Em meio a uma crise mundial de grandes proporções, o Brasil se fragiliza. O governo Dilma Rousseff não sobreviveu aos impasses políticos gerados pelo agravamento do déficit fiscal e o recém-empossado presidente Michel Temer pretende mudar radicalmente as diretrizes econômicas, empreendendo uma drástica redução da participação do Estado na economia. A promessa é elevar a competitividade da produção nacional por meio da redução de componentes do Custo Brasil diretamente controlados pelo poder público, tais como carga tributária e burocracia. O risco inerente a essa aposta é a consolidação do já avançado processo de desindustrialização do País.
A crise político-econômica, da qual ainda não emergimos inteiramente, evidenciou a disputa entre dois modelos antagônicos: o neodesenvolvimentista, ora interrompido pelo impeachment de Dilma Rousseff, e o neoliberal, que passa a prevalecer e reedita princípios e práticas adotados no País nos anos 1990 sob inspiração do assim chamado Consenso de Washington. O novo governo, ao apostar nesta direção, enfrentará algumas escolhas cruciais. Poderá optar pelo caminho aparentemente mais fácil do rentismo, mantendo juros altos para atrair capitais especulativos que farão a economia girar na órbita do sistema financeiro. As consequências, entretanto, seriam desastrosas, pois um país desindustrializado, dependente da exportação de commodities e da importação de produtos estratégicos, torna-se altamente vulnerável às oscilações e manipulações de preços internacionais.
Outro caminho, aparentemente mais difícil, porém o único que, no contexto de uma política neoliberal, poderá oferecer ao País algo mais próximo de uma “ponte para o futuro” – ou seja, uma perspectiva de sustentabilidade econômica e social no médio e no longo prazo – é promover uma reforma fiscal que contemple a preservação de mecanismos de política industrial e garanta efetiva isonomia à empresa nacional frente a seus competidores estrangeiros. Não basta atacar o conjunto de encargos denominado Custo Brasil, pois existem fatores sobredeterminantes – tais como as taxas de juros, câmbio e outros parâmetros macroeconômicos, além de políticas de subsídio industrial praticadas pelos países parceiros – capazes de desequilibrar o jogo concorrencial em prejuízo de nossa indústria. E país sem indústria é país sem futuro.
Antecedentes da crise
Um dos maiores desafios que o novo governo tem pela frente é estimular o investimento privado em atividades produtivas – isto num contexto de retração do consumo interno. Segundo o professor Carlos Medeiros, do Instituto de Economia da UFRJ, não existe expansão de capacidade produtiva do setor privado sem expansão esperada da demanda. Ele afirma que o investimento privado segue sempre, com alguma defasagem, a evolução dos demais componentes autônomos da demanda agregada: consumo das famílias e do governo, exportações e investimento público.
“Entre 2003 e 2010, a taxa de investimento cresceu a um ritmo superior ao do crescimento do consumo tanto das famílias quanto do governo”, observa Medeiros. “Dali em diante, houve forte desaceleração, em decorrência da contração da demanda doméstica e particularmente da forte desaceleração dos investimentos públicos e da construção civil. Apesar das evidências, as narrativas predominantes no Brasil – a ortodoxa e a neodesenvolvimentista – estabelecem como fatores originários e determinantes da taxa de investimento o grau de confiança do setor privado (explicação preferida dos consultores de banco e da grande mídia) ou a lucratividade da indústria”.
O professor David Kupfer, coordenador do Grupo de Indústria do Instituto de Economia da UFRJ, da mesma forma recorre à história econômica recente do País para analisar as causas da retração do investimento após um período de vigorosa expansão. “O ciclo de crescimento apoiado em crédito e, portanto, em demanda doméstica, teve início ainda em meados da década passada e foi reforçado de forma positiva pelo comportamento dos preços das commodities e das exportações líquidas brasileiras. Essa conjunção favorável a partir de 2005, ao contrário do que se diz, propiciou um ciclo de investimento relevante do ponto de vista do padrão de crescimento da economia brasileira. Os dados mostram que, a partir dos anos 2006, principalmente 2007 e até a primeira metade de 2008, a taxa de investimento do Brasil evoluiu muito favoravelmente e o investimento cresceu a taxas de 20% ao ano, sendo o principal componente dinâmico na explicação da aceleração do PIB ou da taxa de variação do PIB no período”.
