Não lhe parece que está na hora de se instituir uma política nacional abrangente para este setor, a exemplo do PASNI na área de imunobiológicos?
A pergunta envolve duas questões relacionadas, porém autônomas. A primeira questão parte de que a universalização proposta na Constituição de 88 não contou com instrumentos efetivos para que fosse garantida assistência à saúde a todos. Mesmo o instrumento jurídico do direito criado, até pela desigualdade social no acesso à justiça, não se concretiza como instrumento de universalização. Não há universalização, nem equidade, sem o mínimo de justiça social, sem uma política econômica voltada à satisfação das necessidades da população, em particular as sanitárias. Ao mesmo tempo, desde 1990, a política econômica neoliberal foi dirigida a inserir o país na ciranda financeira globalizada, tornando-se entraves a ela conceitos sociais ou noções de soberania. Foi nesse quadro que acabou a cipagem de medicamentos, a CEME foi fechada, a Lei de Patentes foi aprovada. Paradoxalmente, em 1998 éramos o 10º maior mercado farmacêutico do mundo e passávamos a importar medicamentos acabados que antes eram produzidos no país. No entanto, no ranking da saúde mundial estávamos perto do centésimo lugar. As importações de fármacos e medicamentos chegaram a cerca de 3 bilhões de dólares anuais, mas o número de unidades farmacêuticas ficou estável e muito poucos medicamentos novos foram introduzidos no país. Ou seja, passamos a importar e gastar mais, sem reflexo no nível de consumo de medicamentos. Sem avançar no objetivo da universalização. A criação dos genéricos, importante, foi mais um golpe contra a indústria nacional que vivia com similares e para os quais só depois se pensou nas políticas afirmativas para questão de qualidade. Ademais, os genéricos teriam tirado mercado das marcas farmacêuticas, mas não promoveram o acesso às camadas mais necessitadas do país. As políticas sociais foram nesses últimos quinze anos meramente e pobremente compensatórias quando não foram agravantes, como foram as políticas previdenciárias. Chega a ser ridículo que se procurem caldinhos redistributivos médios nas estatísticas de consumo em meio a desemprego, subemprego e marginalidade econômica. Ora, o mérito do atual governo está no campo de propor uma política industrial e tecnológica para a indústria farmacêutica. Entre as boas novas está o Profarma, do BNDES, mas sem uma nova política econômica consentânea não se esperam resultados significativos. A segunda questão levantada pela pergunta é se seria possível optar por um PASNI de medicamentos essenciais (PASNME). Não cremos que seja a resposta. O PASNI vingou parcialmente porque saíamos de uma crise de abastecimento na década 70 com a destruição dos laboratórios públicos e fechamento de privados. Foram muitos anos de investimento e ainda assim sem desenvolvimento tecnológico autóctone. Para não alongar a resposta: para que haja um suprimento de medicamentos adequado às necessidades essenciais de saúde, precisamos de uma mudança concomitante do sistema de saúde e das políticas industriais e econômicas.
No contexto da política industrial e tecnológica para fármacos, que em boa hora foi criada pelo governo federal, não deveriam ser privilegiados alguns instrumentos que viabilizassem a manutenção dessas políticas públicas no longo prazo, como ocorre nos Estados Unidos com o seu conhecido Buy American Act?
Concordo inteiramente que é preciso rever o sistema de compras públicas para não permitir o efeito predatório de uma concorrência internacional que é capaz de ter preços mais baixos porque na origem tem menos impostos e não tem as abusivas taxas de juros que tornam o dinheiro para investimento ou capital de giro tão caros no Brasil. Há cerca de dez anos estive envolvido com questões de preços relacionadas a vacinas. Os números que vou dar são de grandeza, não exatos. Na França, uma dose de BCG era vendida a cerca de dez dólares, mas não era importada a vacina igual da Suíça que custava cerca de um dólar. Ora a lógica é ter um mercado interno forte, de modo que as exportações podem ter preço mais baixo – a partir do custo marginal – para poder chegar bem em concorrências internacionais, o que no próximo ciclo ajuda a baixar também o preço interno. Sem esquecer que, se o Governo paga eventualmente mais caro em reais por um produto nacional, lucra efetivamente não apenas nas divisas, mas também em gerar empregos e fortalecer a sua economia pela animação interna que promove.
