A urgência de intensificar a fiscalização e revisar a normativa vigente para proteger a saúde pública
A Organização Mundial da Saúde definiu, em 1990, atenção farmacêutica como “a soma de atitudes, comportamentos, valores éticos, conhecimentos e responsabilidades do profissional farmacêutico no ato da dispensação de medicamentos, com o objetivo de contribuir para a obtenção de resultados terapêuticos desejados e melhoria da qualidade de vida do paciente”.
É certo, contudo, que a atividade farmacêutica conquistou local de destaque no País no século XIX, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil. Em 1839, na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, foi fundada a primeira faculdade de farmácia do Brasil; as farmácias magistrais e de manipulação dominavam o processo de produção dos medicamentos. Apesar da criação e desenvolvimento dos cursos de farmácia, a regulamentação efetiva da profissão e das práticas farmacêuticas ainda era limitada, resultando em uma grande variabilidade na qualidade e na segurança dos medicamentos manipulados.
Com o advento da industrialização e a edição do Decreto nº 20.377/1931, que regulamentou o exercício da profissão farmacêutica no Brasil, a atividade do profissional farmacêutico, em especial nas farmácias de manipulação, passou a abrigar, além da manipulação de produtos oficinais, também os magistrais.
As farmácias de manipulação são estabelecimentos autorizados e licenciados, pelas autoridades sanitárias competentes, para a manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, compreendendo, ainda, a dispensação e o atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica.
Ainda nos termos da normativa vigente, é essencial considerar que preparação magistral “é aquela preparada na farmácia, a partir de uma prescrição de profissional habilitado, destinada a um paciente individualizado, e que estabeleça em detalhes sua composição, forma farmacêutica, posologia e modo de usar”, enquanto preparação oficinal é aquela “cuja fórmula esteja inscrita no Formulário Nacional ou em Formulários Internacionais reconhecidos pela Anvisa”.
Ainda que se reconheça a relevância e essencialidade da atenção farmacêutica no Brasil, não se pode perder de vista que a ação de fiscalização sanitária é fundamental para a proteção da saúde pública.
A efetividade da atividade fiscalizatória é fundamental, pois evita que medicamentos com desvio de qualidade, falsificados ou não registrados sejam disponibilizados no mercado, causando agravos temporários ou definitivos ao consumidor.
Mary Anne Fontenele Martins e Magda Duarte dos Anjos Scherer destacaram que “o consumo de medicamentos fora do padrão, falsificados (SF) e não registrados (NR) é um problema mundial de saúde, ocasionando os seguintes efeitos: 1) grave risco à saúde, pois estes produtos prolongam as doenças e podem até levar a óbito; 2) aumento da resistência antimicrobiana e de infeções resistentes aos medicamentos; 3) desacreditam os profissionais de saúde e os sistemas de saúde; 4) maior desconfiança sobre a eficácia das vacinas e dos medicamentos; 5) desperdício de recursos das famílias e dos sistemas de saúde; 6) aumento nos rendimentos dos infratores e criminosos, caso não sejam “tomadas medidas urgentes para prevenir, detectar e responder” à proliferação destes produtos pelo mundo (WHO, 2017a, 2017b, p. 7)”.
No Brasil, compete à União, estados, Distrito Federal e municípios as ações de vigilância sanitária, em especial a fiscalização de produtos e serviços. Justamente nesse contexto de contenção de risco que, desde 2021, a Anvisa vem envidando esforços para aumentar a fiscalização das atividades das farmácias de manipulação. Em 2022, por sua vez, a Agência iniciou o “programa de monitoramento de farmácias de manipulação de produtos estéreis, por meio do qual 18 farmácias foram inspecionadas. Na ocasião, 11 estabelecimentos apresentaram algum aspecto insatisfatório, sendo que em seis casos houve interdição parcial.”
Em setembro de 2023, a Anvisa decidiu intensificar, com o apoio de estados e municípios, a fiscalização em farmácias de manipulação de todo o País. Findada a primeira fase do projeto, a agência noticiou que, de dez farmácias inspecionadas, sete foram interditadas, sendo certo, ainda, que foram apreendidos mais de um milhão de frascos de produtos injetáveis que estavam sendo comercializados de forma irregular por “desvio completo da atividade licenciada para o estabelecimento, que fabricava, sem a devida autorização, produtos em larga escala.
