O acirramento da guerra tarifária entre Estados Unidos e China não é apenas mais um capítulo de tensões comerciais entre duas potências: é um dos marcos da reconfiguração das cadeias globais de valor. Com a imposição de tarifas sobre diversos produtos, especialmente chineses e europeus, o governo americano amplia sua política industrial doméstica, o que afeta os fluxos produtivos e comerciais em todo o mundo. Esse contexto agrava o que foi evidenciado pela pandemia: já não é mais possível depender da importação de produtos de saúde estratégicos. O cenário de fragmentação abre, assim, uma janela estratégica para o Brasil, diante da possibilidade de diversificação dos fornecedores globais e da necessidade de novas localizações produtivas.
O País retomou sua política industrial enfrentando diretamente o problema da dependência externa de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), reiteradamente apontado pela ABIFINA ao governo. Garantir a soberania nacional na produção e o acesso da população a medicamentos exige a manutenção de políticas públicas de longo prazo, acompanhadas de investimentos consistentes em inovação, infraestrutura e capacitação produtiva.
Países que investiram em políticas públicas de fortalecimento da produção local – como Índia e China – ampliaram sua presença internacional. No Brasil, programas como as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) e o Programa de Desenvolvimento e Inovação Local (PDIL), aliados ao uso do poder de compra do Estado, são instrumentos centrais para consolidar a base industrial da saúde.
A Matéria Política desta edição mergulha nesse debate, destacando como a mudança de paradigma nos fluxos globais pode impulsionar a reindustrialização brasileira. A análise mostra que, em apenas um ano de vigência da Nova Indústria Brasil, o setor industrial cresceu 3,3% frente a 1,7% em 2023 — o quarto melhor resultado em 15 anos. Considerando apenas a indústria de transformação, o aumento foi de 3,8%, o maior desde 2010. Diante desses números, evidencia-se que a persistência dos incentivos à indústria pode trazer benefícios para o País nas próximas décadas.
Esta edição traz ainda uma entrevista de peso com a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, que defende o uso estratégico do poder de compra do Estado para fortalecer a indústria nacional da saúde. Ela destaca a necessidade de articulação entre mecanismos como as PDPs, o PDIL e as margens de preferência, de forma sinérgica, para estimular a inovação, garantir soberania sanitária e impulsionar a produção local de medicamentos e insumos.
Essa articulação é central para que os esforços feitos até agora não sejam anulados. A reportagem Setorial Saúde analisa a crescente demanda pela revisão do modelo vigente de precificação de medicamentos, considerado defasado frente aos avanços tecnológicos e sanitários das últimas décadas. Especialistas apontam que o modelo atual dificulta o acesso, prejudica a indústria nacional e amplia a dependência externa, ao mesmo tempo em que não se articula com políticas de inovação e produção local. A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) iniciou discussões sobre o tema, com destaque para a inadequação da cesta internacional de comparação de preços.
Outro ponto de crítica é a falta de critérios claros para a precificação da inovação e biossimilares, muitas vezes tratados como “casos omissos” na regulação, gerando insegurança jurídica e atrasos na entrada no mercado. No segmento de genéricos, apontam-se distorções na vinculação de preços e falhas na promoção da concorrência, o que, segundo estudos, compromete o potencial de redução de preços. Já para os insumos farmacêuticos (IFAs), a atual política de preços impõe desafios indiretos à produção nacional, pressionando por cortes nos custos e favorecendo a importação.
Olhando para o cenário externo, o Acordo Mercosul-União Europeia configura-se como uma aliança política e econômica que pode ampliar a projeção internacional do Brasil e garantir maior autonomia diante da polarização entre Estados Unidos e China, como alerta o consultor Rubens Barbosa no artigo “Comércio Exterior em rápida transformação”. Para os países do Mercosul, a parceria com a União Europeia pode representar um contraponto à guerra tarifária e uma abertura para mercados de alto valor agregado. O desafio, porém, está na capacidade da indústria brasileira de competir com produtos europeus que terão tarifa zero logo na entrada em vigor do acordo.
Mais um aspecto a ser considerado na reestruturação da indústria nacional é exposto no artigo “Produtos farmacêuticos com bloco de patentes brasileiras com expiração até 2030: uma oportunidade para a indústria nacional”, de Ana Claudia Oliveira e Sergio Frangioni. Os autores chamam atenção para um conjunto expressivo de patentes farmacêuticas que perderão vigência até o fim desta década, de acordo com estudo realizado pela ABIFINA. A entidade identificou mais de 1.500 patentes, organizadas em blocos que protegem cerca de mil produtos – muitos deles com potencial de produção e comercialização no Brasil nos próximos anos.
A expiração dessas patentes abre oportunidades para a indústria nacional, que poderá explorar novos mercados, desenvolver alternativas terapêuticas e ampliar o acesso da população a medicamentos. Contudo, para que isso se concretize, é preciso superar obstáculos regulatórios, produtivos e institucionais. Numa crítica ao evergreening, que prolonga indevidamente monopólios e dificulta a entrada de genéricos no mercado, os autores defendem maior protagonismo do Estado, com mecanismos que assegurem que o sistema de patentes atue em sintonia com os interesses da saúde pública.
Endossando as diversas perspectivas trazidas por esta edição da FACTO, o artigo “Biotecnologia e a produção de vacinas: o Brasil está preparado para a próxima pandemia?”, de Akira Homma, defende o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) e da Nova Indústria Brasil para potencializar os avanços tecnológicos obtidos por instituições nacionais no desenvolvimento de vacinas após a pandemia.
Por fim, o artigo “Farmácias de manipulação e atenção farmacêutica no Brasil”, de Danielle Bittencourt e Bianca Boaventura, aborda problemas enfrentados por esses estabelecimentos: produção em larga escala sem autorização, uso irregular de substâncias controladas e falhas nos critérios de esterilidade e controle de qualidade. Essas práticas colocam em risco a saúde pública e representam concorrência desleal com o setor regulado, assemelhando-se às práticas de pirataria que a ABIFINA vem combatendo.
