O setor farmacêutico está em grande expectativa por mudanças na atual regulação de preços de medicamentos, que é criticada por estar em descompasso com os avanços tecnológicos e sanitários do Brasil nos últimos 20 anos. O governo emitiu alguns sinais de que a pauta pode evoluir. O Ministério da Fazenda incluiu a modernização do marco legal entre as prioridades para o biênio 2025-2026. A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) confirma que o tema consta de seu plano estratégico e, no começo deste ano, fez uma consulta dirigida sobre preços dos produtos de terapia avançada, o que pode ser considerado um primeiro passo para mudanças mais amplas.
Uma das principais críticas de empresas e especialistas é a cesta de países usada pela CMED para definir o teto de preço (price cap) de um novo medicamento no mercado. A CMED considera países com sistemas de saúde e níveis de desenvolvimento econômico-social muito diferentes do Brasil, o que resulta em preços elevados para a realidade nacional. A presença dos Estados Unidos (país que praticava preços livres até 2022) tem sido apontada por pesquisadores como um importante fator de distorção.Graziela
A situação vai contra a posição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que recomenda às nações cautela na escolha da cesta de países e a adoção de preços internos de referência, comparando produtos terapêuticos semelhantes. Diferentemente dessas orientações, o teto de preço praticado no Brasil pode tornar as margens de lucro dos medicamentos novos bastante elevadas. Quem perde é a indústria nacional e o cidadão.
“Em muitos segmentos, há forte concentração de mercado, exclusividades e preços próximos ao teto. Vale notar que as empresas estrangeiras são majoritariamente as detentoras dos registros de comercialização de medicamentos novos, o que intensifica a dependência externa tanto na balança comercial quanto na de serviços brasileira”, explica a professora Julia Paranhos, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“É importante esse mercado chegar a um equilíbrio entre um preço que seja baixo o suficiente para promover o acesso da população, mas que também permita à indústria produzir, gerar inovações e desenvolver novas tecnologias”, destaca a coordenadora de Ciência, Tecnologia e Inovação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Graziela Zucoloto. Segundo ela, talvez esse seja o maior desafio da política de regulação de preços no setor farmacêutico.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2012 corrobora os problemas indicados, assim como a insuficiência de instrumentos de incentivo à inovação, à concorrência e à redução de custos. Nova auditoria, em 2015, não verificou mudança significativa na regulação. “O marco regulatório foi positivo para o Brasil, tornando previsível a precificação e estimulando a competitividade entre os diferentes cenários de medicamentos inovadores, similares, genéricos e biológicos. Por outro lado, a regulação sanitária continuou se desenvolvendo, exigindo dos fabricantes elevados investimentos em segurança, qualidade e eficácia de medicamentos, demonstrando que o conceito aplicável para o price cap não pode ser considerado absoluto ou estanque”, analisa Roberto Altieri, diretor jurídico da Blau Farmacêutica.
Concordando com a necessária existência da regulação, Paranhos alerta que um modelo de precificação ineficaz pode anular os esforços das políticas industrial e de inovação. Nesse sentido, a regulação precisa estar articulada com outros instrumentos de fomento à produção nacional, como as compras públicas, as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) e os programas de encomenda tecnológica.
Medicamentos novos, casos omissos
As novas tecnologias de saúde trazem desafios ainda maiores para a formação de preços. A Resolução CMED nº 2/2004 estabelece categorias específicas para enquadramento dos produtos a serem precificados, com critérios distintos conforme o grau de inovação e o tipo de apresentação. No entanto, uma quantidade cada vez maior de tratamentos inovadores precisa ser encaixada como “casos omissos”, uma vez que não atendem às categorias existentes.
Normalmente é o que acontece com as inovações incrementais, os biossimilares e as terapias avançadas. Segundo Altieri, os casos omissos demandam dos examinadores da Anvisa um trabalho de pesquisa mais longo e demorado em consequência da falta de critérios estabelecidos para a análise. Tal demora pode anular as vantagens competitivas do produto, desestimular o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil e limitar o acesso da população a tratamentos mais avançados, opina o diretor da Blau.
Segundo ele, a ausência de regras claras, específicas e atualizadas para produtos mais recentes gera insegurança jurídica e retarda o processo de precificação, transformando-se em barreira de entrada para novos medicamentos.
Os principais problemas relatados por Altieri foram verificados também na tese de doutorado de Julia Paranhos. Para as empresas nacionais, os preços dos produtos inovadores são calculados com base em medicamentos já disponíveis, sem considerar os avanços tecnológicos incrementais realizados. “Essas críticas aumentaram nos últimos 15 anos, a partir da ampliação dos investimentos inovativos das empresas farmacêuticas nacionais”, revela.