”Os produtos irregulares identificados seriam “emagrecedores, hormônios esteroides, redutores de medidas corpóreas e preenchedores estéticos.”
Se os dados de 2023 já eram inquietantes, os resultados fiscalizatórios obtidos até março de 2025 são alarmantes.
Apenas nos primeiros três meses de 2025 já foram publicadas, ao menos, quatorze medidas preventivas contra farmácias de manipulação por fabricação de produtos em larga escala. Sem dúvida alguma, essa conduta configura evidente desvio de finalidade da atividade licenciada para o estabelecimento. O número é quase três vezes maior se comparado ao mesmo período de 2024, além de representar quantitativo maior do que todo o ano passado.
A despeito de todas as ações adotadas até o momento, é inegável que o problema persiste. Segundo dados coletados em 2024, havia 8.711 farmácias de manipulação regularizadas no País em 31 de dezembro de 2023. Nesse universo, 4.514 estão no Sudeste (51,8%); 1.635, no Sul (18,8%); 1.390, no Nordeste (16%); 682 estão no Centro Oeste (7,8%) e 490, no Norte (5,6%). Isto é, cinco em cada dez lojas no Brasil estão no Sudeste. Do total de farmácias regularizadas, 6.946 (79,7%) estão registradas como sede e/ou único estabelecimento e 1.765 (20,3%) são filiais.
Sem sombra de nenhuma dúvida, as farmácias de manipulação são extremamente relevantes para a economia brasileira. O setor cresceu 17,1% no último quinquênio, alcançando R$ 11,3 bilhões em 2023. Para a saúde pública nacional, a atividade farmacêutica desenvolvida pelas farmácias de manipulação é impositiva para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes, especialmente se considerando o conceito de saúde, definido pela OMS como estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade.
Contudo, o adimplemento das “Boas Práticas de Manipulação de Preparações Magistrais e Oficinais para Uso Humano em farmácias”, estabelecidas na Resolução-RDC nº 67/2007 da Anvisa, é obrigatório. Qualquer permissividade quanto ao cumprimento das BPMF representa gravíssimo prejuízo à saúde pública, além, é claro de infração sanitária e, quiçá, ilícito penal.
As principais irregularidades identificadas nas atividades das farmácias de manipulação estão relacionadas a inobservância dos requisitos de esterilidade, controle de qualidade e origem dos insumos. Verifica-se, outrossim, o aumento no contingente de farmácias de manipulação que manipulam fórmulas padronizadas em grandes quantidades, formando estoque. Em outras palavras, são empresas que atuam à margem da legislação vigente, que as obriga a operarem mediante apresentação de prescrição individualizada, atuando em escala industrial, sem, por obviedade, cumprirem os rigorosos requisitos impostos a este setor.
Nas palavras da própria Anvisa, algumas farmácias vendem “seus produtos como se fossem distribuidoras de produtos farmacêuticos, comercializando medicamentos e produtos para saúde sem registro.”
Entre os produtos, destacam-se fórmulas contendo substâncias como “tadalafila” e “semaglutida” de maneira irregular. Os “famosos” “chips da beleza” (implantes hormonais manipulados) também são protagonistas das atividades irregulares. Especialmente sobre os “chips da beleza”, a proporção alcançada foi tamanha, que, além da edição de diversas medidas preventivas, a Anvisa emitiu, em outubro de 2024, o Alerta nº 4/2024, que “alerta profissionais de saúde, população, setor produtivo e vigilâncias sanitárias locais a respeito do risco de ocorrência de eventos adversos relacionados ao uso de produto manipulado e sem garantia de qualidade, segurança e eficácia.” Os implantes hormonais têm sido “utilizados para fins estéticos, tratamento de fadiga ou cansaço e sintomas de menopausa. Entre os hormônios utilizados estão principalmente a gestrinona, testosterona e oxandrolona, substâncias controladas que fazem parte da lista C5 (anabolizantes) da Portaria/SVS 344/1998.”

O cenário atual, sem dúvida alguma, é grave. Os riscos aos quais a saúde da população é exposta diariamente são altos. A situação é ainda mais crítica quando constatado que as práticas irregulares não estão apenas nos pontos físicos das farmácias; os e-commerces aumentam, exponencialmente, a possibilidade de acesso aos produtos irregulares, fabricados por empresas sem qualquer controle de qualidade.