Na avaliação de Kupfer, esse ciclo de investimento durou pouco porque foi abortado pela crise internacional e pelos efeitos pós-crise ligados aos processos de ajuste econômico das economias motoras da atividade mundial. “Após a crise, houve uma retração do investimento no Brasil, em parte porque o investimento privado passou a enfrentar um quadro de incertezas profundas e que, comparativamente ao período anterior, não sinalizava uma solução rápida, caracterizado pela queda do preço dos bens exportados e produzidos pelo Brasil e modificações nas taxas de câmbio e de juros dos demais países em relação ao Brasil, entre outros indicadores. Ou seja, um quadro de perda de competividade da indústria brasileira. Adicionalmente, a economia passou a depender mais do investimento público, cuja capacidade de financiamento foi se exaurindo ao longo dos anos”.
É importante ter claro – salienta Kupfer – que o investimento no pós-crise sofreu uma inflexão e, depois, praticamente uma interrupção em função da deterioração das condições macroeconômicas dos negócios no Brasil. “Ou seja, enquanto as condições gerais eram positivas, o investimento não só acompanhou como foi além da expansão da demanda. Isto os dados mostram com facilidade, basta olhar as contas nacionais no período de 2006 a 2008. Após a crise, a economia não conseguiu se reestruturar e apontar um quadro mais favorável para a tomada de decisão de investimentos. O crescimento da demanda doméstica também arrefeceu, e então começamos a enfrentar um problema de demanda efetiva, que é mortal para os investimentos”.
Pedro Wongtschowski, conselheiro da Ultrapar Participações S.A, traça um retrospecto bem diferente da evolução do investimento industrial privado. Ele entende que o sistema produtivo nacional foi apenas parcialmente beneficiado pelo crescimento da demanda doméstica nos últimos anos, “já que na maior parte do tempo persistiu uma apreciação do Real. A taxa de câmbio fora do lugar fez com que a demanda adicional fosse atendida, em boa medida, por produtos importados. Exemplo disso é que, em quase todos os anos entre 2005 e 2015, o PIB da indústria de transformação cresceu sempre abaixo do consumo das famílias, chegando, inclusive, a cair enquanto o consumo continuava a crescer. Depois da crise global em 2008, com a queda do crescimento da economia mundial, a concorrência com produtos estrangeiros se acirrou devido ao acúmulo, em vários países, de capacidade ociosa em diversos setores. Nesse ambiente, há um claro desincentivo à produção nacional e, consequentemente, ao investimento”.
O ambiente macroeconômico, para Wongtschowski, é decisivo para induzir ou inibir investimentos privados. “Qual é o incentivo ao investimento produtivo quando as taxas de juros permanecem tão elevadas no Brasil? Há algo errado com um país em que a taxa de retorno do investimento na indústria tem sido sistematicamente menor que o custo de capital. Mesmo quando a taxa Selic foi reduzida, entre 2012 e 2013, sabia-se que dificilmente o patamar de 7,5% a.a. seria sustentável, dada a dinâmica da inflação e da dívida pública”.
Além do cenário macroeconômico desfavorável, o conselheiro da Ultrapar destaca também as persistentes deficiências brasileiras na área da infraestrutura. “A dificuldade de o setor público realizar investimentos em infraestrutura ou organizar parcerias com o setor privado, eliminando gargalos que prejudicam a competitividade, representou um obstáculo importante à concretização de investimentos privados na indústria e em outros setores da economia”.
Ainda no primeiro governo de Dilma Rousseff, a ABIFINA alertou o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) para a importância de atacar as causas do progressivo déficit da balança comercial brasileira. Em carta ao então secretário-executivo do MDIC, Ivan João Guimarães Ramalho, a entidade argumentou que a competitividade interna e externa da produção local depende de isonomia concorrencial, e que esta, por sua vez, depende de variáveis macroeconômicas, em especial taxas de câmbio e de juros para investimentos, “além de uma indispensável reforma fiscal – que reduza o assim denominado Custo Brasil”.
A participação da indústria no PIB nacional, que no final dos anos 1980 era de 25%, hoje está reduzida à metade, como resultado de um processo desindustrializante iniciado nos anos 1990. Na avaliação da ABIFINA, este é o principal fator de desequilíbrio da balança comercial brasileira, e não haverá reversão desse quadro enquanto os poderes da República – e os agentes públicos de maneira geral – continuarem agindo como adversários e cuidando de seus próprios interesses corporativos em vez de construírem juntos um “projeto de nação”. A eficácia na aplicação dos planos de desenvolvimento econômico e social requer, segundo a ABIFINA, uma plena adesão de toda a máquina pública aos objetivos do planejamento, sem divergências de entendimento ou de atuação entre agentes e agências governamentais, como atualmente ocorre. Planos para o desenvolvimento econômico e social de um país, para serem efetivos, devem possuir um caráter plurianual robusto – algo em torno de 20 anos, como ocorre na China, Japão e Coreia – e é indispensável que sejam aprovados pelo Congresso Nacional com o objetivo de conferir estabilidade jurídica e segurança na manutenção de regras por longos períodos.
