O fortalecimento da indústria nacional de medicamentos e insumos farmacêuticos ativos tem sido uma prioridade para o Governo Federal, que aposta no poder de compra do Estado como um instrumento estratégico para impulsionar a inovação e garantir a soberania sanitária do Brasil. Na entrevista a seguir, a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, detalha as novas iniciativas adotadas para estimular o setor, como as margens de preferência e o Programa de Desenvolvimento e Inovação Local (PDIL), explicando como essas medidas se articulam com políticas já consolidadas, por exemplo, as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs). Dweck também discute os desafios e ações inovadoras no Governo Federal para ampliar o impacto econômico e tecnológico das compras governamentais.
Como a gestão inovadora nos serviços públicos na área da saúde pode contribuir para fortalecer a produção nacional de medicamentos e insumos?
A pandemia da Covid-19 reforçou a importância de o Brasil desenvolver uma indústria farmacêutica robusta e inovadora, pois, além dos benefícios socioeconômicos, trata-se de uma questão de segurança nacional. No auge da crise, quando mais precisamos, ficamos sujeitos às políticas dos países fabricantes desses produtos, que naturalmente privilegiaram suas necessidades domésticas.
Graças ao Sistema Único de Saúde (SUS), o Brasil é o maior comprador do mundo na área de saúde, com mais de R$ 40 bilhões em aquisições por ano. É possível usar esse poder de compra de forma estratégica para fortalecer a produção nacional, estimular a inovação, estabelecer boas práticas e garantir soberania. As Parcerias Público-Privadas (atualmente Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo – PDPs) foram criadas visando desenvolver a capacidade da indústria brasileira, tendo o Ministério da Saúde iniciado sua efetivação há mais de 15 anos. As PDPs promovem a internalização, no País, de tecnologias críticas para a área de saúde em contrapartida de contratos de fornecimento de medicamentos.
No ano passado, essa política foi fortalecida com o lançamento do Programa de Desenvolvimento e Inovação Local (PDIL) e das margens de preferência para medicamentos. O PDIL garante contratos de fornecimento para produtos desenvolvidos no País e que atendam às necessidades mais críticas identificadas pelo Ministério da Saúde. E para dar mais segurança para os investidores e estimular a produção, as margens de preferência garantem que, caso a diferença de preço entre o produto fabricado no Brasil e o estrangeiro seja de até 5%, a preferência deve ser dada ao produto nacional. Caso, além da fabricação do medicamento, o IFA (insumo farmacêutico ativo, componente mais nobre do medicamento) seja produzido internamente, a margem de preferência é de 15%.
O governo Lula 2 criou a Lei nº 12.349/2010, que permitiu a concessão de margem de preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais nas licitações públicas. O que aconteceu de lá para cá e quais lacunas a nova regulamentação cobre?
A Lei nº 12.349/2010 introduziu as margens de preferência na Lei nº 8.666/1993 como instrumento para estimular a produção nacional. As margens adotadas na época eram definidas por meio de decretos e tinham duração variável, mas sempre limitada, conforme estabelecido em cada um dos respectivos decretos. A grande maioria desses atos teve sua vigência encerrada até dezembro de 2016. Posteriormente, o restante foi revogado pelo Decreto nº 11.045, de 27 de abril de 2022.
Com a aprovação da Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), o mecanismo de margem de preferência foi recuperado. A nova lei estabeleceu, em seu artigo 26º, que poderia ser aplicada margem de preferência de até 10% para bens manufaturados e serviços nacionais, bem como para bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis. Isso significa que o Estado brasileiro pode pagar até 10% mais caro que a melhor oferta do item que não esteja enquadrado nessas condições. A Nova Lei estabeleceu ainda que margens adicionais poderiam ser concedidas para bens e serviços resultantes de desenvolvimento tecnológico no País, totalizando 20%.
Em janeiro de 2024, com a publicação do Decreto nº 11.890/2024, o artigo 26º da Nova Lei de Licitações foi regulamentado e foram estabelecidas diretrizes para a aplicação da margem de preferência na Administração Pública Federal. Este decreto também criou a Comissão Interministerial de Contratações Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (CICS), composta por sete ministérios, Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Finep. A CICS se tornou a instância responsável por analisar e estabelecer margens de preferência, medidas compensatórias comerciais, industriais e tecnológicas e outros instrumentos baseados em compras públicas. Essa nova governança conferiu mais flexibilidade e efetividade na aplicação das margens. A CICS também constitui um foro de discussão do Governo Federal para o uso mais estratégico do poder de compra do Estado.
