O Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Geceis) divulgou, em maio, sete novas Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) aprovadas. Cinco delas envolvem empresas associadas à ABIFINA, que revelam seu compromisso com a internalização de tecnologias que garantam a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Esta última seleção de projetos reflete a demanda reprimida por novos desenvolvimentos de produtos.
O quantitativo de propostas recebido e divulgado pelo Ministério da Saúde em maio deste ano ficou na mesma base do ano passado, que atingiu o recorde de 147 propostas, de 67 instituições proponentes e 168 instituições parceiras. A expectativa das parcerias, que estão na etapa de assinatura do Termo de Compromisso, é movimentar cerca de R$ 2 bilhões por ano para a produção local de medicamentos para doenças raras, como esclerose múltipla, fibrose cística e atrofia muscular espinhal.
Casos de sucesso
O laboratório público Bio-Manguinhos teve o projeto PDP aprovado em fevereiro para produzir a insulina glargina em parceria com a empresa de biotecnologia Biomm e a farmacêutica chinesa Gan & Lee. Após a transferência tecnológica e total nacionalização do produto, Bio-Manguinhos terá capacidade para atender a todo o mercado de diabéticos no Brasil, com disponibilidade de fornecer 70 milhões de cartuchos anuais, eliminando um gargalo histórico de abastecimento nesse segmento. O Termo de Compromisso foi assinado em abril, e os parceiros estão em fase final de negociação contratual. Os próximos meses serão dedicados à adaptação tecnológica da planta no Ceará e ao treinamento de equipes, conta Rosane Cuber, diretora do laboratório.
A insulina glargina que a PDP produzirá tem um diferencial no perfil farmacocinético, reduzindo a possibilidade de ocorrência de hipoglicemia noturna. “Para o SUS, essa PDP representa a garantia de acesso a um medicamento inovador, com dosagem semanal, para cerca de 17 milhões de pacientes com diabetes tipo 1 e tipo 2, em tratamento pelo sistema público. Para o setor produtivo, significa a criação de uma cadeia de fornecedores qualificados em biotecnologia, com potencial para atrair investimentos”, analisa.
Pela primeira vez, a planta do Ceará fabricará localmente a insulina glargina em larga escala. A fábrica foi projetada com conceitos de Indústria 4.0, incorporando sistemas de automação com IA para controle de qualidade e uma estrutura modular que permite rápida adaptação para fabricar outras insulinas e biológicos estratégicos.
Cuber afirma que a fábrica é cerca de 30% mais eficiente que plantas europeias similares, graças aos aprendizados acumulados em PDPs anteriores. Ela relaciona outros avanços do projeto para o País: soberania tecnológica, equidade regional e sustentabilidade do SUS, com redução da dependência de importações e garantia de acesso contínuo à população, com preço acessível.

“Esse é o caminho para posicionar o Brasil como hub global de plataforma de biossimilares, garantindo vantajosidade e economicidade para o SUS”, afirma.
Outro associado a ser contemplado na última seleção de projetos de PDP foi a Nortec. A parceria envolve a produção da cladribina com a Merck e Farmanguinhos, para o tratamento da esclerose múltipla. “Isso representa mais do que um novo projeto aprovado: é o reconhecimento do compromisso desses parceiros com a inovação, a autonomia produtiva do Brasil e o fortalecimento do SUS”, afirma Marcus Soalheiro, vice-presidente da Nortec. A produção do insumo farmacêutico ativo (IFA) acontecerá no Quilolab, recente instalação de alta complexidade da empresa farmoquímica, dedicada à fabricação, dentro dos requerimentos de Boas Práticas de Fabricação, de moléculas de alta potência.
A cladribina é um imunomodulador utilizado principalmente no tratamento da esclerose múltipla, atuando seletivamente sobre os linfócitos B e T para promover a morte programada dessas células. A diretora de Farmanguinhos, Silvia Santos, ressalta que a fabricação de medicamentos à base de cladribina requer ambientes controlados com contenção específica para substâncias altamente ativas e citotóxicas.