Reforma fiscal x investimento público
O reequilíbrio das contas públicas brasileiras é frequentemente apontado como condição sine qua non para a retomada do desenvolvimento econômico brasileiro. Há controvérsias, entretanto, e não apenas quanto à suficiência desse tipo de política tendo em vista a alavancagem do desenvolvimento, como também quanto à eficácia de um ajuste fiscal em conjuntura recessiva.
Para Carlos Medeiros, “apenas quem considera que existe uma crise fiscal decorrente de um excesso de gasto – a perspectiva ortodoxa dos economistas brasileiros, pois até o FMI anda questionando o sentido de se fazer um ajuste fiscal numa economia em recessão – considera a reforma fiscal algo necessário para a retomada do crescimento. A única crise que impede a retomada dos investimentos é a crise externa em que o país quebra na moeda internacional, e não em sua própria moeda. Isto posto, a questão do financiamento do setor público é essencialmente uma questão distributiva. O País não tributa os mais ricos e as rendas não ganhas pelas atividades produtivas. O forte crescimento da dívida pública da União e dos estados decorre prima facie da desaceleração do crescimento e das renúncias fiscais”.
Numa perspectiva diferente, David Kupfer entende que a reforma fiscal é essencial para lastrear o desenvolvimento, mas não é condição suficiente. “A reforma fiscal – ou o equilíbrio fiscal ou a saúde fiscal – cria condições para o desenvolvimento, retira restrições ao desenvolvimento, mas não produz o desenvolvimento de per si. De fato, nós não estamos no Brasil diante da iminência de uma reforma fiscal. O que está em questão é um ajuste fiscal de alcance extremamente limitado e que visa a produzir superávit ou reduzir o volume de déficit fiscal que hoje o País enfrenta, interferindo em elementos de despesa e de receita, mas sem a característica de uma transformação fiscal propriamente dita”.
Kupfer também chama atenção para a relevância de uma discussão sobre as distorções do sistema tributário. “Não se discute no ajuste fiscal brasileiro uma profunda revisão da estrutura tributária no País e, principalmente, uma mudança radical do modelo de imposição tributária que o torne menos regressivo do que ele é. Estamos discutindo muito mais a importância de exibir determinados resultados de superávit primário em função da estabilização de expectativas de determinados detentores de capital do que um quadro fiscal que seja realmente indutor de desenvolvimento econômico”.
Wongtschowski, por sua vez, entende que a questão fiscal é urgente, pois “um déficit fiscal nominal da ordem de 10% do PIB é obviamente insustentável”, e endossa a pauta de reformas proposta pelas grandes entidades da indústria: “a reforma da Previdência, especialmente no que tange à idade mínima, e a redução da vinculação dos gastos públicos, por exemplo, são medidas que ajudarão a diminuir o déficit fiscal. Mas não é realista assumir que o ajuste fiscal irá ocorrer somente pelo lado da redução das despesas. É preciso também pensar do lado das receitas. Por isso, é imprescindível uma reforma tributária que envolva, pelo menos, o ICMS e o PIS-Cofins. É evidente que os tributos no Brasil incidem sobremaneira sobre o consumo e insuficientemente sobre a renda, fazendo que o sistema seja muito pouco progressivo. A distribuição da carga tributária é injusta”.
Além disso, na opinião do conselheiro da Ultrapar, faz-se necessária uma reforma administrativa, “de forma a elevar a eficiência da máquina pública, que hoje tem, em geral, um nível lamentável. Fatos conhecidos, como a baixa proteção das nossas fronteiras, a defesa sanitária insuficiente e a demora inaceitável na concessão de direitos de propriedade intelectual são apenas alguns exemplos de como o Estado deixa muito a desejar em termos de suas obrigações para com a sociedade”.