Como o Brasil tem um déficit de US$2,5 bilhões/ano no balanço comercial da estratégica área de fármacos e medicamentos, e é no petróleo que hoje se encontram compostos orgânicos que constituem as fontes de matérias-primas para a produção de fármacos, não lhe parece que Farmanguinhos e Petrobras deveriam, juntos com o setor privado, buscar alternativas para assegurar o soberano suprimento de tais insumos para o País no longo prazo?
O petróleo é uma riqueza brasileira bem explorada (em várias dimensões e em termos históricos) graças a uma estatal da década de 50. Pelos efeitos na economia, no desenvolvimento tecnológico, na absorção de engenheiros, químicos, geólogos, não teríamos de fato uma universidade brasileira, por exemplo, sem a Petrobras. Por isso costumamos brincar entre amigos que a grande falha de Vargas foi não criar a Farmacobras à época. A indústria farmacêutica utiliza vários intermediários químicos derivados do petróleo, que é também fonte energética e substrato para uso biotecnológico. Nos últimos quatro anos, na gestão de Paulo Buss na Fiocruz, o Projeto Inovação, ao qual estou integrado, discutiu bastante esse assunto. E os primeiros passos na interação Farmanguinhos-PetroRio foram dados. Há um promissor caminho a ser trilhado, com o apoio do BNDES e da ABIFINA, entre outros.
A recente Lei da Inovação criou algumas facilidades para a colaboração entre empresas privadas e entes governamentais, com vistas a facilitar o processo inovador. Farmanguinhos poderá desenvolver esse tipo de parceria com o setor privado?
Cremos que é necessário estabelecer as parcerias viabilizadas pela Lei de Inovação, para além de contratos de conveniência imediata. De fato, para o setor público essas parcerias têm caráter estratégico e visam duplamente a questão sanitária e econômica a um só tempo. Uma das contribuições importantes do nosso lado se refere ao desenvolvimento tecnológico, cujos custos podemos absorver em boa parte tornando mais competitiva a empresa privada associada ao final. Outra parceria a ser pensada é com produtores nacionais, de preferência, de princípios ativos, de modo a dar mais qualidade e sustentabilidade à cadeia produtiva.
Como se sente ao dirigir uma unidade de produção, uma fábrica de medicamentos, submetido a todo um aparato legal e normativo do Estado, de uma forma geral criado para regular outros tipos de atividades, bem distintas, senão completamente diferentes?
A Fiocruz, em particular a gestão de Eloan Pinheiro em Farmanguinhos e de Akira Homma em Biomanguinhos, desenvolveu instrumentos razoáveis de funcionamento das unidades produtivas num ambiente jurídico bastante restritivo. Esse ambiente perdura, com concordância generalizada de sua inadequação, por duas razões apenas: o temor de que se transformadas juridicamente em uma empresa pública ou S.A. com controle acionário da Fiocruz, por exemplo, seu desenvolvimento poderia ser assimétrico ao conjunto da instituição e, principalmente, levar à cobiça dos interesses privativistas brasileiros, com sua conseqüente desnacionalização no próximo passo. Ou seja, representam uma pré-resistência, em modelo corporativo, às políticas de fragmentação e fragilização política institucional. A fraqueza desse argumento é exatamente que abdicamos de responder melhor às necessidades sanitárias e econômicas imediatas do Brasil e da população, que são extremamente precárias hoje. Precisamos criatividade nas salvaguardas institucionais para não nos furtar aos nossos compromissos maiores. Por isso vamos ter coragem de discutir o assunto, mudar ou encontrar outras portas para dar mais eficiência a essas unidades, particularmente agora que o Ministério da Saúde resolveu descentralizar boa parte das compras diretas que fazia a Farmanguinhos. Essa medida exige a realização de negócios que envolvem a venda de produtos, particularmente a exportação.
Como conciliar a gestão de programas de desenvolvimento tecnológico e industrial, necessariamente com caráter plurianual, preso à camisa de força dos rígidos orçamentos anuais da União?
