Em meio às instabilidades dos cenários nacional e internacional, Brasil precisa avançar na agenda de desenvolvimento industrial para manter crescimento e ampliar exportações
Inflação, câmbio, juros e tarifas internacionais são alguns dos elementos que constituem o cenário atual de incertezas no Brasil e no mundo. Tais desafios se somam aos aspectos estruturais que prejudicam o desenvolvimento da indústria nacional. Porém, essa conjuntura instável também apresenta oportunidades, que podem envolver novas parcerias, investimentos e a maior participação das empresas brasileiras nas chamadas cadeias globais de valor, inclusive nos setores de química fina, biotecnologia e suas especialidades.
Para isso, a cooperação entre os setores público e privado, por meio de políticas públicas adequadas ao cenário atual, é fundamental para superar os desafios regulatórios, tributários e de investimentos, entre outros, transformando as oportunidades em realizações. Um “pacto nacional”, conforme definido pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), mostra-se necessário para buscar o equilíbrio entre as políticas monetárias e fiscais e o desenvolvimento da indústria nacional, com foco tanto no mercado interno quanto nas exportações.
“A inserção do Brasil nas cadeias globais de valor representa um desafio histórico e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para o desenvolvimento econômico e industrial do País”, resume o presidente-executivo da ABIFINA, Andrey Freitas.

Um modelo de produção globalizado
Porém, antes de chegar às iniciativas para enfrentar os desafios presentes, é preciso entender melhor como se constituíram as cadeias globais de valor e as transformações ocorridas nos últimos anos.
Desenvolvido a partir dos anos 1980 pelo pesquisador norte-americano Michael Porter, o conceito de cadeia de valor envolve o conjunto de atividades relacionadas ao ciclo de produção de bens e serviços, incluindo desde a pesquisa e desenvolvimento, design e fabricação até as etapas de distribuição e pós-vendas. Na economia globalizada, as etapas do processo podem ser realizadas por várias empresas, em diferentes países, sob a coordenação de uma firma-líder. Dessa forma, as diversas empresas envolvidas contribuem para gerar valor no produto final.
Assim como ocorreu de forma expressiva na Ásia, a inserção nas cadeias globais de valor gera oportunidades para todos os países em desenvolvimento. No caso do Brasil, o potencial é ainda maior devido à sua rica biodiversidade, ampliando as possibilidades de participação até nas etapas de pesquisa e desenvolvimento em setores como o farmoquímico e o farmacêutico. No entanto, para estimular tal inserção, tornam-se necessárias políticas públicas para ampliar a atratividade do País, focando na melhoria da capacidade produtiva e do ambiente de negócios.
O potencial de integração entre as empresas no plano global está aumentando ainda mais devido às tecnologias digitais, incluindo inteligência artificial, internet das coisas, robótica e a melhoria da conectividade em geral, como destaca o economista Ronaldo Fiani, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em artigo publicado pelo jornal Diário de Petrópolis em novembro de 2024. Por outro lado, o pesquisador ressalta que as mesmas tecnologias também podem contribuir em sentido contrário, de modo que as empresas-líderes possam fazer cada vez mais atividades internamente, sem recorrer a terceiros, já que tais inovações reduzem a vantagem competitiva dos mercados de baixo custo.
Pandemia e um passo atrás
Nos últimos anos, não foram apenas as tecnologias digitais que provocaram mudanças nas cadeias globais de valor. As crescentes medidas de protecionismo comercial, que estão no centro dos debates após as tarifas recentemente impostas pelos Estados Unidos, as preocupações geopolíticas e os impactos da pandemia da Covid 19, que evidenciaram a fragilidade das cadeias de suprimentos, são fatores que estimularam o retorno da produção aos países de origem – processo chamado de reshoring.
Nesse contexto, governos e empresas estão investindo em cadeias de suprimentos mais seguras e previsíveis, especialmente em setores estratégicos, como as indústrias farmoquímicas e farmacêuticas. O objetivo é fomentar a produção doméstica ou regional e reduzir a dependência de fornecedores estrangeiros. Para isso, Estados Unidos e União Europeia, por exemplo, criaram políticas para produção local de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) e medicamentos essenciais.
Na China e na Índia, a produção de IFAs também continua sendo prioridade. Os chineses seguem como maiores produtores de tais insumos, enquanto os indianos estão reforçando sua posição como fornecedores de medicamentos genéricos e IFAs.
Impactos da política industrial
No Brasil, que importa cerca de 90% dos IFAs que utiliza, a reversão do cenário de dependência externa nos segmentos farmoquímicos e farmacêuticos também é prioridade. Tanto que, na Nova Indústria Brasil (NIB), a política industrial lançada pelo Governo Federal em janeiro de 2024, uma das seis missões está voltada para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, com foco na redução das vulnerabilidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e na ampliação do acesso à saúde. A meta é produzir no País, em 2026, 50% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, materiais e outros insumos e tecnologias em saúde. Até 2033, o objetivo é ampliar esse índice para 70%.