Ressalte-se que a exposição ao público de produtos manipulados com o objetivo de propaganda, publicidade ou promoção é vedada pela legislação vigente. Lamentavelmente, mesmo com medidas preventivas, e até em casos em que houve lavratura de auto de infração sanitária e imposição de penalidade de multa, os anúncios em sítios eletrônicos permanecem ativos.
A perpetuação destas práticas ilícitas demonstra verdadeiro desvio de finalidade das farmácias de manipulação que, não somente causa prejuízos à saúde do consumidor, como configura concorrência desleal. Os agentes regulados, farmácias de manipulação regularmente estabelecidas e, sobretudo, o segmento industrial brasileiro, sofrem os impactos do recrudescimento das atividades irregulares cometidas por essas empresas. As indústrias farmacêuticas, em especial, veem todo o investimento em Pesquisa e Desenvolvimento ser esvaziado em decorrência da gravidade das infrações cometidas, que causam prejuízo imagético e reputacional às marcas. Não se olvide, ainda, que os agentes regulados regularmente estabelecidos têm que observar uma série de requisitos regulatórios, ainda mais complexos para fabricação e disponibilização de produtos industrializados no mercado de consumo, observando, inclusive, a regulação de preços, enquanto algumas empresas atuam à margem da regulação, derramando no mercado milhões de unidades de produtos irregulares a preços módicos.
Nesse cenário, é fundamental a adoção de projetos amplos de fiscalização e monitoramento do mercado de farmácias de manipulação. É fundamental, ainda, estimular uma ação conjunta entre as autoridades sanitárias e policiais, de forma a coibir as práticas irregulares, muitas vezes criminosas. Por fim, mas jamais menos importante, faz-se premente a revisão da Resolução-RDC nº 67/2007, atualizando-a frente aos desafios que surgiram ao longo dos dezoito anos de sua vigência. A revisão da referida norma já está prevista no item 8.27 da Agenda Regulatória 2024-2025 da Anvisa. É urgente, contudo, que seja dado andamento ao tema e iniciada a análise de impacto regulatório, com posterior abertura de consulta pública e demais mecanismos de participação social – instrumentos indispensáveis para que a futura norma possa atender as necessidades atuais.
Sem sombra de nenhuma dúvida, até que nova norma seja publicada, somente a intensificação do monitoramento e fiscalização, com adoção de medidas ainda mais rígidas, possibilitará a efetiva proteção da população e garantia da isonomia entre agentes regulados.
[1]. Organizacion Mundial de la Salud. El papel del farmaceutico en el sistema de atención de salud: informe de un Grupo de Consulta de la OMS. Genebra: OMS; 1990
[2]. Farmacêuticos e legislação sanitária. Silva LR & Vieira EM Rev Saúde Pública 2004;38(3):429-37
[3]. Resolução-RDC nº 67, de 08 de outubro de 2007
[4]. Saúde Soc. São Paulo, v.31, n.2, e200853pt, 2022
[5]. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2024/anvisa-faz-proibicao-e-publica-alerta-sobre-hormonios-implantaveis-manipulados – Acesso em 03.04.2025
[6]. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2023/anvisa-intensifica-a-fiscalizacao-em-farmacias-de-manipulacao – Acesso em 03.04.2025
[7]. Conforme dados extraídos do “Panorama Setorial 2024 – Dados Socioeconômicos das farmácias de manipulação” da ANFARMAG. Disponível em < https://anfarmag.org.br/panorama-setorial/ > – Acesso em 04.04.2025
[8]. https://antigo.anvisa.gov.br/informacoes-tecnicas13?p_p_id=101_INSTANCE_R6VaZWsQDDzS&p_p_col_id=column-1&p_p_col_count=1&_101_INSTANCE_R6VaZWsQDDzS_groupId=33868&_101_INSTANCE_R6VaZWsQDDzS_urlTitle=alerta-ggmon-n-04-2024-implantes-hormonais-para-fins-esteticos-e-de-desempenho-podem-ser-prejudiciais-a-saude-e-nao-ha-comprovacao-de-seguranca-e-efic&_101_INSTANCE_R6VaZWsQDDzS_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_INSTANCE_R6VaZWsQDDzS_assetEntryId=6907344&_101_INSTANCE_R6VaZWsQDDzS_type=content – Acesso em 03/04/2025

