As manifestações de inconformismo com a atuação de algumas instituições multilaterais vêm se somando há vários anos, por diversas razões. A turbulência financeira iniciada em 2007 ampliou esse nível de inconformismo. A pandemia acrescentou novos componentes à insatisfação, com problemas associados, do ponto de vista dos produtores, a dificuldades no acesso a insumos, baixa disponibilidade de transporte e várias outras questões. O presente ano intensificou as cores nesse quadro sombrio, com os impactos negativos das políticas econômicas adotadas pela atual administração norte-americana.
Como pano de fundo dessa crescente turbulência no cenário global, houve redesenho de algumas cadeias produtivas, com realocação de plantas produtivas e uma presença crescente da China como principal fabricante de manufaturas e importante mercado para vários produtos. O cenário geopolítico que transparece do noticiário diário leva a crer que o crescente fechamento do mercado americano a produtos de diversas origens naturalmente estimulará o interesse na intensificação das transações com o Leste Asiático, China em particular.
É possível, para alguns países, aumentar seu grau de influência sobre o processo produtivo de outros países por meio de políticas comerciais seletivas, pelo controle da oferta de matérias-primas, peças e componentes, ou mesmo através de condições impostas para assistência técnica, entre outras possibilidades.
Outra dimensão importante é a adoção de padrões produtivos diferenciados. São características técnicas que alguns países determinam que sejam utilizadas nos processos produtivos, e frequentemente condicionam o acesso ao seu mercado à observância desses padrões. Entre as principais implicações, os produtos que não correspondam aos requisitos técnicos estabelecidos não conseguem ser comercializados nos mercados dos países que impõem tais requisitos.
Hoje a China é o principal produtor de manufaturas no planeta, e em vários setores representa a fronteira tecnológica. O fato de a China ser já há alguns anos o principal parceiro comercial do Brasil, associado à composição das pautas comerciais no comércio bilateral, sugere a relevância de se considerar os potenciais efeitos sobre a estrutura produtiva nacional.
A concentração de bens de produção originários de um mesmo país parceiro pode implicar efeitos positivos sobre a economia do país importador, pela maior disponibilidade de produtos a preços mais baixos, e com características tecnológicas mais avançadas.
No entanto, um sistema em que os bens de produção (máquinas, equipamentos, insumos, partes, peças, componentes e matérias-primas) são importados de modo predominante de um país fornecedor externo implica algum grau de vulnerabilidade a decisões tomadas fora do controle local – seja pelo condicionamento a padrões produtivos determinados pelo país exportador desses bens de produção, seja pela dependência no acesso a partes e peças, ou mesmo ao apoio em termos de assistência técnica.
Há um processo de intensificação das relações bilaterais Brasil-China cujas implicações transcendem o simples registro da movimentação de mercadorias. Segundo a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (SECEX/MDIC), em 2024 apenas 10% das empresas brasileiras com atividade exportadora realizaram vendas à China. Ao mesmo tempo, 70% das empresas importadoras brasileiras adquiriram produtos chineses. Uma indiscutível penetração de produtos chineses.
A China conta com algumas fontes específicas de vantagens comparativas, como a dimensão do mercado interno, que permite a produção em grande escala, os ganhos de competitividade permitidos pela produção em cadeias de valor, a crescente disponibilidade de engenheiros, e diversos outros fatores. Além disso, segundo estudo da Universidade Duke, a China forma por ano quase dez vezes mais engenheiros que os Estados Unidos. Nas áreas de engenharia, ciência da computação e informática essa relação é quase o triplo a favor da China.
De acordo com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em 2024 a China liderou a lista de países com pedidos de novas patentes, com 70 mil processos, seguida pelos Estados Unidos (54 mil), Japão (48 mil), Coreia do Sul (24 mil) e Alemanha (17 mil). Esses cinco países correspondem a 78% dos processos envolvendo desenho industrial no mundo. O acelerado processo de pedidos de patentes por parte da China, num momento em que a economia brasileira tem acelerado as importações de produtos industrializados daquele país, motiva a consideração dos efeitos potenciais, por suas implicações também em termos de padrões produtivos.
É impossível antever todos os efeitos do contato com novas tecnologias, e todas as áreas que possam vir a ser afetadas. Mas parece razoável considerar desde já alguns setores que seriam naturalmente influenciados. Um deles é a indústria de transformação. A produção industrial tem incluído de forma crescente a contribuição de atividades classificadas no setor de serviços, assim como processos envolvendo tecnologia mais sofisticada. Exemplos disso são o uso de inteligência artificial, o emprego de robôs e outras novidades, que são menos encontradas nas empresas brasileiras.
. EPSTEIN, David. Quality vs. Quantity in Engineering. Inside Higher Ed, 2 mar. 2006. https://www.soc.duke.edu/GlobalEngineering/pdfs/media/FramingEngineering/InsiderHigherEd_QualvsQuan.pdf. Acesso em 20.08.2025.
No tocante mais diretamente aos complexos químico e farmacêutico, essa apreciação deve ser complementada por considerações adicionais. O 14º Plano Quinquenal da China (2021-25) enfatiza os esforços nas áreas de cuidados da saúde e biotecnologia. O Plano menciona explicitamente a pesquisa e inovação tecnológica em biologia sintética, manipulação de células genéticas, pesquisa e desenvolvimento de novas vacinas, diagnósticos in vitro, novos medicamentos, assim como a criação de novas variedades de cultivos, animais e microrganismos agrícolas.
Do ponto de vista da economia brasileira, a ênfase no setor de saúde e nas indústrias produtoras de materiais de saúde cria oportunidades para investimentos nessa área, algo que a pandemia mostrou ser premente. Ao mesmo tempo, cria oportunidades para intercâmbio de tecnologias. A permanecerem essas diretrizes no próximo Plano Quinquenal, há, portanto, motivos para otimismo quanto a possibilidades de desenvolvimento de iniciativas conjuntas e ao acesso facilitado a bens de produção mais baratos e tecnologicamente sofisticados.
Contudo, é importante não perder de perspectiva os riscos potenciais que podem derivar da dependência crescente de oferta de bens de produção provenientes de apenas uma ou de poucas origens, como já mencionado. A lógica financeira que recomenda reduzir riscos pela diversificação na composição da carteira não deveria ser desconsiderada ao se pensar nas opções tecnológicas.