Por meio do Plano Mais Produção, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e pela Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), foram disponibilizados cerca de R$ 507 bilhões em créditos para projetos voltados à produtividade, inovação, exportação e sustentabilidade nas seis missões. Com foco na área de química fina, em particular, os investimentos públicos e privados na missão de saúde somam R$ 57,4 bilhões em projetos que envolvem biotecnologia, medicamentos de alta complexidade, anticorpos monoclonais, fitocosméticos, entre outros segmentos de ponta.
Nesse contexto, o Governo Federal retomou também as parcerias público-privadas no setor de saúde, com o objetivo de reduzir as dependências produtivas e tecnológicas, estimular a fabricação no Brasil de produtos estratégicos para o SUS e fomentar a transferência de tecnologia, bem como a inovação neste segmento. De acordo com o balanço apresentado em outubro de 2024 pelo Ministério da Saúde, foram realizadas 322 propostas de projetos, sendo 175 para o Programa de Desenvolvimento e Inovação Local (PDIL) e 147 para as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP).
Alta expressiva no PIB industrial
Após um ano de implementação da NIB, os impactos da política são positivos, como avalia o superintendente de Política Industrial da CNI, Fabrício Silveira. Segundo ele, a alta de 3,4% do PIB brasileiro em 2024 foi mais positiva que a dos anos anteriores devido à expressiva aceleração das atividades relacionadas ao ciclo econômico interno, como a indústria de transformação e o investimento.

No ano passado, o PIB do setor industrial cresceu 3,3%, constituindo o quarto melhor resultado em 15 anos, sendo que a indústria de transformação teve aumento de 3,8%, o maior desde 2010. Anteriormente, em 2023, o crescimento do PIB da indústria foi de 1,7%.
“Essa alta da indústria, mais intensa e disseminada, é fator especialmente positivo da composição do PIB em 2024, pois o setor gera forte encadeamento positivo na cadeia produtiva, além de pagar salários mais elevados e realizar mais investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação”, analisa Silveira.
Outro destaque no crescimento do PIB em 2024, que o diferencia dos anos anteriores, na avaliação de Silveira, foi o forte desempenho dos investimentos. Nesse sentido, a taxa de investimento (a razão entre este indicador e o PIB) aumentou de 16,4% em 2023 para 17% no ano passado.
Depois do recorde, as incertezas
Entre as boas notícias, o superintendente da CNI menciona ainda que o Brasil registrou recorde de exportações da indústria de transformação em 2024: US$ 181,9 bilhões, o que representa aumento de 2,7% em relação ao ano anterior. Com foco no futuro, o setor industrial anunciou investimentos de R$ 2,2 trilhões até 2029, como resposta aos estímulos da NIB.
Porém, desde o ano passado, as dificuldades no ambiente macroeconômico, envolvendo inflação, juros e câmbio, além das instabilidades internacionais, trouxeram incertezas para um cenário que parecia promissor. Daí a necessidade do “pacto nacional” pelo crescimento, citado anteriormente e defendido pelo presidente da CNI, Ricardo Alban, em artigo publicado pelo jornal A Tarde em janeiro deste ano. A ideia é buscar uma convergência entre governo, setor privado e sociedade civil em torno de metas fiscais e políticas econômicas estruturantes para que, enquanto se busca o equilíbrio das contas públicas, também haja estímulos seletivos que preservem os investimentos na indústria.
“O cenário de juros altos significa crédito mais caro para as empresas, o que inviabiliza investimentos e, consequentemente, prejudica a competitividade. Se considerarmos o atual cenário global, a dificuldade de investir pode levar a indústria e o País a ficarem ainda mais atrás na corrida pela competitividade”, alerta Silveira.
Desafios estruturais
Além dos aspectos macroeconômicos citados, outros desafios estruturais precisam ser superados para impulsionar as indústrias farmoquímicas e farmacêuticas. Muitos deles estão contemplados entre as prioridades da NIB.
Na questão tributária, por exemplo, a reforma aprovada recentemente e que será implementada entre 2026 e 2033 poderá reduzir a complexidade do sistema e diminuir custos para a indústria nacional. Segundo estudo da LCA Consultores e da CNI, a tributação total da indústria equivale hoje a 42% da receita líquida do setor. No novo modelo de tributação do consumo, estima-se que a alíquota padrão ficará em torno de 28%. Nesse sentido, para Silveira, a reforma tributária será um instrumento fundamental para acelerar o desenvolvimento econômico e social do País.
Por outro lado, o presidente-executivo da ABIFINA recorda que haverá um impacto significativo sobre a estrutura das cadeias produtivas no Brasil. Isso porque, ao longo das últimas décadas, a geografia da produção foi definida por incentivos fiscais concedidos por estados e municípios. Com a reforma tributária, tais incentivos deixam de existir, o que pode levar à reestruturação geográfica dos investimentos e da logística.
“Esse cenário pode gerar aumento de custos para empresas que terão de redefinir suas estratégias de localização, impactando a competitividade da indústria nacional e sua inserção nas cadeias globais de valor”, alerta Andrey Freitas.