Genéricos
Com relação aos genéricos, Roberto Altieri, da Blau, observa falhas na aplicação das normas, especialmente quando não há mais o medicamento inovador no mercado. O teto do preço de fábrica dos genéricos são 65% do preço do medicamento de referência. Ele chama atenção para a Lei 6.360/1976, que define medicamento de referência como o inovador que foi registrado – e não aquele eleito pela Anvisa como substituto do inovador descontinuado.

No entendimento de Graziela Zucoloto, do Ipea, o fortalecimento da concorrência e a entrada rápida de genéricos são fatores-chave para ampliar o acesso e reduzir preços. Com base em evidências reunidas no livro “Tecnologias e preços no mercado de medicamentos”, publicado pelo instituto, ela afirma que a presença de três ou mais genéricos em um mercado pode reduzir os preços em mais de 50%. O fator tempo também é crucial: quanto mais cedo os genéricos entram no mercado após a expiração da patente, maior o impacto sobre os preços.
Indo na mesma linha, Julia Paranhos, da UFRJ, cita estudo recente que identificou maiores reduções de preços médios em segmentos com maior concorrência. “Isso indica que a regulação poderia ser revisada para se tornar mais efetiva, permitindo ampliação do acesso frente à forte competitividade da indústria local.” Para ela, concorrência e regulação devem atuar de forma complementar.
Outro problema relacionado aos genéricos é a existência de múltiplos Preços Máximos ao Consumidor para um mesmo princípio ativo, a depender do momento em que entram no mercado. “Medicamentos com características idênticas acabam tendo preços diferentes, o que distorce o mercado e prejudica os efeitos esperados da concorrência”, explica Paranhos.
Um dos estudos no livro do Ipea confirmam que a vinculação do preço dos genéricos aos de referência se mostrou incompatível com a realidade do mercado. Em consequência, muitos genéricos são vendidos com preço acima dos de referência. O estudo apresenta ainda críticas ao cálculo de reajuste anual de medicamentos baseado na inflação, que pode desencorajar aumentos de produtividade e ainda elevar o preço dos genéricos ao consumidor.
Altieri defende uma reforma estrutural da CMED, com regras mais claras, prazos definidos e possibilidade de revisão periódica, o que pode ser endereçado no novo regimento interno do colegiado, cuja modernização foi discutida em audiência pública em dezembro passado.
IFAs: efeito em cadeia
Para além dos medicamentos prontos, a política de precificação também afeta a cadeia produtiva de forma indireta. Marcelo Mansur, diretor-presidente da Nortec Química, explica que, embora a regulação incida sobre o produto final, os fornecedores de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) são afetados pelas margens praticadas pelas farmacêuticas.

Segundo ele, o preço dos IFAs não é regulado no Brasil, sendo determinado pelo mercado e pela concorrência principalmente com fornecedores asiáticos. “A precificação impõe um teto de receita para as farmacêuticas. E, quanto mais apertado for esse teto, mais pressão elas terão para reduzir seus custos, inclusive com insumos”, observa.
Mansur defende uma visão estratégica para o setor de IFAs. “Hoje 95% dos IFAs usados no Brasil são importados, e 70% da produção mundial está concentrada na China e na Índia. Isso aconteceu porque, ao longo do tempo, a gente tratou o IFA como uma commodity”, afirma. Ele defende políticas públicas que estimulem o uso de IFAs locais, com mecanismos como margens preferenciais nas compras públicas e prioridade para o registro de medicamentos com IFAs nacionais.
Apesar do reconhecimento sobre a necessidade de mudanças, ainda não há clareza sobre quais caminhos serão adotados. Para a professora Julia Paranhos, do Instituto de Economia da UFRJ, a regulação é essencial para garantir o acesso da população e deve ser mantida com ajustes pontuais que promovam maior previsibilidade e considerem as especificidades de cada segmento, sugestões vislumbradas também por Altieri, da Blau.
Diante desse cenário, a revisão do modelo de precificação pode se tornar uma oportunidade estratégica para o País. Com a ampliação dos investimentos públicos e privados no Complexo Econômico-Industrial da Saúde, o Brasil precisa de uma política de preços que dialogue com os objetivos de soberania sanitária, equilíbrio fiscal e acesso universal à saúde. “A atividade regulatória sanitária brasileira é uma das mais respeitadas do mundo. Precisamos replicar esse nível de excelência na precificação”, finaliza Altieri, da Blau.