Além dessas reformas, que implicam uma mudança na atuação do setor público, Wongtschowski entende que há necessidade de outras igualmente importantes para reconduzir o País à rota do desenvolvimento – aquelas que compõem a atual agenda de reformas do Executivo e do Legislativo federais. “É o caso da reforma da obsoleta lei trabalhista, de maneira a que o negociado passe a preponderar sobre o legislado; da liberação dos investimentos privados em infraestrutura, reduzindo as deficiências que tanto prejudicam a competitividade da produção nacional; e da gradual integração da economia brasileira à internacional”.
Carlos Medeiros, por sua vez, alerta para as consequências danosas de uma drástica redução do investimento público. “Os países em desenvolvimento que mais crescem e modernizam suas estruturas produtivas têm uma coisa em comum: elevado crescimento dos investimentos públicos. Estes, mais do que apenas complementar os investimentos privados, andam na frente, sinalizando áreas e criando externalidades. O Brasil, no passado (1950-1980), seguiu essa via de crescimento, que foi abandonada desde os anos 1990 e relutantemente retomada por breves períodos posteriores, como entre 2003 e 2010. Em nenhum país em desenvolvimento as parcerias público-privadas substituíram o investimento público. Houve algum sucesso na experiência brasileira no complexo industrial da saúde e nada impediria seu aprofundamento e extensão. O sucesso espetacular da indústria farmacêutica indiana deveu-se a um conjunto de políticas nacionalistas muito mais agressivas do que as praticadas no Brasil desde os anos 1990”.
Entre as modalidades de investimento público indutoras de desenvolvimento industrial destaca-se o poder de compra do Estado, que nos últimos governos foi acionado para alavancar o crescimento de setores específicos. Na opinião de David Kupfer, “o poder de compra do Estado é um elemento relevante para efeito de política industrial e tecnológica, mas totalmente irrelevante do ponto de vista macroeconômico. É importante ter claro que a principal característica desse instrumento é a seletividade. Ele se diferencia de outros, como incentivos fiscais ou incentivos financeiros, precisamente pela possibilidade de ser usado seletivamente com foco no desenvolvimento tecnológico”.
No entanto, o professor entende que boa parte das parcerias praticadas no Brasil com base em compras públicas não cumpriu essa função – inclusive no setor de petróleo, um dos pioneiros na utilização desse instrumento. Kupfer afirma que “ao longo do tempo, o poder de compra perdeu o nítido caráter de política tecnológica que tinha no início, principalmente com a explosão das expectativas em relação ao pré-sal. A própria política de compras de conteúdo local que estava se construindo naquele período tornou-se praticamente uma política horizontal, cuja finalidade era assegurar para produtores nacionais parte da demanda que a exploração do pré-sal iria gerar. Essa política começou a ganhar a característica de reserva de mercado, que não é aquilo que se espera do instrumento da compra pública. O poder de compra tem que ser usado seletivamente para induzir o desenvolvimento tecnológico, e não de forma horizontal para simplesmente gerar demanda para empresas instaladas no Brasil”.
Em sintonia com a análise de Kupfer, Pedro Wongtschowski assegura que “o poder de compra das diversas esferas públicas (União, estados e municípios) pode ser um instrumento decisivo para o desenvolvimento industrial, sobretudo nas novas áreas, em que as novas tecnologias por vezes precisam de um empurrão inicial. O Brasil pratica esse modelo, mas de forma tópica – desde a Embraer até a agricultura familiar. O sucesso empresarial da Embraer contou com o apoio do poder de compra do Estado nos seus primórdios, e mais recentemente houve encomendas que ajudaram no desenvolvimento de novo modelo de avião (Embraer KC-390). O Programa de Aquisição de Alimentos também impulsionou a agricultura familiar”.
No que tange à adequação do uso do instrumento, Wongtschowski acrescenta ao critério da seletividade o do controle social. “O mais importante, neste e em qualquer caso de uso do poder de compra do Estado, é que a sociedade e os organismos públicos de supervisão e controle cumpram a sua função, avaliando os custos adicionais imediatos da sociedade e dos recursos públicos destinados a essas finalidades contra os benefícios públicos e sociais que advirão no futuro. Este é possivelmente o maior desafio desse instrumento: existe uma defasagem entre os custos (imediatos) e os benefícios (diferidos). Mas nós não devemos descartar instrumentos importantes devido a dificuldades operacionais totalmente superáveis”.