Por que não adotar o limite de 25% previsto na antiga Lei nº 12.349/2010?
No caso dos medicamentos, em análise conjunta com o Ministério da Saúde, a Secretaria Executiva da CICS entendeu que a margem de preferência normal de 5% era o mais adequado e assim propôs para o colegiado da Comissão. Medicamentos são os produtos mais comprados pelo Governo Federal, com cerca de R$ 40 bilhões adquiridos em 2024. Os valores adicionais pagos em função das margens de preferência retornam ao Estado na forma de tributos recolhidos na cadeia industrial. Porém, isso leva algum tempo e poderia gerar um impacto de curto prazo nos processos de aquisição de medicamentos. Diante disso, optou-se por uma postura mais cautelosa no caso das margens de preferência desses produtos. Além disso, os técnicos avaliaram que, no mercado de medicamentos, essa margem já seria suficiente para garantir um aumento das compras públicas de produtos produzidos e desenvolvidos no País.
Como as PDPs se articulam com as margens de preferência?
Um dos objetivos da CICS é promover a articulação do poder de compra do Estado com outras políticas públicas. Não faz sentido o Estado investir recursos para apoiar a inovação por meio da Finep, da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) ou do BNDES e ignorar esse esforço quando o produto chega ao mercado, adquirindo um importado por ser um pouco mais barato. O poder de compra do Estado deve ser utilizado de forma coordenada com outras políticas para aumentar sua efetividade.
Nesse sentido, as PDPs e as margens de preferência são instrumentos complementares, que podem e devem ser usados de forma sinérgica para fortalecer a produção nacional no setor de saúde. Quando articuladas com as PDPs, as margens de preferência criam um ambiente ainda mais favorável para o desenvolvimento da produção nacional. Enquanto as PDPs funcionam como mecanismo direto de transferência de tecnologia e desenvolvimento produtivo, envolvendo laboratórios públicos e privados, as margens de preferência atuam como incentivo de mercado.
É importante destacar que as margens de preferência não reduzem a concorrência. Produtos e serviços importados continuam a participar, mas a competição se torna mais justa, com as margens compensando parcialmente as desvantagens tributárias e de financiamento das empresas nacionais em relação a seus concorrentes estrangeiros. As margens tampouco possuem impacto fiscal relevante. Ao contrário, o impacto pode até ser positivo. Isto porque, ao comprar um produto brasileiro, o governo recolhe tributos diretos e indiretos que não seriam recolhidos caso o produto comprado fosse estrangeiro. Em muitos casos, o valor desses tributos superará o adicional pago em decorrência da margem de preferência. Além disso, a margem eventualmente levará os fornecedores estrangeiros a reduzirem seus preços e, com isso, o custo da compra pelo Estado.
Quais são os próximos passos do governo para otimizar e garantir a efetividade desse mecanismo?
O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) tem adaptado os seus sistemas, em particular o Compras.gov, para facilitar o uso das margens de preferência em licitações. Desde o ano passado, já é possível marcar no sistema que o item licitado é objeto de margens de preferência. Com isso, o sistema já faz automaticamente os cálculos necessários para ranquear as melhores propostas considerando a aplicação das margens.
Também temos estabelecido parcerias com órgãos-chave para facilitar a identificação dos produtos que fazem jus às margens de preferência. No caso de ônibus e equipamentos da linha amarela, por exemplo, a identificação é feita por meio do código CFI do BNDES, que permite a fabricantes de máquinas e equipamentos venderem produtos financiados pelo Banco. No caso de medicamentos, ela é feita por meio de um registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Dessa forma, nem o agente de contratação é onerado pela responsabilidade de verificar se a produção foi feita no País, algo que pode ser bastante complexo, nem as empresas são solicitadas a apresentar documentação excessiva para comprovar algo que o Estado brasileiro já sabe, por meio de um órgão setorial.
Apesar dos avanços, ainda há muito o que fazer. Por exemplo, não é possível aplicar margens quando a licitação é por grupo e há itens com e sem margem nesse grupo. A equipe da Secretaria de Gestão e Inovação está desenvolvendo uma metodologia para contornar essa limitação. Também identificamos a necessidade de ampliar a divulgação e orientação aos órgãos públicos sobre quando e como aplicar corretamente as margens de preferência. Isso inclui a capacitação de servidores e a elaboração de manuais e diretrizes operacionais claras. Por fim, outro aspecto importante será o desenvolvimento de sistemas de monitoramento e avaliação que permitam acompanhar em tempo real a aplicação das margens de preferência e seus resultados efetivos no fortalecimento da indústria nacional.
