REVISTA FACTO
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Informando ABIFINA • Janeiro 2006 • ISSN 2623-1177
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//Artigo

Patentes: tempo de crise, tempo de mudança

O sistema internacional de patentes está em crise. Os objetivos originais do sistema, a proteção ao inventor e o estímulo ao progresso das artes e da ciência, está sendo desvirtuado. Há um número crescente de artigos, relatórios e livros apontando as incoerências entre as justificativas básicas do sistema e os resultados sociais que ele vem produzindo.

Os direitos de propriedade intelectual não são naturais. Sua existência só se justifica por seus resultados: a promoção da inovação e a disseminação do conhecimento e para tanto, suas regras de concessão devem ser estritamente observadas. Aos critérios básicos de patenteabilidade – novidade, não-obviedade e aplicação industrial – se adiciona a exigência de que a tecnologia seja revelada integralmente. A teoria geral que suporta o privilégio conferido pela patente é a de que ao estimular os inventores o sistema estaria contribuindo para o desenvolvimento e ao divulgar a invenção o sistema estaria propiciando a difusão dos conhecimentos tecnológicos.

Até a década de 80, estudos relativos ao sistema de patentes provinham quase sempre de advogados, juízes, diplomatas e funcionários do sistema, em nível nacional e internacional. Cientistas, tecnólogos e economistas, por exemplo, se mantinham alheios aos debates. Os economistas tinham dificuldades em conciliar os determinantes da inovação tecnológica com a teoria tradicional do crescimento da empresa e, mais ainda, em defender a existência de monopólios operando em economias de mercado. Os cientistas, por sua vez, estavam satisfeitos com sua liberdade de pesquisar e divulgar suas descobertas para reconhecimento e validação por seus pares, alheios às conseqüências da apropriação privada das aplicações tecnológicas derivadas do conhecimento científico por eles gerado.

Nos anos 90, depois que na Rodada Uruguay a propriedade intelectual foi vinculada ao comércio através do acordo de TRIPS, generalizou-se a percepção de que o conhecimento é um item de fundamental importância no processo de desenvolvimento e os economistas passam a formular uma nova teoria do crescimento. Os cientistas, por sua vez, se sentem ameaçados pela migração da pesquisa científica para o interior das empresas e pela possibilidade de que patentes possam vir a ser concedidas também às descobertas e não apenas às invenções, fato que já começa a ocorrer nos EUA.

A crise qualitativa

A crítica atual parte da constatação empírica que em lugar de um estímulo aos inventores a patente tornou-se um mecanismo de reserva de mercado para grandes empresas, dificultando a inovação e mais, que na forma como têm sido gerados, os documentos de patente mais escondem que revelam a tecnologia subjacente à invenção, frustrando o objetivo de disseminação. Além disso, a lassidão na aplicação dos conceitos de patenteabilidade tem gerado patentes “fracas”, passíveis de contestações judiciais, inibidoras do processo de inovação.

Um estudo baseado em inquérito realizado com mais de 1.400 empresas industriais americanas mostrou que:
– a maioria das empresas, com exceção das do setor farmacêutico, não considera patentes um mecanismo importante para garantir a apropriabilidade dos ganhos derivados de seus produtos inovadores;
– a maior parte das empresas patenteia não para proteger seus produtos, mas para defender seus mercados, impedindo que outras empresas lancem produtos inovadores que façam concorrência aos seus.

As críticas ao sistema não ficaram limitadas a estudos individuais. Mais e mais governos, institutos de pesquisa e organizações não-governamentais, preocupados com o aumento das desigualdades no mundo, têm se dedicado ao problema. A Declaração de Doha é o exemplo mais conspícuo, mas nem de longe o mais abrangente e duro.

Em 2001, o governo britânico criou uma comissão multidisciplinar composta de especialistas de vários países e de diferentes áreas do conhecimento para estudar as implicações das patentes no processo de desenvolvimento. O relatório da comissão, divulgado em setembro de 2002, é um alerta vigoroso contra as imperfeições derivadas do sistema internacional de patentes às quais afetam negativamente o desenvolvimento e estão se tornando um instrumento de aprofundamento de injustiça social, prejudicando internacionalmente os países mais pobres, e nacionalmente as camadas mais pobres dos países ricos.

Em 2003, a Federal Trade Comission dos EUA, publicou um relatório em que adverte para o estágio em que se encontra a proteção à propriedade intelectual naquele país e aponta diversas correções a serem feitas na administração do mesmo a fim de que ele não se coloque em oposição à inovação e a competição. A preocupação com a qualidade das patentes concedidas é um dos pontos fortes do relatório.

Em 2004, foi a vez da Academia Nacional de Ciências dos EUA se debruçar sobre o assunto e emitir suas recomendações para o aperfeiçoamento do sistema. As preocupações são semelhantes as dos demais relatórios exceto pela ênfase que empresta à necessidade de ser mantida a liberdade da pesquisa científica.

A crise quantitativa

A partir dos anos 80, novas áreas tecnológicas começam a se incorporar ao escopo da proteção patentária – biotecnologia, métodos administrativos, software, nanotecnologia – e, ao longo dos anos 90, um número crescente de países se incorpora ao sistema internacional por força das obrigações assumidas em TRIPS. Em paralelo, o comércio internacional de mercadorias e serviços apresenta uma violenta expansão, com novas áreas de comércio passando a adquirir uma importância crescente, como o Leste Europeu e o Sul e o Leste da Ásia.