Inovação e políticas de desenvolvimento
Em sua edição de 31 de julho, o jornal O Estado de São Paulo divulgou que duas instituições dedicadas a temas de política econômica estão lançando uma agenda de mudanças nas políticas comercial e industrial do País afinada com o programa “Ponte para o futuro”, documento do PMDB que contém as diretrizes do governo Michel Temer. Elaborado em conjunto pelo Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP), de São Paulo, e o Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes), do Rio de Janeiro, sob o título “A integração internacional da economia brasileira: propostas para uma nova política comercial”, o documento não propõe mecanismos específicos de apoio à inovação tecnológica, mas contempla uma reforma da política tarifária e medidas de redução do Custo Brasil tendo em vista elevar a competitividade das empresas instaladas no País.
Entre as propostas, destaca-se uma reforma tarifária que estabeleceria um regime com apenas quatro alíquotas e um nível de proteção bem inferior ao atual – máximo de 15%, contra os 35% vigentes. Em paralelo, haveria redução da “escalada tarifária”, que hoje protege mais os produtos finais do que seus componentes, tendo em vista baratear a importação de matérias-primas e produtos intermediários. Sobre este tema, a ABIFINA entende que, se o objetivo é agregar valor à indústria local, seria necessário não simplesmente reduzir, mas inverter a escalada tarifária, de forma a corrigir distorções como a cobrança de tarifas de até 14% na importação de matérias-primas e intermediários para defensivos agrícolas, enquanto os produtos finais formulados pagam apenas 2%.
Outra proposta contida no documento se refere à retomada e ampliação da agenda de negociação de acordos comerciais com outros países e blocos, assunto que também é objeto de recomendações da ABIFINA. A entidade tem alertado as autoridades brasileiras de comércio exterior para os sérios problemas que podem resultar de concessões nocivas que o País venha a fazer no âmbito das negociações bilaterais. Para evitar a repetição do desastre dos anos 1990, que liquidou amplos segmentos da indústria nacional, a ABIFINA apela ao governo no sentido de não negociar espaço em compras governamentais do mercado brasileiro nem tampouco aceitar o aumento das obrigações assumidas pelo País no âmbito do acordo TRIPs (propriedade intelectual).
O elenco de propostas do CDPP-Cindes inclui profundas mudanças na política industrial brasileira, tais como a desmobilização de programas de incentivo baseados em conteúdo nacional, uma grande quantidade de medidas de redução do Custo Brasil e de facilitação do comércio, e sugestões para facilitar a inserção internacional das empresas brasileiras por meio de incentivos tributários.
Segundo Sandra Rios, diretora do Cindes, “este é um bom momento para lançar uma agenda de mudanças na política comercial e industrial, por ter ficado claro que as medidas protecionistas da fase da nova matriz econômica redundaram em fracasso”. O documento defende que uma economia mais aberta e menos protecionista é vital para estimular o investimento e o crescimento da produtividade, sem os quais o Brasil não voltaria a crescer num ritmo aceitável.
Sandra Rios resume assim o objetivo do conjunto de propostas contido no documento: abrir e reduzir o custo Brasil, baixar tarifas e negociar acordos. “Uma tendência perniciosa no Brasil é a de manter um elevado grau de proteção como compensação pela ausência de reformas para reduzir o custo de produção local, e a nossa proposta visa a justamente romper com isso”.
Se a intenção é louvável, a aposta é arriscada. Isso porque uma efetiva isonomia, capaz de estimular a indústria brasileira a realizar investimentos estratégicos em inovação tecnológica, teria de levar em conta, além dos componentes do Custo Brasil, o ambiente macroeconômico do País e as políticas de incentivo que beneficiam os concorrentes da indústria brasileira nos respectivos países de origem. Como o documento CDPP-Cindes se restringe à política comercial interna, não se pode falar em isonomia stricto sensu para o produto nacional nem tampouco alimentar expectativas quanto ao incremento da inovação tecnológica no País.
Embora os últimos governos tenham feito avanços significativos no fomento à inovação tecnológica, os resultados até hoje foram muito modestos. Segundo Pedro Wongtschowski, “o despertar para o tema da inovação foi muito tardio no Brasil, e não se consolidou suficientemente. As políticas de apoio ao desenvolvimento tecnológico foram sempre mais dirigidas para a criação de conhecimentos e competências científicas e tecnológicas do que para o estímulo à demanda de novas tecnologias e à promoção da inovação empresarial”.
De qualquer forma, o conselheiro da Ultrapar considera que o Brasil realizou avanços significativos e aponta a Lei do Bem como um dos mais potentes instrumentos de estímulo à inovação, por ter permitido que as empresas passassem a contar com incentivo fiscal para os seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento. “A lei está longe de ser perfeita, mas foi um avanço; e é por isso que as empresas industriais lutam pela manutenção dos seus benefícios, mesmo neste quadro de ajuste fiscal. A principal limitação é o universo dos seus beneficiários, que se restringe às empresas com apuração de lucro real, não mais de 5% do total de empresas industriais”.
