
Em parceria com a Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil, a Revista FACTO abre espaço para o artigo de Marcelo Morales, Professor Titular da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Nacional de Medicina, da Academia Nacional de Farmácia e da Academia Brasileira de Médicos Escritores.
A medicina vive um momento que, há poucas décadas, pareceria ficção científica. Hoje é possível corrigir, silenciar ou inserir genes para tratar doenças antes consideradas intratáveis. A terapia gênica, consolidada como uma das mais promissoras fronteiras terapêuticas, vem se beneficiando de avanços expressivos na biotecnologia, no entendimento molecular das doenças e no desenvolvimento de plataformas farmacêuticas capazes de transformar informação genética em medicamentos funcionais.
O que distingue a terapia gênica de qualquer outra intervenção médica e também do ponto de vista farmacêutico é a natureza singular do seu princípio ativo. Em vez de moléculas pequenas ou proteínas recombinantes, trabalha-se com material genético (DNA, RNA) ou construções sintéticas projetadas para modular, corrigir ou substituir de forma precisa a expressão de genes-alvo. Essa especificidade impõe desafios e oportunidades únicas à farmacotecnologia, que precisa proteger o material genético da degradação enzimática, direcioná-lo seletivamente ao tecido ou tipo celular de interesse e assegurar que sua expressão seja eficiente, controlada e segura. Ao integrar essas soluções, abre-se caminho para uma medicina de precisão em nível molecular capaz de intervir diretamente na causa da doença.
Plataformas de entrega e engenharia farmacotecnológica
O maior desafio e também o motor da inovação na área é garantir a entrega eficiente do material genético ao interior das células, seja in vivo (diretamente no organismo do paciente) ou ex vivo (com modificação genética de células fora do corpo seguida de reintrodução no paciente).
Vetores virais como adenovírus, vírus adeno-associado (AAV) e lentivírus seguem como ferramentas centrais na terapia gênica graças à alta eficiência de transdução e à possibilidade de expressão estável e sustentada do transgene. Paralelamente, vetores não virais, incluindo nanopartículas lipídicas, polímeros catiônicos como poli-amino éster e polietilenimina e sistemas conjugados a ligantes específicos vêm ganhando protagonismo por oferecer maior flexibilidade de formulação, menor imunogenicidade, custos potencialmente mais baixos e viabilidade de produção em escala industrial. O sucesso global das vacinas de mRNA contra a covid-19 acelerou a validação dessas plataformas e consolidou-as como alternativas competitivas para aplicações terapêuticas além das vacinas.
Do ponto de vista da tecnologia farmacêutica, o desenvolvimento dessas plataformas exige precisão em todas as etapas, incluindo formulações estáveis, escalabilidade industrial, controle rigoroso de pureza e atividade, além de estudos pré-clínicos robustos que caracterizem biodistribuição, cinética de expressão e perfil de segurança. É nessa interseção entre ciência básica e engenharia farmacêutica que surgem produtos capazes de chegar ao paciente com eficácia e segurança.
Regulação e cenário brasileiro
O Brasil conta com um marco regulatório específico para medicamentos de terapia avançada, estabelecido pela Resolução RDC nº 338/2020 da Anvisa. Essa norma define requisitos para registro, condução de ensaios clínicos e monitoramento pós-comercialização de terapias gênicas, celulares e de engenharia tecidual, alinhando o País a diretrizes de agências como a European Medicines Agency (EMA), da União Europeia, e a Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos. Quando aplicável, especialmente em produtos que envolvam organismos geneticamente modificados (OGMs), há participação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), conforme previsto na Lei nº 11.105/2005.
A Anvisa também mantém canais formais de diálogo com pesquisadores e empresas, permitindo reuniões de pré-submissão e consultas técnicas. Esse é um recurso estratégico para que projetos acadêmicos migrem com maior fluidez para o setor produtivo. Pude testemunhar essa aproximação quando, como Secretário de Pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), acompanhei pesquisadores no diálogo com a Anvisa para o desenvolvimento de vacinas nacionais durante a pandemia.
Ainda assim, há espaço para otimizar processos sem comprometer a segurança, aproximando mais efetivamente a academia e a indústria para transformar descobertas científicas em produtos viáveis e acessíveis.
Aplicações clínicas e potencial translacional
Embora frequentemente associada à oncologia, a terapia gênica vai muito além. No nosso laboratório, integrante do Instituto Nacional de Terapia Gênica (INTERGEN), desenvolvemos estratégias baseadas em genes antifibróticos e anti-inflamatórios para doenças renais e pulmonares, visando não apenas controlar sintomas, mas modificar o curso dessas enfermidades. Já avançamos com plasmídeos e vetores produzidos sob Boas Práticas de Laboratório (GLP), etapa estratégica rumo à produção em Boas Práticas de Fabricação (GMP) e à aplicação em ensaios pré-clínicos e clínicos.
Esse trabalho integra um conjunto de várias iniciativas nacionais em estágio avançado, voltadas a diferentes doenças e que abrangem desde o desenho e otimização de vetores até estudos pré-clínicos robustos com plataformas virais e não virais. Em conjunto, essas pesquisas formam uma base científica e tecnológica capaz de posicionar o Brasil de forma competitiva no cenário global das terapias gênicas.
O próximo passo é transformar esse conhecimento em produtos acessíveis à população. Para isso, são essenciais parcerias sólidas com o setor farmacêutico, capazes de conduzir ensaios clínicos, produzir em escala sob GMP e viabilizar a distribuição nacional, especialmente para doenças de alta prevalência e impacto econômico, hoje com poucas opções terapêuticas eficazes.
Desafios e oportunidades para o Brasil nas terapias gênicas
Os avanços em terapia gênica trazem desafios técnicos claros, como imunogenicidade dos vetores, entrega eficiente a tecidos específicos, durabilidade da expressão e custos de produção, mas também um cenário inédito de oportunidades para o País. O Brasil já conta com grupos de pesquisa com competência científica, infraestrutura laboratorial e resultados pré-clínicos promissores. Para que essas soluções cheguem à sociedade de forma economicamente viável e em prazos compatíveis com a demanda clínica, é essencial intensificar a articulação entre academia, setor produtivo e governo.
Se o País criar as condições e os incentivos adequados, incluindo fomento, desoneração e marcos regulatórios que facilitem a translação, será possível ocupar um espaço estratégico nesse mercado global em expansão, produzindo terapias adaptadas ao perfil epidemiológico brasileiro e reduzindo a dependência de importações de alto custo.
A capacidade de escrever, editar e entregar sequências genéticas com segurança redefine o conceito de medicamento, permitindo não apenas tratar sintomas, mas reprogramar a biologia para corrigir doenças em sua raiz molecular. No Brasil, a combinação de competência científica instalada, marco regulatório estruturado e um setor farmacêutico em busca de inovação cria um ambiente fértil para transformar esse potencial em realidade. Com visão estratégica e parcerias sólidas, o País pode não apenas acompanhar a revolução, mas liderar o desenvolvimento de terapias gênicas voltadas às necessidades específicas da nossa população. O caminho está aberto e o futuro pronto para ser construído.
Referências Bibliográficas
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