“Essa característica representa um avanço tecnológico significativo para Farmanguinhos, cuja planta fabril ainda não contempla a produção de medicamentos de alta potência, tornando a iniciativa um marco inovador na ampliação estratégica de sua capacidade produtiva e tecnológica. Assim, o projeto contribui para ampliar a competência tecnológica do instituto, diversificar sua produção e fortalecer a autonomia nacional na oferta de terapias estratégicas para o SUS”, declara Silvia.
Já o Cristália teve dois projetos selecionados. Um deles, em parceria com a Fundação para o Remédio Popular Chopin Tavares de Lima (Furp), trata da produção do ivacaftor, medicamento voltado para o tratamento de fibrose cística, uma doença rara e de alta complexidade. De acordo com a Furp, as PDPs das quais participa permitirão ao laboratório incorporar plataformas inovadoras para a produção de cápsulas moles e o processo de extrusão, além de ampliar a capacidade produtiva.
O segundo projeto do Cristália é com o Laboratório Farmacêutico da Marinha (LFM) para fabricar o dicloridrato de trientina, medicamento usado contra a doença de Wilson, uma condição genética rara que causa acúmulo de cobre no organismo.
Análise técnica
O secretário adjunto de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), Eduardo Jorge Valadares Oliveira, do Ministério da Saúde, avaliou aspectos que podem ser melhorados nos projetos submetidos. “É importante mostrar que haverá transferência de tecnologia para o parceiro público. Em alguns projetos, estava escrito explicitamente que isso não seria feito. Há propostas em que a transferência de tecnologia se alonga demais. Em outras, existe um descompasso entre o cronograma de transferência de tecnologia e a adequação de uma linha de produção ou a construção de uma fábrica de medicamento. Essas questões fragilizam o projeto e perdem pontos na análise técnica”, explica.
Os novos projetos de PDP quebram um longo período de paralisação no programa. O vice-presidente de Relações Institucionais do Cristália, Odilon Costa, faz uma analogia futebolística para ilustrar o que aconteceu:

“As PDPs tiveram o primeiro tempo, no qual as parcerias foram firmadas. Hoje estamos no segundo tempo, com novos projetos sendo selecionados. Nesse jogo, tivemos um grande intervalo de sete anos. Nenhum contrato foi rasgado, todos os compromissos foram cumpridos pelas parcerias que jogaram no primeiro tempo. Mas tivemos o prejuízo da bola parada, da falta de continuidade do programa. Nada novo aconteceu.”
A paralisação afetou a prestação de contas de contratos vigentes e, nos próximos oito meses, o Ministério da Saúde se debruça sobre a avaliação das 36 parcerias que chegaram à fase 4 (internalização de tecnologia e prestação de contas), de acordo com Oliveira.
Monitoramento e controle
Junto à retomada das atividades, vieram melhorias na gestão das parcerias com a Portaria GM/MS nº 4.472, de 20 de junho de 2024, que reforçou os mecanismos de governança e controle. Silvia Santos, de Farmanguinhos, acrescenta que, nesta nova fase das PDPs, o governo enfatizou o desenvolvimento regional e a modernização das estruturas fabris dos laboratórios públicos oficiais.
Há um largo debate sobre os pontos que ainda podem avançar. Uma das demandas é acelerar os processos de transferência de tecnologia, diante de ciclos de inovação cada vez mais curtos. A falta de detalhamento dos custos de transferência de tecnologia é outro ponto fraco, apontado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Vital do Rêgo, presidente do TCU, comenta que a última fiscalização feita pelo Tribunal, em 2023, indicou a ausência de critérios e parâmetros para a definição da lista de produtos estratégicos para o SUS. É a partir dessa lista que as parcerias são propostas ao Ministério da Saúde.
Além disso, o TCU observou a ausência de normas e critérios adequados para a redistribuição dos percentuais de demanda, que são previamente definidos e consistem na parcela da produção que será comprada pelo governo e a parcela que poderá ser vendida para o mercado privado.
A auditoria apontou ainda fragilidades nos critérios de seleção de propostas, nos procedimentos para aquisição de medicamentos após a vigência da PDP e nos atos de transparência.