David Kupfer enxerga sob outro ângulo a persistente defasagem do Brasil na área da inovação tecnológica. “A questão que precisa emergir é o diagnóstico de por que o investimento público em ciência, tecnologia e inovação no Brasil induz tão pouco investimento privado com esse mesmo objetivo. Por que o multiplicador do gasto público em CT&I no Brasil é tão baixo em comparação a outras experiências internacionais? Temos um multiplicador menor do que 1 – isto é, cada Real gasto pelo setor público tem como contrapartida menos que 1 Real gasto pelo setor privado. A relação atual é de 1 para 0,6, o que significa deixar nas costas do Estado um custo muito pesado. Precisamos pensar políticas muito diferentes das que foram praticadas nas duas últimas décadas, ou pelo menos desde o surgimento dos fundos setoriais, no final da década de 1990; políticas radicalmente diferentes, que sejam focadas no fomento e na indução do investimento empresarial, privado, particularmente visando à incorporação, no sistema industrial, de uma taxa de inovação mais alta do que a atual”.
O tema da inovação tecnológica precisa ganhar mais projeção, mais proeminência no debate atual brasileiro, assinala Kupfer. “Passamos por um ciclo de valorização da inovação como indutora de desenvolvimento. Acho que essa é uma etapa superada. Já há uma percepção generalizada, tantos dos atores públicos quanto dos privados, da importância da inovação e do esforço de desenvolvimento tecnológico como motor do desenvolvimento econômico e social. No entanto, precisamos dar um passo adiante e começar a analisar mais profundamente a natureza da inovação e desse esforço de desenvolvimento”.
Um aspecto importante do fomento à inovação tecnológica é o compartilhamento de riscos entre o Estado e a iniciativa privada, por meio de subvenção econômica. Wongtschowski destaca o programa Pipe (Pesquisa Inovativa para as Pequenas Empresas), da Fapesp, criado há 20 anos, e os mecanismos de âmbito federal criados a partir da Lei da Inovação, no primeiro governo do presidente Lula. “O instrumento existe, mas é muito limitado em termos de alcance e precário em termos de continuidade. Também aqui se verificam os problemas decorrentes de não se enxergar a indústria como o principal protagonista do desenvolvimento tecnológico e da inovação”.
Um instrumento criado recentemente pelo BNDES – o Título Híbrido de Apoio à Inovação – revela-se também, na opinião do conselheiro da Ultrapar, “muito interessante para o compartilhamento do risco tecnológico nas áreas em que o risco se estende além das fases de protótipo ou equivalentes (planta-piloto ou planta de demonstração). Esse instrumento, que pretende apoiar projetos de elevado risco tecnológico, representa um desdobramento de outro programa, anterior, de apoio às tecnologias avançadas do setor sucroalcooleiro (os chamados PAISS-1 e PAISS-2), que foram importantes ações do BNDES e da Finep para apoiar a nova onda tecnológica dos renováveis avançados, tanto na área da energia quanto na química”.
Pela avaliação de David Kupfer, o instrumento da subvenção econômica não chega a beneficiar aqueles que mais precisam dele: as pequenas e médias empresas. “Entendo este problema de um ponto de vista técnico. A dificuldade de acesso das pequenas e médias empresas ao sistema de compartilhamento de risco propiciado pela política tecnológica brasileira não é uma característica da política tecnológica em si, mas do sistema tributário. Uma parte importante do que seriam os instrumentos de compartilhamento de risco envolve incentivos fiscais que não são passíveis de serem usufruídos por empresas que trabalham no sistema de lucro presumido – precisamente as pequenas e médias. Tais empresas não conseguem, portanto, acessar esse tipo de incentivo. A política de incentivo fiscal no Brasil é perneta e não tem como deixar de ser enquanto o sistema tributário não sofrer uma profunda reforma. Por outro lado, incentivos fiscais não chegam a ser instrumentos muito poderosos de fomento à inovação, pelo menos em comparação com experiências de outros países. Acredito que as pequenas e médias empresas precisam de mecanismos específicos de acesso a recursos para a inovação, que não virão por meio de renúncia fiscal”.
Matéria Política – Facto 49
Jornalista Inês Accioly