A conseqüência destes movimentos simultâneos foi um aumento significativo do número de pedidos de patente depositados nos escritórios de todos os países do mundo. Embora o número de novas patentes tenha apresentado um ritmo modesto de crescimento, evidenciando uma perda de dinamismo no processo de inovação, o número total de pedidos de patentes depositados se expandiu por força da necessidade de proteger a invenção em um número maior de países. Se no começo da década de 80 uma mesma invenção era patenteada em três ou quatro países, ao final do ano 2000 uma mesma patente estava sendo depositada em nada menos que quatorze ou quinze países, em média.

Este movimento pressionou enormemente todos os escritórios nacionais de patente que estavam despreparados para fazer face não só ao maior número de pedidos como também ao aumento da complexidade dos mesmos, sobretudo nas novas áreas tecnológicas. A necessidade de patentear em muitos países elevou o custo das empresas.

Do ponto de vista dos institutos as conseqüências mais visíveis e criticáveis foram: 1) o aumento nos tempos de exame e concessão e; 2) a crescente emissão de patentes de dúbio valor, passíveis de contestação judicial em função de falhas em seus processos de exame. Foi notável o crescimento dos litígios judiciais nos EUA, por exemplo, ao longo dos anos 90, motivados pela concessão de patentes “fracas”. Foi igualmente notável o crescimento do número de patentes que, concedidas em um país, tiveram seus pedidos rejeitados, no todo ou em parte, em outros países.

A resposta dos institutos foi, em praticamente todos os países desenvolvidos, uma reformulação e modernização de suas estruturas e quadros. Novos examinadores foram contratados e os antigos treinados, não só nas novas tecnologias, mas também nas técnicas e recursos administrativos da era da informática.

Do lado das empresas, clientes do sistema, a resposta foi procurar diminuir custos através do uso de sistemas centralizados de depósitos de pedidos e lutar por uma crescente harmonização internacional. Ao longo dos anos 90 houve um crescimento significativo nos depósitos de pedidos de patente feitos ao amparo do Tratado de Cooperação de Patentes administrado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a OMPI, e parece claro que o ideal, do ponto de vista das empresas, seria o estabelecimento de um organismo único que concedesse as patentes com validade para todos os países participantes do sistema, ou, pelo menos, que parte substancial do processo de exame fosse feito por escritórios centrais, deixando aos escritórios nacionais apenas a tarefa de homologação final.

O estabelecimento de uma patente mundial é carta fora do baralho: os EUA já deixaram claro que, apesar de apoiarem os esforços por uma maior harmonização internacional do sistema, jamais abrirão mão de seu direito soberano de ter a última palavra sobre patenteabilidade em território americano. Os países menos desenvolvidos cujos institutos nacionais não responderem com eficácia e eficiência as demandas ficarão sob intensa pressão para aceitarem exames feitos por autoridades internacionais e se transformarem em meros cartórios de registro de patentes.

O Brasil vive a mesma crise e até agora não soube dar respostas convenientes. Depois de aderir açodadamente à TRIPS sem usar todas as flexibilidades que sua condição de país em desenvolvimento lhe permitia e modificar, sob intensa e descabida pressão, sua legislação nacional, era previsível o aumento do número de pedidos de patentes, inclusive em novas áreas antes não patenteáveis, como a farmacêutica, por exemplo. Entretanto, o Governo brasileiro em suas três esferas tratou a questão da propriedade intelectual e do INPI com enorme descaso e visível incompetência.

O INPI, pelo menos até o fim dos anos 80, guardava boa reputação internacional como órgão examinador de patentes. Seus técnicos eram treinados nacional e internacionalmente e sua capacitação na emissão de patentes respeitável e respeitada.

Infelizmente as sucessivas administrações nomeadas para o INPI ao longo dos anos 90 fracassaram tanto na condução do dia a dia da instituição quanto na tarefa de motivar o Governo para a adoção das providências legislativas e administrativas necessárias para enfrentar a crise. Como resultado, o Instituto acumula um enorme acervo de processos não analisados, seja em patentes seja em marcas, e vem sendo alvo de críticas contundentes vindas, principalmente, das entidades representativas da grande indústria farmacêutica internacional. Só recentemente foi nomeada uma administração mais atenta aos problemas, mas a velocidade das mudanças requeridas é ainda baixa e a atitude do Governo como um todo em relação à propriedade intelectual não evoluiu.

Tempo de crise é tempo de mudança, de ameaças e oportunidades. Há que evitar as primeiras e explorar convenientemente as últimas. Há que aproveitar a oportunidade que a crise nos oferece de ajustar nossa legislação aos reais interesses e as necessidades de nosso desenvolvimento e transformar o INPI para evitar a ameaça de nos transformarmos em um País dependente, com nossa soberania arranhada pela concessão por terceiros de privilégios em nosso território.

Marcos Oliveira
Marcos Oliveira
Membro do Conselho Consultivo da ABIFINA.
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