quando analisadas em conjunto as competências inovativas e operacionais constatam-se as limitações dessas empresas, principalmente no âmbito da produção e do marketing. No subconjunto dos LFP, encontram-se os maiores valores máximos de capacidade tecnológica em todos os níveis de complexidade, havendo empresa que atingiu 70% do total das capacidades avaliadas, o que mostra a existência de empresas com potencial operacional e inovativo para realização de catching up tecnológico na indústria farmacêutica brasileira, apesar da baixa frequência de empresas com esse perfil na amostra.
Apesar dos resultados da pesquisa sugerirem a existência de uma potencialidade para o desenvolvimento da indústria “biofarmacêutica” brasileira, eles levantam, ao mesmo tempo, uma série de dúvidas sobre a capacitação tecnológica das empresas e sua capacidade de absorção. Há muitas lacunas a serem preenchidas pelas empresas entrevistadas para que possam atingir um nível satisfatório de competências tecnológicas para absorver a tecnologia transferida. A PDP permite uma forma de aprendizado voltado à produção, ao mesmo tempo em que pode propiciar a geração de receitas estáveis, via poder de compra do Estado, para que as empresas nacionais possam reinvestir em P&D.
O presente artigo alerta para as fragilidades da política de PDP, já que os níveis médios de capacitação tecnológica das empresas entrevistadas deixam a desejar nas suas capacidades de absorção da tecnologia transferida, ainda que uma ou outra empresa possa se utilizar da PDP como uma oportunidade para migrar para uma plataforma tecnológica de maior complexidade devido aos seus maiores investimentos em capacidades inovativas prévios. Assim, a política de PDP pode ser vista como uma fase inicial de capacitação produtiva, mas para ser bem-sucedida precisará contar com uma atitude proativa dos laboratórios no sentido de buscar a capacitação tecnológica inovativa. A conjugação dos esforços da PDP com os dos agentes produtivos, à luz da experiência internacional asiática, parece condição sine qua non para o catching up tecnológico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMENDOLA, Mario; BRUNO, Sergio. The behaviour of the innovative firm: Relations to the environment. Research Policy, v. 19, n. 5, p. 419–433, out. 1990. BELL, Martin; PAVITT, Keith. Technological accumulation and industrial growth: contrasts between developed and developing countries. Industrial and Corporate Change, v. 2, n. 1, p. 157–210, 1 jan. 1993. COHEN, Wesley M.; LEVINTHAL, Daniel A. Absorptive capacity: a new perspective on learning and innovation. Administrative Science Quarterly, v. 35, n. 1, p. 128, mar. 1990. NELSON, Richard R.; WINTER, Sidney G. Uma teoria evolucionária da mudança econômica. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. TORRES, Ricardo L. Capacitação tecnológica na indústria farmacêutica brasileira. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. 212 f.
1 – A vigência da PDP pode durar até dez anos, segundo Portaria MS n. 2.531/2014.
2 – A distinção entre estes conceitos corresponde às mesmas diferenciações entre capacidade produtiva e capacidade tecnológica de Bell e Pavitt (1993) ou às rotinas operacionais e rotinas de busca de Nelson e Winter (2005).
3 – Conforme sugerido por Amendola e Bruno (1990).
4 – Segundo Cohen e Levinthal (1990), a realização de atividades de P&D tem um duplo objetivo para as empresas: de um lado, o desenvolvimento interno e imediato de novas tecnologias, traduzidas em inovações de produtos ou de processos; e de outro, o esforço interno de aprendizado para capacitar a organização para a absorção de conhecimento e/ou tecnologia externa.
5 – Ver Torres (2015) para consultar o elenco completo das capacidades operacionais e inovativas.
6 – Os percentuais mais baixos registrados para as capacidades operacionais não significam que as empresas entrevistadas sejam mais competentes em atividades inovativas, já que os critérios de avaliação são muito distintos e sua comparação direta pode ser enganosa.
Autor: Lia Hasenclever | Instituto de Economia/UFRJ | [email protected]
Ricardo Lobato Torres | UTFPR/Brasil | [email protected]
Revista Facto | Out-Nov-Dez 2015 | Edição 46