“Após o Acórdão 2.015/2023-TCU-Plenário, da relatoria do ministro Benjamin Zymler, o Ministério da Saúde editou novo normativo da PDP, tendo recriado o Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Geceis). Todavia, o Tribunal ainda não se debruçou sobre as alterações havidas e emitirá parecer em momento próprio”, antecipa Vital do Rêgo.
Os próximos passos do Ministério da Saúde serão discutir com o setor como incorporar as diretrizes recomendadas pelo TCU e encerrar os projetos de PDP já apresentados. Após isso, será possível decidir sobre a abertura de novos ciclos. Oliveira antecipa, no entanto, a tendência do programa:

“Chegamos a uma nova perspectiva, olhando um horizonte tecnológico maior e considerando a dinâmica acelerada de inovação. Não basta pensar no curto prazo, é preciso consolidar conhecimento e capacidade produtiva no País, migrando de projetos focados em produtos para plataformas tecnológicas”.
Propriedade industrial
Também olhando para o aprimoramento das PDPs, Júlio César Moreira, presidente do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), recomenda que os projetos contemplem farmoquímicos que usem a biodiversidade brasileira e o fortalecimento das capacidades inovativas das empresas, por meio da pesquisa em bases de patentes.

“Um dos aspectos fundamentais nesse processo se dá pela identificação das oportunidades de sucesso, o que decorre do levantamento detalhado das tecnologias existentes, quais as limitações impostas decorrentes dos direitos de propriedade industrial e qual conhecimento está público para utilização dos diferentes atores da cadeia, de forma a aumentar as chances de sucesso e eliminar etapas desnecessárias e o retrabalho. O uso adequado da informação existente nos bancos de patentes permite não só a apropriação do conhecimento já tornado público como abre espaço para uma nova criação derivada da original, uma invenção incremental, que também pode ser protegida”, detalha Moreira.
O monitoramento das tecnologias que entrarão em domínio público pode ser mais complexo do que se imagina, no entanto. Isso porque um único produto pode ser protegido por diversas patentes, cada uma referente a determinado aspecto da tecnologia. Ou, ainda, uma mesma molécula pode estar envolvida na proteção de mais de um produto. Por isso, a pesquisa nos bancos de patentes deve ser feita com a estratégia adequada para se evitar, com segurança, a infração a direitos de terceiros.
Com o objetivo de fornecer subsídios para políticas públicas frente a esse desafio, a ABIFINA elaborou o estudo setorial “Insumos Farmacêuticos Ativos e Medicamentos com Blocos de Patentes a Expirar até 2030”.

“Nossa pesquisa identificou cerca de 1,5 mil patentes que formam blocos de proteção para mil produtos que estarão livres para produção e comercialização até a próxima década. Essa é uma contribuição da ABIFINA que, certamente, pode ser adotada no processo de melhoria do planejamento e gestão das PDPs”, sugere Andrey Vilas Boas de Freitas, presidente-executivo da entidade.
Política de Estado
Um marco legal transparente, que demonstre as regras do jogo, confere maior segurança aos agentes participantes. No entanto, para tornar a PDP uma política de Estado é preciso ir além, na visão do representante do Ministério da Saúde. “Uma política pública na qual a sociedade não enxerga benefício real no seu dia a dia dificilmente se tornará uma Política de Estado. E, para que isso aconteça, precisamos comunicar cada conquista, cada projeto bem-sucedido. Precisamos divulgar mais resultados tangíveis”.
Para Vital do Rêgo, do TCU, e Rosane Cuber, de Bio-Manguinhos, a consolidação de uma política de Estado depende de estabilidade institucional, planejamento de longo prazo, coordenação interinstitucional permanente e previsibilidade orçamentária.
Ainda que tenha sofrido altos e baixos, a PDP é uma política que perdura o suficiente para demonstrar o impacto acumulado dos projetos. A Nortec, que participa de PDPs desde o primeiro ciclo, concluiu cerca de dez projetos com internalização de tecnologia, investimento em capacidade produtiva local e geração de empregos qualificados.

“A consolidação do programa como Política de Estado é fundamental para diminuir a dependência externa brasileira e fortalecer o SUS”, argumenta Marcus Soalheiro, vice-presidente da empresa, cuja visão é reforçada por Odilon Costa: “Hoje, Cristália e Bio-Manguinhos oferecem ao Brasil autossuficiência na somatropina, um hormônio de crescimento. A partir dessa parceria, firmada há cinco anos, o País não importou mais uma unidade do produto”.