Para o dirigente, outro ponto crítico é a regulação de preços no setor farmacêutico, que pode limitar a rentabilidade da produção local e impactar a capacidade de investimentos das empresas.
Ainda na temática estrutural, o vice-presidente da Nortec Química, Marcus Soalheiro, destaca a importância da colaboração entre agentes públicos e privados, incluindo as universidades e as instituições de pesquisa, para superar o desafio fundamental da química fina brasileira. Para ele, esse desafio consiste em integrar a imensa variedade de recursos naturais disponíveis com a relativa escassez dos outros recursos necessários para a exploração sustentável desse patrimônio. Tais parcerias podem envolver ações de pesquisa e desenvolvimento, além da transferência efetiva de tecnologia, contribuindo para uma cadeia produtiva mais robusta.

“É imperioso que o Brasil aprenda a trabalhar em rede, fortalecendo uma política de parcerias estratégicas lastreadas no interesse nacional”, indica Soalheiro.
Por sua vez, Ronaldo Fiani, da UFRJ, ressalta a importância de ampliar a capacitação da indústria nacional em etapas críticas do processo produtivo, o que envolve investimentos de longo prazo em inovação, infraestrutura e recursos humanos. Estas etapas críticas são aquelas que exercem o comando sobre a cadeia produtiva da indústria de química fina, pois toda cadeia produtiva possui uma hierarquia. Trata-se de formular políticas que incentivem o upgrade da indústria nacional, onde ele é desejável e possível.

“Além da estabilidade econômica e institucional, é fundamental o crescimento da indústria para atrair o investimento de parceiros internacionais, pois a evidência empírica tem comprovado que o principal fator a atrair investimentos para qualquer indústria é o seu crescimento”, declara Fiani.
Aproveitar as oportunidades
De modo mais amplo, pode-se afirmar que o desafio está no combate ao chamado Custo Brasil, que consome cerca de R$ 1,7 trilhão por ano (20% do PIB nacional), de acordo com estudo realizado pelo Movimento Brasil Competitivo (MBC) em parceria com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
Essa despesa adicional para produzir no Brasil, comparada à média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), envolve aspectos como: obrigações tributárias; financiamentos; custos de energia elétrica; acesso à infraestrutura de transporte, logística e telecomunicações; integração com a economia global; e ambiente jurídico-regulatório; entre outros. A temática foi objeto de consulta pública do MDIC em 2023, que subsidiou a formulação da Agenda de Redução do Custo Brasil, que está em execução.
Só assim o Brasil poderá aproveitar as oportunidades geradas pela conjuntura atual, criando um ambiente seguro e competitivo para atrair novos parceiros e investidores, inclusive os que estejam eventualmente fugindo dos riscos geopolíticos e buscando alternativas aos grandes produtores tradicionais.
“A instabilidade global vai acabar por comprometer cadeias que até agora se mostravam lucrativas, inclusive digitais. Ao mesmo tempo, vai acentuar a busca por novos mercados, como o brasileiro, por parte de empresas que foram excluídas de mercados vantajosos por barreiras tarifárias e outros controles. Isto abre a possibilidade de ampliação dos investimentos locais, mas exige atenção e rapidez na formulação de estratégias e políticas para o setor”, afirma Fiani.
Até mesmo na questão das tarifas impostas recentemente pelos Estados Unidos, o Brasil não está entre os países mais afetados, de acordo com o anúncio realizado em 2 de abril, o que pode abrir novas oportunidades para parcerias e também para as exportações brasileiras.
“Com a atual política tarifária dos Estados Unidos e as retaliações dos países afetados, podem ser abertos novos mercados para a química fina brasileira, especialmente após o acordo com a União Europeia, que deve ser muito afetada pelas tarifas norte-americanas”, observa Fiani.
Nesse contexto, o Brasil está em posição privilegiada para avançar nas parcerias internacionais, como aponta Soalheiro.
“O Brasil ocupa uma posição singular no quadro geo-político que se desenha atualmente. Membro fundador do BRICS, no Sul Global, ao mesmo tempo no Ocidente e com rica cultura mesclando heranças europeias, africanas e indígenas, o País pode representar uma ponte entre os diferentes blocos, explorando, com pragmatismo, as oportunidades comerciais e tecnológicas que se oferecem”, defende o 1º vice-presidente do Conselho Administrativo da ABIFINA.
Em suma, ao adotar medidas coordenadas para reduzir o Custo Brasil e estimular a produção nacional, o Brasil poderá fortalecer sua posição na cadeia global da saúde, além de ampliar sua capacidade de inovação e consolidar sua indústria como um ator relevante no cenário internacional, de acordo com Freitas.
“Com estratégias bem direcionadas, o Brasil pode reduzir sua dependência externa, atrair investimentos e consolidar sua competitividade no setor farmoquímico e farmacêutico, gerando benefícios tanto para a economia quanto para a saúde pública”, conclui o presidente-executivo da ABIFINA.