O plano plurianual é o nosso Norte e também justificativa para eventuais pedidos para novos investimentos. Não o considero uma camisa de força, mas um meio de dar mais foco ao nosso trabalho institucional de longo prazo. Ademais temos uma parcela de recursos extra-orçamentários que ajudam a flexibilizar os orçamentos iniciais. É preciso entender que o trabalho na área pública, sem um “patrão” direto, favorece a dispersão de recursos.
O setor de saúde e as ciências da vida em geral têm mostrado um dinamismo tecnológico acentuado, exigindo cada vez mais da capacitação tecnológica do pessoal envolvido nestas atividades. Com as sabidas limitações da administração de pessoal no aparelho de Estado, como Farmanguinhos tem conseguido manter um corpo funcional próprio, adequado e atualizado?
Essa é uma questão difícil para Farmanguinhos hoje. Em números redondos Farmanguinhos tem apenas 60 servidores públicos. O próximo concurso público substituirá 30 terceirizados, mas as exigências da seleção são para os níveis juniores. Assim chegaremos a 90 estatutários esse ano. Ou seja, cerca de 10% de nossos trabalhadores, já que contamos com mais de 800 terceirizados, além de indiretamente empregarmos para serviços gerais de vigilância, jardinagem, etc. Ou seja, convivemos com os dois extremos: alta e baixa estabilidade funcional, com reflexos positivos e negativos diversos em tudo. Estaremos nessa gestão organizando atividades intensas de treinamento, inclusive um mestrado profissional, e vamos oferecê-lo também aos terceirizados sem prejuízo em seus vencimentos como tem sido feito. Para a área industrial seria importante um quadro celetista próprio e não terceirizado. Essa terceirização de mão-de-obra, como sabemos, serve a muitos fins, mas principalmente para que os governos de postura neoliberal se descomprometam com o futuro dos trabalhadores em nome da “economia”. O Governo atual tem contradições nesse campo, o que pode ser favorável a uma reformulação ainda que específica para o nosso caso.
Quais são as linhas mestres de seu planejamento administrativo à testa de Farmanguinhos?
No sistema Fiocruz, os dirigentes passam por um escrutínio eleitoral no qual estabelecem seu programa de trabalho. Esse processo, no seu aspecto mais positivo, ajuda a amadurecer planos e, principalmente a viabilizá-los depois. Para não me estender seleciono três questões estratégicas e três na área administrativa do plano dessa gestão:
1 – Revisão do portfolio de medicamentos (sem abandono de linhas já tradicionais como a de anti-retrovirais e contra enfermidades infecciosas e parasitárias, e do cumprimento de compromissos com programas já estabelecidos do Ministério da Saúde) com a inclusão de medicamentos de alto valor tecnológico agregado (alto custo) e estratégicos (em estudos: asma grave, neuro-psiquiátricos, estatinas, hormônios).
2 – Criação de um “setor” de assistência técnica na área farmacêutica (desde a formulação de políticas até a organização de serviços de assistência farmacêutica) a municípios e outros interessados;
3 – Viabilização de parcerias estratégicas com entes públicos ou privados que permitam absorção e transferência tecnológicas vantajosas para o Brasil;
4 – Efetivar a transferência da unidade de produção do Campus de Manguinhos para o Campus de Jacarepaguá;
5 – Reorganizar a área de pesquisa e desenvolvimento, com a criação de plataformas tecnológicas, uma na área de métodos analíticos e outra na área de bio-ensaios;
6 – Redimensionamento da área de pesquisa em fitoterápicos e produtos naturais, com provável criação de uma nova estrutura física com esse fim.
Posse em Farmanguinhos
Profissional portador de longa folha de serviços prestados ao Brasil também como administrador público, tendo exercido os cargos de Secretário de Saúde e de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro. Dirigentes da ABIFINA compareceram à referida posse e louvaram o início de uma nova etapa na atuação desse prestigioso instituto a ser implantada pelo novo dirigente, na qual se destaca o desafio de construir uma efetiva parceria do setor público com empresas privadas que produzem no Brasil visando assegurar o acesso, soberano e universal, da população aos medicamentos essenciais à saúde.