Existe projeção do impacto econômico da aplicação das margens nas compras públicas da saúde?
De acordo com os cálculos do MGI, cada R$ 1 milhão gasto pelo Governo Federal na compra de medicamentos produzidos no Brasil adicionam outros R$ 680 mil em valor bruto da produção interna ao longo da cadeia produtiva, além de oito novos postos de trabalho. Esse é um dos efeitos indiretos.
Além disso, temos efeitos diretos e indiretos: 8,85% do valor dispendido são arrecadados no setor e ao longo das cadeias de suprimentos, retornando aos cofres públicos. Ou seja, no caso de medicamentos, a aplicação da margem de preferência normal, que é a maioria dos casos, tem efeito fiscal líquido positivo.
Quais são os desafios de coordenar a CICS?
As instituições que compõem a CICS possuem diferentes expertises e a contribuição de cada uma delas tem sido peça-chave para as discussões e decisões. As diferentes visões ajudam a fazer com que a aplicação das margens de preferência seja feita sem qualquer perturbação nos processos de contratação já estabelecidos.
A coordenação do grupo não apresenta complexidade em si, mas qualquer política que altere a forma como o governo compra deve ser feita com muito cuidado. Obviamente, não podemos prejudicar os processos de contratação. Também não podemos onerar o agente de contratação com mais responsabilidades para implementar a política, sob risco de ela não ser implementada. Ainda há muito receio, por parte de quem opera as compras públicas, de que órgãos de controle questionem contratações que não se deem exclusivamente pelo critério de menor preço. Isso ocorre a despeito do fato de que o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) têm adotado uma postura extremamente colaborativa para a evolução dessa agenda.
Visando endereçar esses e outros desafios, o MGI tem trabalhado na elaboração da Estratégia Nacional de Contratações Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (ENCP). Ela trará diretrizes para nortear as compras públicas e garantir que o poder de compra do Estado seja usado não apenas para adquirir bens e serviços, mas gerar desenvolvimento socioeconômico sustentável, como determina a Nova Lei de Licitações.
Além das diretrizes, a ENCP terá um Plano de Ação do Governo Federal, com medidas para superar os principais obstáculos para o uso estratégico das compras públicas. Nesse sentido, a CICS terá o papel fundamental de ser o braço executor de parte importante dessas ações.
Que outros instrumentos de incentivo à inovação e ao desenvolvimento sustentável podem ser elaborados pelo Governo Federal no tocante às compras públicas?
O Governo Federal já possui à sua disposição diversos instrumentos de contratação de inovação. Além das margens de preferência adicionais e das PDPs e PDIL, temos ainda a encomenda tecnológica (criada pela Lei de Inovação) e o contrato público de solução inovadora (CPSI), introduzido pelo marco legal das startups.
Recentemente, o MGI realizou uma consulta pública para a regulamentação do Diálogo Competitivo, nova modalidade de licitação introduzida pela Lei nº 14.133, que permite a interação com o setor privado para o desenvolvimento conjunto de soluções não disponíveis no mercado.
Outro instrumento previsto na Lei nº 14.133 são as medidas compensatórias comerciais, industriais e tecnológicas (também conhecidas como offsets) para compras civis. Elas já são frequentemente aplicadas a grandes compras da área de defesa e permitem que, em contratações de elevado valor, sejam exigidos transferência de tecnologia, investimentos em produção, pesquisa e desenvolvimento no Brasil, entre outros.

Quais são as iniciativas do governo para ampliar o uso de tecnologias digitais?
Sempre digo que o Estado do futuro deve ser verde, inclusivo e digital. O Governo Federal tem investido intensamente na transformação digital do Estado. Por exemplo, temos expandido a plataforma Gov.br, que já possui mais de 150 milhões de contas ativas e permite acesso a centenas de serviços, como a assinatura digital.
Também temos avançado na emissão das Carteiras de Identidade Nacional (CIN), um documento seguro, com identificação biométrica do cidadão, que, a exemplo do que já ocorreu em outros países, vai aumentar significativamente a segurança nas relações comerciais. Já são mais de 18 milhões de CINs emitidas em todo o Brasil.
Agora estamos desenvolvendo a Infraestrutura Nacional de Dados (conhecida como Base de Dados do Brasil), uma governança para organizar e gerar interoperabilidade de dados do setor público brasileiro, que vai possibilitar o desenvolvimento de uma série de aplicações baseadas em inteligência artificial e transformar a forma como o Estado se comunica e se relaciona com o cidadão.
